Na Guatemala, após duas semanas de protestos e mobilizações contra o governo e a maioria parlamentar, abriu-se uma profunda crise política. Em plena catástrofe causada pelos furacões Iota e Eta, e de uma pandemia descontrolada, levantou-se um movimento fortíssimo que revive o espírito dos dias de 2015. Nesse ano, uma luta de mais de 6 meses terminou com a saída do Executivo e a prisão do ex-presidente Otto Pérez e a sua vice-presidente Roxana Baldetti.

Agora, o que começou como uma grande marcha em direção à Plaza de la Constitución da Cidade de Guatemala no passado 21 de novembro, poderá converter-se num movimento que coloque em xeque a elite guatemalteca.

As imagens do átrio do Congresso da República em chamas, assim como da fortíssima repressão policial, difundiram-se como pólvora através das redes sociais, espalhando o movimento por todo o país, registando-se bloqueios espontâneos e manifestações nas principais cidades guatemaltecas.

O dia de protesto convocou-se em rejeição ao Orçamento Geral para 2021, aprovado a 17 de Novembro. Este, debatido às escuras e à traição, contornando toda a legalidade parlamentar, inclui um leque amplo de cortes enquanto aumenta os gastos destinados a salários e subsídios dos altos funcionários.

A indignação causada por estes novos cálculos, juntamente com a omnipresente corrupção política na Guatemala, unido à gestão miserável do desastre meteorológico e sanitário, fizeram com que as massas explodissem de novo, anunciando o que será uma longa provação para o governo de direita de Alejandro Giammattei, que se encontra suspenso por um fio.

Décadas de domínio de uma oligarquia ao serviço do imperialismo dos EUA deixaram um país submerso na miséria absoluta

Com uma burguesia tradicionalmente atrasada, débil e dependente do imperialismo estado-unidense, o desenvolvimento do capitalismo na Guatemala deu-se com base na exploração selvagem dos recursos naturais e no estabelecimento de profundas e extensivas redes de corrupção.

As multinacionais norte-americanas têm saqueado as selvas e montanhas do país, semeando a destruição humana e ambiental. O melhor exemplo disso é a United Fruit Company, que tem obtido enormes lucros à base do trabalho semiescravo de centenas de milhares de guatemaltecos.

Da mesma forma, o país serviu de base de operações para os Estados Unidos, desempenhando um papel fundamental nas numerosas intervenções americanas na América Central, como a dos Contras nicaraguenses.

Para assegurar estas posições políticas e económicas, a oligarquia nativa, pau mandado da metrópole do norte, impôs governos com marcadas tendências bonapartistas e repressivas. A consequência disto foi a sucessão de diferentes governos militares de extrema-direita entre 1970 e 1986, que deixaram mais de 200.000 assassinados e desaparecidos por uma repressão selvagem e massiva.

O resultado desta política é um país devastado pela pobreza e pela violência estrutural. Os dados oficiais do governo não deixam margem para dúvidas.

Cerca de 60% da população é pobre, sendo a situação particularmente grave nas zonas rurais onde essa percentagem chega a 80%. A desnutrição infantil é cerca de 50%, sendo o índice mais alto da América Latina.

Neste contexto, o impacto da pandemia tem sido avassalador, com mais de 120.000 infeções registadas e 4.000 mortes. O encerramento de lojas e a quebra das exportações e do turismo têm gerado um aumento acentuado do desemprego (atinge o valor oficial de 5,9%), embora o que é realmente notável no aspeto laboral é que 75% da população ocupada pertence ao setor informal1. Esta situação, aliada à ausência total de benefícios sociais, torna as condições de vida da grande maioria da população num verdadeiro pesadelo.

A tudo isto, há que somar os danos causados pelos furacões Iota e Eta, que deixaram no seu rasto uma centena de mortos ou desaparecidos, e centenas de milhares de afetados que ficaram totalmente despojados.

