Onze meses depois do golpe de Estado, as massas derrotam os planos do imperialismo e da oligarquia

As eleições presidenciais de 18 de Outubro foram um terramoto político. Onze meses depois do sangrento golpe de Estado que derrubou Evo Morales, a mobilização massiva de jovens, trabalhadores e camponeses não só volta a levar o MAS ao governo como ainda o faz da maneira mais estrondosa.

Com 88,41% dos votos apurados e com uma participação superior a 87%, a candidatura do Movimiento Al Socialismo-Instrumento político para la Soberanía de los Pueblos (MAS-ISP) — encabeçada por Luis Arce (anteriormente ministro da economia de evo Morales) e pelo dirigente indígena David Choquehuanca — obtem 54,08% dos votos. Trata-se aqui do maior apoio eleitoral jamais conseguido por um candidato na história da Bolívia, igualado apenas pelo apoio a Evo na sua primeira vitória eleitoral, após as insurreições populares de 2003 e 2005.

O candidato do MAS superou por mais de 25 pontos percentuais o ex-presidente Carlos Mesa (29,66%), candidato ao redor do qual os sectores decisivos da oligarquia tentaram concentrar o eleitorado de direita. Luis Fernando Camacho, líder dos bandos fascistas auto-intitulados “comités cívicos” — que constituíram as força de choque do golpe de Estado — conseguiu 14,18% dos boletins.

Não estamos perante uma vitória eleitoral qualquer. Por mais que os meios de comunicação social tentem ocultar o conteúdo revolucionário dos acontecimentos, o certo é que os trabalhadores e camponeses bolivianos deram, nas urnas, continuidade à insurreição contra o golpe que já protagonizam desde Novembro do ano passado. E fizeram-no de forma tão massiva e decidida que os planos de fraude que a oligarquia do país andino preparava voaram pelos ares, levando com eles toda a estratégia do imperialismo estado-unidense — a de transformar estas eleições num simples trâmite que lhes servisse para legitimar o golpe organizado em Outubro-Novembro de 2019 e empossar um governo fantoche.

As massas derrotam a repressão e as tentativas de fraude da oligarquia

Este resultado é ainda mais espectacular porque se dá após onze meses de repressão por parte do governo golpista presidido pela senadora de direita Jeanine Añez. Governo que não só reprimiu selvaticamente a insurreição contra o golpe, causando dezenas de mortes e centenas de detidos e feridos, como também se dedicou durante todo este tempo a perseguir, ameaçar e intimidar militantes e dirigentes do MAS, do movimento operário e popular e de outros movimentos e partidos da esquerda.

Um dos primeiros actos dos golpistas foi precisamente modificar a composição do Tribunal Supremo Electoral (TSE), promovendo os elementos que lhes eram fiéis a fim de assegurar o controlo de todos os processos eleitorais. De facto, assim que as sondagens começaram a indicar o MAS como favorito, atribuindo-lhe entre 40 a 43% das intenções de voto, o TSE, valendo-se da pandemia, adiou repetidamente estas eleições. Uma vez mais, foi a mobilização de trabalhadores e camponeses — exigindo eleições imediatas e paralisando boa parte do país com bloqueios de estrada e protestos que duraram doze dias no mês de Agosto — que obrigou a oligarquia a realizar finalmente as eleições.

Ainda assim, recorreram a todo o tipo de manobras. O imperialismo estado-unidense e os sectores decisivos da classe dominante “convenceram” Añez a retirar a sua candidatura e a concentrar o voto de direita em Mesa. Também recorreram a manobras como alterar os locais de voto nas zonas onde o MAS vence habitualmente, tentando limitar a participação, ou excluir do censo os residentes no estrangeiro — maioritariamente na Argentina — e mais de 50.000 migrantes que fazem parte dos sectores mais humildes da população. Isto não foi por acaso: nas eleições de 20 de Outubro de 2019, o MAS obteve 82% de apoio entre os bolivianos residentes na Argentina.

A última destas manobras foi anular, na noite de véspera das eleições, o sistema de contagem rápida de votos que permite conhecer os resultados parciais e seguir a evolução do escrutínio. O objectivo não podia ser mais claro: impedir a vitória do MAS na primeira volta, servindo-se do controlo sobre os poderes judicial e eleitoral para organizar uma gigantesca fraude. A força das massas trabalhadoras e populares desbaratou estes planos.

