No domingo, 18 de outubro, realizou-se uma grande mobilização para comemorar o primeiro aniversário do início do processo revolucionário chileno. Na capital, a Plaza Italia — rebatizada de Plaza de la Dignidad pelos manifestantes — e as ruas em redor encheram-se com mais de 100.000 jovens e trabalhadores, uma afluência massiva que se repetiu na maioria das cidades do país: segundo os organizadores, mais de um milhão de pessoas tomaram as ruas, apesar do anúncio do destacamento de mais de 40.000 carabineros (polícias) e das ameaças de repressão.

Sem dúvida, isto refrescou de maneira contundente a memória do presidente Sebastián Piñera e da burguesia chilena a respeito da revolução: ela não se apagou, e o grito de "Abaixo o governo assassino!" continua vivo, assim como a vontade de acabar de uma vez por todas com a barbárie capitalista, ainda mais quando a crise se aprofunda, agravando as desigualdades sociais e a opressão dos trabalhadores e do povo nas mãos da oligarquia chilena.

[Este artigo foi originalmente publicado em castelhano no dia 21 de Outubro, antes da celebração do referendo para a Assembleia Constituinte.]

O "processo constituinte", um balão de oxigénio para Piñera e para a oligarquia

O protesto iniciado há um ano contra a subida dos preços dos transportes públicos em Santiago transformou-se num processo revolucionário que ultrapassou desde o primeiro momento os dirigentes reformistas da esquerda, tanto do Partido Socialista (PS) como do Partido Comunista do Chile (PCCh) e da Central Unitaria de Trabajadores de Chile (CUT).

O grito dos jovens e dos trabalhadores mobilizados, “não são 30 pesos, são 30 anos”, resumia muito bem o ânimo de milhões de pessoas. Depois da suposta "transição democrática" que se seguiu â queda da ditadura, o aparato estatal continuou a ser controlado pelos mesmos reaccionários pinochetistas que massacraram o povo no golpe militar de Setembro de 1973, e uma oligarquia económica de não mais de 100 famílias conduziu o país a uma situação de espantosa desigualdade, com salários de miséria, pensões privatizadas, um sistema de ensino público devastado para o bem dos negócios do patronato e da igreja, falta de habitação e cortes sociais insuportáveis.

Piñera respondeu ao impulso das massas com uma táctica dúplice. Por um lado, recorreu a uma repressão brutal, que causou dezenas de mortos, milhares de feridos e outros tantos detidos selvaticamente torturados nas esquadras. Até à data, existem centenas de presos políticos e nenhum dos políticos e polícias responsáveis ​​por esta repressão foi julgado.

A violência do Estado foi o pau... Mas Piñera também usou a cenoura, oferecendo-se para reformar a constituição e convocar uma Assembleia Constituinte (AC) com os mesmos actores políticos que criaram o actual desastre. A grande maioria da esquerda parlamentar e dos sindicatos oficiais (liderados pela CUT) aceitou descarrilar o movimento revolucionário em troca de eleições para eleger um "novo" parlamento burguês.

Após meses de manifestações massivas, históricas greves gerais impostas desde a base e conflitos permanentes em praticamente todos os sectores da economia, o movimento sofreu um declínio significativo devido à absoluta defesa da política de conciliação de classes adoptada pelas direcções do PS e do PCCh, assim como dos sindicatos e movimentos enquadrados na Mesa de Unidad Social (MUS).

As cúpulas do PS, do PCCh e da CUT mostraram em todos os momentos uma desconfiança orgânica para com as massas e tentaram arrefecer a situação, explorando a ideia da "Constituinte" como a única opção para retirar a direita do poder, precisamente quando Piñera estava entre a espada e a parede. Obviamente, o medo do aprofundamento da revolução — do surgimento de organismos de duplo poder que, de forma embrionária e potencial, estavam presentes através de conselhos e outras organizações unitárias de luta — acelerou a viragem destas direcções para a conciliação.

Esta estratégia, publicitada e apoiada em uníssono por toda a opinião pública burguesa, tem gerado ilusões. Muitos lutadores acreditam sinceramente que a AC vai resolver os problemas fundamentais dos oprimidos, mas acreditar que um parlamento burguês dominado pelos mesmos partidos da direita e da social-democracia que alternaram no governo estes anos fará a diferença é não encarar a realidade.