O Governo de Giammattei: corrupção galopante e gestão criminosa

Ao longo de toda a história do país, o caciquismo e o populismo reacionário têm sido a base tradicional da sua política e os grandes escândalos atingiram numerosos mandatários e políticos de todos os tipos.

A miséria política sempre foi tal que, nos últimos 20 anos, todos os governos têm sido condenados por apropriação indevida, suborno, desvios de capital ou evasões fiscais. Na verdade, a Comissão Internacional contra a Impunidade caracteriza a Guatemala como um “Estado estruturalmente corrupto”.

Este modelo putrefacto não se deve a uma desonestidade inerente aos políticos guatemaltecos, que se poderia resolver expulsando toda a casta e substituindo-a por políticos honestos. A corrupção faz parte do ADN do capitalismo na Guatemala.

O outro lado da mesma moeda é a violência gerada pelos gangues de narcotraficantes e as máfias, que mantêm a ordem capitalista através do terror nas áreas rurais.

Hoje, a trajetória do governo de Alejandro Giammattei é um exemplo claro desta gestão criminosa endémica a que sempre foi sujeito o país.

Em primeiro lugar, este reacionário firmou um pacto com Donald Trump para travar as caravanas de migrantes que se dirigiam ao México. O resultado é uma acumulação crescente de acampamentos de imigrantes em condições indignas. Uma cópia dos acordos entre a União Europeia e a Turquia de Erdogan.

No campo económico, é mais do mesmo. Com uma queda do PIB prevista para os 3%, o Fundo Monetário Internacional (FMI) fechou, sob a eloquente fórmula de Assistência de Emergência, um empréstimo de 600 milhões de dólares ao país no passado Junho. Esta injeção de capital, equivalente a 10% dos gastos públicos, foi parar diretamente aos bolsos dos corruptos e dos capitalistas.

Mas a sua política vai mais além. A primeira coisa que chama a atenção nos orçamentos em discussão é o corte nos gastos sociais num momento de catástrofe ambiental e social, ao mesmo tempo que há um aumento significativo nos salários dos parlamentares.

No entanto, o problema é mais grave. Aquele que será o maior orçamento da história deste país centro-americano (25% a mais do que em 2019) congela ou corta fundos destinados à educação, saúde, emprego e investimento social.

Além disso, diversos analistas disparam alarmes quanto à opacidade do destino dos fundos do orçamento, dando como certa a orgia de corrupções que está para vir. Por sua vez, o aumento do orçamento produz-se à base de um aumento da dívida pública2, que alcança um nível recorde e que trará consigo mais cortes, privatizações e pobreza.

A oligarquia num beco sem saída

A virulência dos protestos, assim como a profundidade da ruptura dentro do próprio governo, respondem à mesma causa. A deslegitimação do sistema e a busca de uma saída deu um salto qualitativo.

Nos protestos massivos de 2015, fruto da pressão das ruas, a classe dominante não hesitou em sacrificar por completo o seu governo e prender o ex-presidente Otto Pérez e a sua vice-presidente. Essa manobra foi interpretada pelas massas como uma grande vitória contra o principal herdeiro da casta militar fascista que sangrou o país, e foi vista como o nascimento de um novo regime democrático.

Depois disso, o comediante profissional Jimmy Morales assumiu o comando do Executivo, apresentando-se como uma figura limpa das manobras de bastidores da política tradicional. Mas isso não significou mais do que uma nova deceção.

Os casos de corrupção aumentaram paralelamente com as privatizações. A sua saída tortuosa ao acabar o mandato exigiu uma intensa campanha eleitoral para conseguir um lugar no Parlamento Centro-Americano, para assim escapar à justiça.
Neste momento, há uma classe dominante dividida que está à beira do precipício. Nenhuma saída oferece garantias de estabilização da situação, especialmente quando o imperialismo americano passa pelo seu pior período.