Os cortes e a gestão capitalista da pandemia aumentam o mal-estar social

A massiva rejeição do governo reaccionário de Añez viu-se aumentada pelas medidas que a oligarquia aplicou durante o último ano. O impacto da crise económica, dos cortes e da gestão da pandemia deitaram mais achas na fogueira.

No primeiro trimestre de 2020, antes de se iniciar a pandemia, o PIB boliviano cresceu 0,6%. Uma acentuada queda tendo em conta a média de 5% dos anos anteriores. No segundo trimestre, a economia tombou 16,03% e as previsões para o final do ano são de uma caída de entre 7% a 10%. A resposta da classe dominante a este colapso, como em todos os países capitalistas, foi utilizar a pandemia para fazer um saque às finanças públicas, justificar cortes e despedimentos e aumentar escandalosamente os lucros enquanto o peso da crise recai sobre o povo.

Após aprovar um endividamento de 1.892 milhões de dólares com a banca internacional, o governo Añez presenteou os bancos e empresas privadas com mais de 671 milhões. Simultaneamente, fazia cortes nas despesas sociais, anunciava planos de privatização de diferentes empresas públicas criadas sob os governos MAS e condenava milhões de bolivianos a fazer frente à crise sanitária e económica em condições extremamente precárias. O índice de desemprego oficialmente reconhecido passou de 4% a 12% nos onze meses de governo da direita. A informalidade e precariedade laboral também aumentaram.

O diário El País publicou em Maio um artigo sobre a bolívia — com o significativo título de “Quando a fome é mais perigosa que a pandemia” — onde explicava: “A crise sanitária revelou as profundas desigualdades sociais e económicas em todos os países do mundo. Na bolívia, apesar da redução registada entre 2005 e 2018, estas desigualdades são ainda maiores: 3,9 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza e, entre elas, 1,7 milhões não consegue cobrir nem sequer o custo do cabaz alimentar básico.” (destaque do autor)

Sob o governo golpista e pro-imperialista, a Bolívia tornou-se no país sul-americano que realizava menos testes para diagnosticar covid-19: 1.275 por milhão de habitantes, 117 testes diários, sendo que o Chile fazia 12.000 e o Perú 8.000. Entretanto, membros do governo envolviam-se em escândalos de corrupção precisamente nas compras de material sanitário destinado, supostamente, a combater a pandemia.

Uma parte significativa dos sectores populares e das camadas médias que estava desmoralizada e desiludida com as políticas reformistas do MAS e os escândalos de corrupção protagonizados por alguns dos seus dirigentes — tendo retirado o seu apoio a Evo Morales nas eleições municipais de 2015, no referendo de 2016 para modificar a constituição (que foi a sua primeira derrota eleitoral) e nas presidenciais de 2019 (apesar de Morales ter vencido, o seu apoio caiu em comparação com as eleições anteriores) — voltou agora a virar à esquerda.

Novo fracasso do imperialismo estado-unidense

A decisão de avançar com o golpe contra Evo Morales foi tomada em Washington e transmitida às fazendas e mansões de Santa Cruz, Sucre e La Paz, onde foi recebida com entusiasmo. Os objectivos da administração Trump eram claros: conquistar uma posição dominante para as multinacionais estado-unidenses na luta pelo controlo sobre o gás, o lítio e o resto das riquezas que contém o rico subsolo boliviano, e, simultaneamente, fazer uma demonstração de força perante todos os povos oprimidos, assim como perante as potências imperialistas rivais na sua disputa pelo controlo dos recursos do continente: Rússia e, sobretudo, China.

A necessidade de dar um murro na mesa na Bolívia era ainda mais urgente para Washington após o estrondoso fracasso da ofensiva golpista que lançou em Janeiro do mesmo ano na Venezuela. O apoio da cúpula militar boliviana e a renúncia de Evo Morales a encabeçar a resistència popular ao golpe, fugindo do país, permitiu a Trump proclamar a vitória. Onze meses depois, essa aparente vitória cai como um castelo de cartas. Mais uma marretada no imperialismo estado-unidense que demonstra muito graficamente a sua objectiva debilitação e e decadência, como já haviam demonstrado os fracassos das suas intervenções militares no Iraque, no Afeganistão e na Síria, ou o anteriormente mencionado apoio ao fiasco golpista de Guaidó na Venezuela.

Contra quem atribui ao imperialismo estado-unidense um poder implacável, os acontecimentos na Bolívia lançam luz sobre os limites desse poder quando enfrenta uma mobilização de massas decidida e disposta a ir até às últimas consequências. A conclusão é clara: o inimigo mais poderoso do imperialismo estado-unidense não é qualquer uma das restantes potências imperialistas, é a organização e a mobilização massiva da classe trabalhadora, dos camponeses e do conjunto dos oprimidos.

