Depois de 20 anos com Abdelaziz Bouteflika a manter-se na presidência recorrendo a fraude eleitoral e repressão, um poderoso movimento da classe trabalhadora emergiu.
A 22 de Fevereiro, milhares de pessoas saíram à rua em Argel e nas principais cidades do país contra a candidatura de Bouteflika a um 5º mandato. Este homem de 82 anos, tão doente que está já incapaz de comparecer em eventos públicos, foi denunciado como testa de ferro daqueles que realmente detêm o controlo do Estado: a casta militar e a burocracia da Frente de Libertação Nacional (FLN).
Uma economia neocolonial
A Argélia tem a 10ª maior reserva de gás natural e 16ª maior reserva de petróleo no mundo. Os hidrocarbonetos representam cerca de 30% do seu PIB, 60% das receitas orçamentais e quase 95% das receitas de exportação. É uma economia neocolonial, totalmente dependente da exportação de petróleo e gás, mais de metade da qual é para países europeus.
As receitas destas exportações, além de serem desperdiçadas a enriquecer a parasitária casta militar e burocrática no comando do Estado e das empresas estatais, têm servido para assegurar que a Argélia cumpre as suas funções como país dominado pelo capital imperialista. Com o dinheiro do gás e do petróleo os bens de primeira necessidade são subsidiados, não só para manter a paz social como, principalmente, para baixar o preço da força de trabalho (os salários). Por fim, o destino das receitas da exportação é o 2º exército mais poderoso de África (que consome 5% do PIB) e o potente aparelho repressivo, para manter a classe trabalhadora “em ordem”.
O investimento estrangeiro e o sector privado têm aumentado. A indústria pública, com o baixíssimo nível de investimento, não representa qualquer competição. Por exemplo, a gigantesca SONATRACH, a empresa estatal de extração de hidrocarbonetos, com cerca de 120.000 trabalhadores — a maior do continente —, não tem refinarias suficientes para o seu volume de extracção. Assim, a maior parte da exportação é de crude, posteriormente importado como petróleo refinado.
Políticas de austeridade
Em 2014, o preço do petróleo caiu para metade. O governo perdeu mais de um terço do seu orçamento. Nestas condições, aplicou um programa de privatizações, liberalização e austeridade com despedimentos e cortes de salários da função pública, semelhante ao aplicado sob a orientação do FMI na década de 90, com a “transição para uma economia de mercado”. Assim, em 2016, a banca pública entrou na bolsa de valores, abrindo-se ao capital imperialista.
Segundo o próprio FMI, o desemprego subiu de 10,5% em 2016 para 11,7% em 2017, sendo ainda mais alto entre os jovens e as mulheres — 28% e 20% respectivamente. O crescimento do PIB baixou de 3,3% para 1,5%.
Esta política provocou a resistência dos trabalhadores e da juventude, mas também o receio de uma parte significativa da casta burocrática que teme perder a riqueza assegurada pela administração de empresas públicas. Assim se entende que o governo da FLN tenha congelado os novos planos de privatização e proibido a importação de 851 produtos que vão desde telemóveis a produtos alimentares. Os capitalistas, claro, ignoraram esta burocracia incapaz de lhes fazer frente. O passo seguinte, no início deste ano, foi o aumento das taxas aduaneiras de variadas mercadorias entre 30% a 200%. Isto fez disparar o preço de bens de primeira necessidade e até de matérias primas necessárias à indústria nacional, como o alumínio. A inflação subiu de 6,4% em 2016 para 7,4%, em 2018. Com o salário mínimo estagnado nos 18.000 dinares argelinos (cerca de 135€) desde 2012, o custo de vida tornou-se impossível para grande parte da população, com 35% (14 milhões) a viver na pobreza. É esta a base da revolta.
Uma reorganização dos trabalhadores
Tentando ultrapassar a amarela União Geral de Trabalhadores Argelinos (UGTA) — única central sindical reconhecida pelo Estado, que é controlada pela FLN —, os trabalhadores lançaram-se na construção de novos sindicatos, a Confederação Argelina de Sindicatos Autónomos (CASA) e a Confederação Geral Autónoma dos Trabalhadores da Argélia (CGATA).
Em Abril de 2018, já 65 novos sindicatos pediam legalização, sendo ignorados pelo governo. As novas organizações lideraram no início de 2018 os maiores e mais longos protestos e greves de vários sectores da função pública, como médicos e professores, exigindo o aumento dos salários, melhores condições de trabalho e até a abolição do serviço militar obrigatório.
Com a eclosão de protestos massivos contra o governo nas principais cidades da Argélia em Fevereiro deste ano, estes sindicatos da função pública convocaram uma greve geral à qual se juntaram os estudantes e até mesmo pequenos comerciantes.
Um dia depois do início da greve, a 11 de Março, a FLN retirou a candidatura de Bouteflika. Mas os trabalhadores e a juventude compreendiam que Bouteflika não é o problema. Exigiam o afastamento dos “4 Bs”: o presidente do Conselho Constitucional, Tayeb Belaiz, o ex-presidente do Senado, Abdelkader Bensalah, o primeiro-ministro, Noureddine Bedoui, e o presidente da Assembléia Nacional, Mouad Bouchareb.
