A 1 de setembro, a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, sofreu um atentado fracassado à porta de sua casa perpetrado por um elemento de extrema-direita.

A tentativa de assassinato ocorreu após vários dias de concentrações de detratores e apoiantes da vice-presidente, e de uma furiosa campanha do macrismo e da extrema-direita para deixar Kirchner de fora da próxima disputa eleitoral em 2023, ainda com a possibilidade de ser detida e impossibilitada de poder exercer cargos públicos para o resto da vida.

Este episódio é uma amostra crua de que a polarização política na Argentina alcançou um ponto crítico no contexto de uma profunda crise económica, com os ricos cada vez mais ricos, enquanto as condições de vida da maioria dos argentinos se degradam.

Pobreza e miséria para a maioria e abundância e desperdício para a minoria privilegiada

O pano de fundo do contínuo terramoto político que vive a Argentina é a terrível situação económica que a classe trabalhadora suporta. Embora o crescimento homólogo do PIB do país austral registado no primeiro trimestre deste ano tenha sido de 6%, milhões de argentinos têm de travar uma dramática luta quotidiana para sobreviver. 

Segundo os últimos dados oficiais, a pobreza afeta 37,3% dos argentinos, um número que chega a 43,8% de acordo com o órgão argentino Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina. Esta realidade é especialmente prevalente com crianças e idosos: 51,4% dos menores de 14 anos são pobres e 70% dos nove milhões de aposentados e aposentadas do país recebem pensões mínimas que não chegam para cobrir as necessidades básicas (em contraste com as pensões recebidas por uma pequena elite, sobretudo de antigos altos cargos do Estado que, segundo o ex-ministro da Economia, Martín Cousteau, equivalem a 1% do PIB).

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A pobreza afeta 37,3% dos argentinos, um número que chega a 43,8%, segundo o órgão argentino Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina.

Atendendo à pouca fiabilidade das estatísticas oficiais, a taxa de desemprego é de 7%, mas este número não pode ocultar o colapso das condições de vida: com um salário médio mensal de 45.540 pesos (334 dólares no câmbio oficial e 135 no mercado paralelo, o chamado dólar blue, o mais usado), um terço dos trabalhadores são pobres. Um estudo da consultora LCG indica que a queda do poder de compra nos últimos cinco anos foi em média de 23%.

Segundo o Ministério da Economia, de julho de 2021 a julho de 2022, o peso argentino desvalorizou 39% em relação ao dólar, embora o colapso no mercado “informal” tenha sido muito maior. No mês de julho a taxa de câmbio aumentou quase 100 pesos, para 337 pesos por dólar. Isto beneficiou diretamente 20% da população com alto rendimento e com capacidade de obter dólares dentro e fora do país, e que tem sustentado uma parte fundamental do consumo interno.

Golpeados por altos níveis de pobreza e por uma inflação descontrolada, a imensa maioria dos argentinos está a viver uma situação limite. No mês de agosto, a inflação anual alcançou 78,5% e, segundo as previsões do Banco Central, o aumento dos preços poderia chegar aos 90% até ao final deste ano.

A fuga massiva de capitais e a incessante sangria pelo pagamento de uma dívida ilegítima, cujo cumprimento é o objetivo prioritário do governo peronista de Alberto Fernández, empurraram a economia argentina contra a parede. O stock total da dívida externa bruta argentina, medido ao valor do mercado, ascendia a 228.356 milhões de dólares no final do primeiro trimestre de 2022. Parte dessa dívida insustentável é o empréstimo de 44.000 milhões de dólares que o anterior governo de Macri (2015-2019) assinou com o FMI.

Alberto Fernández, empenhado em aceitar a lógica implacável do capitalismo, curvou-se perante as exigências do FMI: em março deste ano, diante da impossibilidade de fazer um pagamento de 19.000 milhões de dólares, teve que renegociar as suas condições e comprometeu-se a reduzir o défice fiscal de 3% para 0.9% em 2025. Entre estas condições encontram-se questões como ajudas para custear a fatura energética, desemprego, saúde, educação, etc., as quais pretende cortar bastante.

Com 21 milhões de argentinos a receber subsídios estatais de algum tipo, o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina assinalou que, sem estes, a taxa de pobreza poderia chegar a 50% da população e a de indigência a 20%.

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Alberto Fernández, empenhado em aceitar a lógica implacável do capitalismo, curvou-se perante as exigências do FMI.