Se golpistas assassinos como Añez e Mesa, ou um patético fantoche dos EUA como o presidente da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro, se viram obrigados a reconhecer a vitória do MAS, mesmo antes de serem publicados os resultados oficiais, não é por acaso, e muito menos por se terem tornado democratas. Estes golpistas viram a magnitude da mobilização operária e popular e temem, justamente, que qualquer tentativa de não reconhecer esta vitória ou de impedi-la por métodos violentos — como pretenden os sectores mais reaccionários da classe dominante, encabeçados pelo fascista Camacho — provoque uma nova insurreição. Inclusivamente com uma determinação e uma força superiores à insurreição do passado mês de Novembro de 2019.

As lições da insurreição de 2019

Como explicámos à data, entre os dias 11 e 25 de Novembro do ano passado, a classe operária e os camponeses bolivianos fizeram tudo o que podiam para derrotar o golpe e tomar o poder: organizaram assembleias populares, cabildos abertos e grupos de auto-defesa para enfrentar a repressão comandada pelo governo golpista e pelos chefes do exército e da polícia; tomaram o controlo efectivo da segunda cidade do país, El Alto, e avançaram até à capital, La Paz, e outra das principais cidades, Cochabamba, expulsando os bandos fascistas de ambas as cidades.

Devido a este avanço, muitos soldados chegaram a confraternizar com os manifestantes e recusaram-se a reprimir, chegando a haver sectores do exército que participaram nos protestos. Mesmo em Santa Cruz, onde os bandos fascistas dirigidos por Camacho semearam o terror nos bairros populares, os trabalhadores e camponeses indígenas, alentados pelo avanço da insurreição no resto do país, organizaram-se para recuperar a iniciativa e combater os fascistas.

O único factor que impediu a vitória da insurreição foi que os dirigentes do MAS e da Central Obrera Boliviana (COB), a principal central sindical do país, em lugar de colocar-se à cabeça da insurreição — organizando a greve geral, unificando e ampliando as assembleias, cabildos e milícias de auto-defesa numa assembleia nacional unificada que assegurasse o poder operário e popular —, recusaram-se a organizar a luta.

Evo Morales fugiu do país e apelou à desmobilização. Os dirigentes do MAS e da COB assinaram um vergonhoso acordo com o governo golpista de Añez para desconvocar as mobilizações a troco da convocatória de eleições. O que os golpistas não conseguiram com a repressão, conseguiram através desse acordo que caiu como um balde de água gelada sobre as massas e travou temporariamente a insurreição nas ruas.

Esta actuação dos dirigentes reformistas do MAS e da COB podia ter significado a desmoralização total do movimento e uma derrota trágica e sangrenta, tal como as sofridas na própria Bolívia e noutros países latino-americanos em diferentes momentos da história. Se não aconteceu isto foi devido à memória histórica, ao instinto revolucionário e ao avanço de consciência que fizeram as massas durante as últimas décadas. A profundidade da crise capitalista, a evidência de que perante a barbárie capitalista não resta outra alternativa senão lutar, assim com o incremento da força numérica do proletariado na Bolívia e no conjunto do continente, faz com que a correlação de forças seja mais favorável para a classe operária. Para a oligarquia é hoje muito mais difícil levar até ao final os seus planos contra-revolucionários.

Perspectivas para o governo MAS

As eleições bolivianas demonstram que a correlação de forças continua a ser favorável para levar a cabo a transformação socialista da sociedade na Bolívia e em toda a América Latina. Mas a experiência dos 14 anos de governo MAS e dos processos noutros países do continente demonstra que toda a força e todo esse potencial revolucionário que mostram as massas precisa de um programa, de um plano de acção e de uma direcção revolucionária que o leve até à vitória. Caso contrário, tarde ou cedo, a oligarquia terá oportunidade de recompor as suas forças e de se impor.

Após reconhecer a vitória de Luis Arce, muitos dos responsáveis pelo golpe — até mesmo Añez e Mesa — exigiram “respeito pela democracia” e que o MAS “governe para todos os bolivianos”. Que hipocrisia! Estes criminosos, com as suas mãos manchadas com o sangue dos trabalhadores e camponeses massacrados há menos de um ano, falam agora de reconciliação e democracia!