A greve geral durou mais 4 dias e os protestos continuaram. Novamente tentando apaziguar as massas, a FLN anunciou a demissão de Bouteflika, substituído nas funções por Bensalah. A 10 de Abril houve nova greve geral. Uma semana depois, já com os trabalhadores municipais a recusar organizar as eleições de 4 de Julho, demitiu-se Belaiz.
A burguesia procura uma solução que preserve o sistema
A 27 de Abril reuniu-se pela primeira vez o "coletivo da sociedade civil argelina para uma transição democrática e pacífica", constituído por 28 sindicatos, associações e ONGs. Da reunião saiu um apelo ao “diálogo com os poderes políticos” e a uma “transição democrática” com uma “mudança radical do sistema”. As direcções sindicais aceitaram desta forma cobrir com um verniz revolucionário uma solução que procura a conciliação de classes com interesses inconciliáveis.
Gaïd Salah, chefe das forças armadas, e a sua camarilha compreenderam já a estratégia a tomar. Ao mesmo tempo que fazem discursos a apoiar o movimento, prendem os elementos mais radicais. Lançaram ainda uma campanha “anti-corrupção” sem precedentes, que resultou na prisão de Ould Kaddour, CEO da SONATRACH, Saïd Bouteflika, irmão do ex-presidente, e Bachir Tartag, chefe dos serviços de inteligência. De um só golpe querem ganhar a simpatia dos trabalhadores e eliminar quaisquer adversários políticos.
O restabelecimento da ordem burguesa passa também, claro, por forjar novos instrumentos políticos. Novos partidos, como o liberal Muwatana ("Cidadania") — lançado em 2017 por ex-ministros, juízes, jornalistas e académicos — fazem parte deste esforço e tentam colocar-se à cabeça do movimento. Mas, como é característico dos processos revolucionários, as massas procuram uma solução fora do sistema.
O Partido dos Trabalhadores (PT), que se reclama marxista — e até trotskista! —, poderia aqui jogar um papel decisivo, mas actua como um entrave, apelando à calma e à convocação de eleições, negando-se a participar nas mobilizações. A dirigente do PT, Louisa Hanoune, está inclusivamente detida por se ter reunido secretamente com Bouteflika e a sua camarilha na fase inicial do movimento. Defendendo-se, Hanoune alegou que apenas cumpria o seu papel de “mulher de Estado”, o que equivale a dizer que cumpria as suas funções como defensora do Estado burguês.
A Revolução Permanente
O processo revolucionário na Argélia demonstra mais uma vez a pertinência da Teoria da Revolução Permanente. A Argélia é um país com uma burguesia compradora, ou seja, dependente do capital imperialista que impõe salários miseráveis, uma economia de monocultura petrolífera e, acima de tudo, a ausência de direitos democráticos. A luta por direitos democráticos — p.ex.: reforma agrária e fim dos privilégios de castas ou ordens, separação do Estado e da igreja, eleições livres, direitos de organização e associação, etc. — não é, portanto, impulsionada por qualquer burguesia nacional, como nas revoluções liberais europeias do séc. XIX, mas antes pela classe trabalhadora e massas oprimidas. A revolução é feita não só sem a burguesia, mas acima de tudo contra a burguesia. Ora, o desfecho de um processo revolucionário vitorioso é determinado fundamentalmente pela classe que o encabeça. O proletariado, evidentemente, não pode conquistar o poder para erguer instituições burguesas e preservar a propriedade privada e as relações de assalariamento; pode unicamente construir uma sociedade que corresponda aos seus interesses — expropriando o capital imperialista e planificando a economia para servir os interesses dos trabalhadores e do ambiente. Assim, o que parece começar como uma revolução liberal-burguesa é na verdade uma revolução socialista.
Com o poderosíssimo ascenso revolucionário dos últimos meses, a classe trabalhadora na Argélia mostrou estar à altura desta tarefa histórica e capaz de mobilizar atrás de si a massa de camponeses e pequeno-burgueses pobres do país.
A vitória da revolução, no entanto, não depende apenas do ímpeto das massas. O partido revolucionário é um factor essencial. Sem uma direcção revolucionária capaz de conectar as reivindicações democráticas a um programa de tomada do poder pela classe trabalhadora, o movimento, depois de um esforço heróico, esgota as suas forças mais tarde ou mais cedo e é derrotado pela contra-revolução. É esse momento decisivo que vive a Argélia, tal como o Sudão, países onde o capitalismo está ameaçado de morte sem que exista ainda o partido capaz de lhe desferir o golpe final.
Há que convocar uma nova greve geral e transformá-la no ponto de partida para a criação de comités de defesa contra os ataques do exército e restantes forças de repressão, iniciar a ocupação de fábricas e a construcção de órgãos de poder proletário — conselhos de trabalhadores, camponeses e soldados — que constituem a única alternativa democrática aos órgãos burgueses — Parlamento, Presidência, Conselho Constitucional e restantes instituições que o PT, com o seu “sentido de Estado”, se apressou a defender.
O único caminho é a revolução socialista!