Divisões no governo e diferenciação interna no movimento peronista

Com uma economia à beira do abismo, pressionada pelo FMI e por uma insustentável e dramática situação social que não deixa de se deteriorar, aprofundam-se as divisões no seio do governo.

Entre junho e julho sucederam-se três ministros na pasta da Economia. Martín Guzman, que negociou em março com o FMI as novas condições para o pagamento da dívida, demitiu-se em junho, perante os obstáculos apresentados pelos kirchneristas. Foi sucedido por Silvina Batakis, mais próxima de Cristina Kirchner, que apenas se manteve no cargo um mês. Finalmente, no mês de agosto, tomou posse Sergio Massa, elemento do sector mais à direita do peronismo, que se comprometeu a cumprir com todas as exigências do FMI e a manter-se fiel a um rumo neoliberal na gestão económica do Executivo. Cristina Fernández também revelou o que realmente lhe interessa: assediada judicialmente, aceitou a nomeação de Massa a troco de poder contar com o apoio unânime do governo na batalha que está a travar nos tribunais.

Mas o problema de fundo do kirchnerismo é que, embora diga que se opõe aos cortes sociais, não propõe nenhuma alternativa consequente. Os políticos que rodeiam Kirchner, e ela mesma, renunciaram a exigir o não pagamento da dívida e empossaram um ministro como Sergio Massa, com credenciais anti-operárias comprovadas. Esta atitude encobertamente servil para com a direita peronista e o grande capital nacional e imperialista dão uma desculpa para que a cúpula da CGT e de outros sindicatos prossigam uma estratégia de desmobilização e de paz social que fortalece a direita macrista e a patronal.

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O kirchnerismo diz opor-se aos cortes sociais, mas renunciou a exigir o não pagamento da dívida e mantém uma atitude encobertamente servil com a direita peronista e o grande capital nacional e imperialista.

No entanto, o descontentamento é tão generalizado que as divisões dentro do peronismo foram muito além da polémica de gestos e de ameaças retóricas que estalaram dentro do Executivo. Imediatamente após a nomeação de Massa, o dirigente da Frente Pátria Grande (FPG), Juan Grabois, anunciou a 31 de agosto que o seu grupo de deputados abandonaria a Frente de Todos (peronista) para formar o seu próprio grupo.1

A crítica e o distanciamento vinham de há muito tempo atrás. A FPG foi uma das organizadoras das marchas convocadas em todo o país a 20 de julho, junto com numerosos coletivos peronistas de base e organizações da esquerda combativa, nas quais se exigia um rendimento básico universal.

A ação de 20 de julho foi uma continuação do 1º de maio massivo, onde 200.000 trabalhadores peronistas se congregaram em Buenos Aires em protesto contra as medidas de austeridade do Executivo. Imediatamente depois, a 10 de maio, organizações sociais à esquerda do governo de Alberto Fernández convocaram uma marcha a Buenos Aires “contra os cortes e o FMI” que reuniu milhares de trabalhadores, piquetes e as suas famílias de todo o país.

As mobilizações sucederam-se em numerosos sectores nestes meses, e a luta vai intensificar-se à medida que a situação se tornar mais insustentável. 

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As mobilizações sucederam-se em numerosos sectores nestes meses, e a luta vai intensificar-se à medida que a situação se tornar mais insustentável.

Existe uma oportunidade real para que a esquerda revolucionária argentina e, especialmente, para que a Frente de Izquierda y de los Trabajadores (FIT) estabeleça uma ponte com centenas de milhares de trabalhadores, sindicalistas e ativistas peronistas que se encontram em oposição aberta ao seu governo. Uma política de frente unida, audaz, com estes setores e com as suas organizações não pode prejudicar a esquerda militante, muito pelo contrário. Permitirá que a sua mensagem classista e revolucionária penetre de forma muito mais eficaz e ganhe um sector imprescindível e vital do movimento operário. Este é o caminho para coroar com êxito os próximos combates revolucionários que se avizinham.

 


Notas:

1. “Mentiram-nos… Disseram-nos que iam fazer algo em relação aos mais pobres e não fizeram nada”, afirmou Grabois, implicando, neste plural, o presidente Alberto Fernández. E sobre as reuniões de Massa com empresários estado-unidenses, afirmou: “Ele vai dar tudo aos donos do lítio, dos hidrocarbonetos e do agronegócio. Aos banqueiros e aos grupos económicos”. “Na minha visão, este governo está a perder o seu caráter popular e a adotar um caráter colonial”. Argentina: crisis económica y confrontación política

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