Tal táctica obedece a uma lógica. Este sector da oligarquia pretende ganhar tempo e pressionar os dirigentes do MAS para não se basearem na enorme força das massas para aplicar medidas socialistas que de facto melhorem as suas condições de vida e impliquem uma verdadeira transformação social, mas antes se manterem dentro dos limites do capitalismo, fazendo uma gestão da crise e aplicando os cortes, os despedimentos e as privatizações… que já estavam na agenda da classe dominante. Se os dirigentes do MAS derem ouvidos a este canto de sereia, o resultado será, novamente, preparar o terreno para uma ofensiva contra-revolucionária.

Os resultados em Santa Cruz de la Sierra, bastião de todas as tentativas golpistas realizadas pela oligarquia boliviana e pelo imperialismo, são um desafio e um aviso para a esquerda. O fascista Camacho conseguiu 45% dos votos nesta região. Depois de serem conhecidos os resultados, a extrema-direita já mostrou as suas intenções organizando mobilizações contra a vitória do MAS, agredindo e ameaçando militantes da esquerda, recusando-se a aceitar o resultado eleitoral e ameaçando inclusivamente os seguidores de Carlos Mesa por terem reconhecido o resultado. Os sectores mais reaccionários da oligarquia cruceña continuam a exacerbar um discurso racista e regionalista com o objectivo de transformar Santa Cruz na ponta de lança de uma ofensiva futura.

Ora, há que notar também que, num resultado histórico, mais de 35% do eleitorado em Santa Cruz votou MAS. Centenas de milhares de trabalhadores, camponeses e indígenas disseram com o seu voto que estão dispostos a cortar as pernas aos fascistas, que podem ser tão facilmente varridos como foram no resto do país. No entanto, para fazer isto, é preciso actuar decididamente desde agora. Os dirigentes do MAS, da COB e das organizações operárias e populares devem organizar imediatamente mobilizações massivas em Santa cruz e em todo o país para derrotar os fascistas e deixar claro quem tem mais força, além de organizar comités e milícias de auto-defesa para responder às agressões fascistas e à sua tentativa de anular por meios violentos o resultado eleitoral.

Construir uma direcção revolucionária e aplicar um programa genuinamente socialista

As primeiras declarações de Luis Arce foram afirmando que o seu governo será um “governo de unidade nacional” e que “governará para todos os bolivianos”. Ao mesmo tempo, vários dos seus colaboradores falaram de aumentar os impostos sobre os super-ricos e deixar de pagar a dívida externa durante dois anos com o objectivo de poder cumprir as suas promessas de aumento do investimento nos serviços sociais. Dizem isto justamente num contexto em que a crise económica suprime a margem para realizar tal programa sem mexer nos lucros e propriedade dos capitalistas.

Assim, mesmo estas medidas limitadas implicariam um enfrentamento com a oligarquia. E o mesmo se pode dizer da reversão de uma série de medidas aplicadas pelo governo de Añez, como a detenção, desqualificação [para funções de cargos públicos] e julgamento de centenas de militantes operários e populares, a proibição do regresso de Morales ao país ou as contra-reformas económicas neoliberais, as privatizações e cortes aprovados.

Não é possível governar “para todos os bolivianos”. Arce e o MAS só têm dois caminhos: ou cedem às exigências dos oligarcas, abrem alas a uma nova ofensiva contra-revolucionária e fazem frente frente aos operários e camponeses que não aceitarão passivamente novos retrocessos nas suas condições de vida; ou respondem às necessidades dos milhões de trabalhadores, jovens e camponeses que os levaram ao poder combatendo decididamente a oligarquia. Mas isto só é possível avançando com medidas socialistas como a nacionalização da banca, das principais empresas e dos latifúndios para os colocar sob administração dos trabalhadores e do povo e levar avante uma planificação democrática da economia. Em simultâneo, é imprescindível fazer uma apelo internacionalista para que todos os oprimidos do resto do continente sigam esse mesmo caminho.

Os sectores mais conscientes e combativos do movimento operário, camponês e de juventude da Bolívia, da COB, das organizações populares e movimentos sociais devem erguer uma frente unitária de luta, apelando às bases do MAS para que se unam na luta por um programa socialista, exigindo aos seus dirigentes que o apliquem e ao mesmo tempo organizando a mobilização para impedir todas as pressões e manobras que o imperialismo já prepara com a oligarquia boliviana. Agora, mais do que nunca, é imprescindível que os militantes mais conscientes e combativos construam uma direcção revolucionária armada com o programa e os métodos do marxismo.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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