Se bem que o estabelecimento de um governo autoritário de carácter militar não esteja fora de questão, o que ocorreu na Bolívia empurra a balança para as operações parlamentares. Um golpe de Estado poderia gerar um cenário de confronto aberto no qual a burguesia não tem nenhuma garantia de vitória.

As manobras palacianas já começaram. Após um primeiro momento no qual o vice-presidente Guillermo Castillo rompeu publicamente com Giammattei, apelando à demissão de ambos e a novas eleições nas quais seria um candidato alternativo ao seu próprio governo, já houve uma rápida correção.

Perante a incerteza, o poder financeiro fez um apelo público a cerrar fileiras em torno do presidente eleito. Apesar de não ter qualquer credibilidade, não existe uma alternativa estabilizadora entre os representantes dos capitalistas no Parlamento.

O Executivo reivindicou a sua unidade, apela à calma e à negociação dos orçamentos e anunciou para Janeiro de 2021 uma renovação do Gabinete, que não se traduzirá em nenhuma mudança.

Na mesma linha, o Ministro do Governo e o chefe superior da Polícia estão a ser investigados pela repressão violenta destas semanas.

Quanto ao ponto-chave da situação, a aprovação dos orçamentos, o presidente do Congresso, Allan Estuardo Rodríguez, paralisou o seu trâmite pela câmara.

Esta medida não serviu para deter as mobilizações. As massas consideram-na uma jogada com o objetivo de ganhar tempo, o movimento continua a organizar protestos para que se demitam em bloco quase todos os deputados.

Chegou a hora da revolução socialista!

No dia 5 de Dezembro, um sábado, retomou-se a mobilização na Cidade da Guatemala, com um grande protesto estudantil em frente ao Congresso. Como alguns dos seus participantes explicaram aos media: “já não se trata de orçamentos, trata-se do sistema”.

Sem deixar lugar para dúvidas, as experiências recentes no Chile, Bolívia, Equador, Colômbia e Peru inspiram o movimento na Guatemala.

No caso guatemalteco, a proposta oficial de manter o estado de calamidade, que limita o direito à manifestação, resultou numa derrota severa no Congresso, e terá de ser revista.
O Movimento Semilla, de carácter populista, assim como o partido indígena WINAQ têm estado presentes nas mobilizações através dos seus activistas, o que lhes tem permitido ganhar uma certa autoridade entre as massas, mas a sua direção e os seus deputados não romperam com a lógica do sistema, e agem na prática para sustentar o regime.

Estas organizações pediram a convocatória de uma Assembleia Constituinte, e existe a possibilidade de que, se o Governo finalmente se encontrar sem saída, este seja o caminho que tome a oligarquia para tentar descarrilar a luta.

A experiência do governo de Jimmy Morales deixou clara às massas a ideia de que o exército de funcionários que parasitam a classe trabalhadora e camponesa da Guatemala controla absolutamente cada milímetro do Estado e impossibilita qualquer mudança através deste.

As organizações da esquerda operária, camponesa e indígena, assim como os grandes movimentos ecologista e feminista, têm de romper com a política de colaboração de classes e erguer um programa socialista unificado que reflita as reivindicações da maioria.

A atenção às vítimas de catástrofes meteorológicas, um grande investimento na saúde pública e na educação, a distribuição de terras, assim como acabar com a desnutrição, o desemprego e a corrupção são perfeitamente possíveis e realizáveis.

É necessário nacionalizar a banca, as multinacionais, as grandes empresas e as terras, e pô-las a produzir em benefício dos interesses da maioria da sociedade, sob controlo democrático do povo. O socialismo é a única saída da barbárie.

NOTAS
1. https://www.losrecursoshumanos.com/la-crisis-economica-mundial-incremento-la-tasa-de-desempleo-en-guatemala
2. 2019 fechou com uma dívida pública de 11.305 milhões de quetzais [moeda da Guatemala]. Em Setembro esta era já de 20.689 milhões de quetzais. Isso representa 35% do PIB, mas em relação à arrecadação de impostos, a dívida pública alcançará 325% em 2020.

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