Os acontecimentos chilenos voltaram a demonstrar a necessidade de construir uma estratégia de classe, revolucionária e socialista para fazer avançar a revolução, para não a estrangular. O desemprego, o alto custo de vida, a falta de pensões dignas, de habitação, o direito à educação e à saúde, a liberdade do povo mapuche não têm solução dentro do capitalismo. Nenhum parlamento burguês — e a AC será isto — expropriará os capitalistas ou avançará com a nacionalização dos sectores fundamentais da economia, e tampouco purgará de fascistas o aparelho de Estado. A renúncia da esquerda reformista à luta pelo socialismo e pelo poder dos trabalhadores só serviu para dar um enorme balão de oxigénio à classe dominante, que conseguiu recompor temporariamente a situação a seu favor.

Com o movimento de massas descarrilado para o terreno do parlamentarismo burguês, o presidente Piñera ergueu-se como máximo defensor e garante da celebração do referendo constituinte que, após ser adiado em Abril, será realizado no domingo, 25 de Outubro.

A catástrofe económica e sanitária

Ao longo deste período e como resultado da pressão da mobilização, Piñera foi forçado a reformular o seu governo por cinco vezes com o único propósito de dar uma imagem “renovada” e evitar desta forma a sua própria renúncia. No entanto, todo este jogo das cadeiras não foi capaz de resolver a queda da sua popularidade para 12% (de acordo com a sondagem da Plaza Pública Cadem de Julho).

Este ódio a Piñera só se agravou ainda mais devido à crise económica e de saúde desencadeada nos últimos meses, com mais de meio milhão de infectados com covid-19 e mais de 14.000 mortos, num país de apenas 19 milhões de habitantes. Apesar destes dados dramáticos, o governo não reforçou o sistema de saúde, nem tomou medidas sociais para proteger a saúde e a vida das famílias trabalhadoras, demonstrando mais uma vez que a sua única prioridade é manter os lucros dos grandes capitalistas, entre os quais está o próprio Piñera.

O PIB chileno colapsou 14,1% no segundo trimestre — a maior queda desde 1986. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) já destacou que, após a crise de 2008, a população que pode cair na pobreza num contexto de recessão económica chega a 37%. E foi exatamente isso que aconteceu. O desemprego oficial já atingiu os três milhões de trabalhadores, dados que não incluem os sectores que vivem do trabalho informal e que ficaram sem rendimentos como resultado das quarentenas impostas.

A miséria agravou-se a tal ponto que o governo habilitou um mecanismo para que os trabalhadores pudessem retirar 10% do seu fundo de pensões para ter como encher a despensa. Mas esta medida, que foi amplamente reivindicada por sectores da esquerda parlamentar, é uma farsa completa e não pode mitigar a escala da catástrofe. Com a retirada dessa parte das pensões, 27% dos trabalhadores ficaram sem nada no fundo, ou seja, sem nenhum tipo de prestações para a reforma. Além disso, estima-se que caso a situação se agrave e seja necessário um segundo levantamento, esse número chegará a 48%. Não se deve esquecer que um dos principais problemas do país é a extrema pobreza dos pensionistas, fruto da existência de um sistema de pensões totalmente privatizado.

Tudo isto empurra as massas a voltar à luta e também explica por que a trégua na mobilização nas ruas foi tão precária. O capitalismo chileno não tem nada a oferecer e continua a acumular material explosivo. Mesmo durante a primeira vaga da pandemia, houve mobilizações em algumas das principais comunas de Santiago do Chile, onde até 60% da população vive da economia informal. “Não é contra o confinamento, é contra a fome”, destacaram os participantes. Estes protestos foram duramente reprimidos e, embora tenham sido explosões pontuais e restritas, geraram uma onda de simpatia em todo o país, seguidos por manifestações de apoio com caceroladas e concentrações para exigir medidas eficazes para acabar com a fome e a miséria que assolam milhões de chilenos.

A esquerda parlamentar e os sindicatos suportam a política de unidade nacional

Depois do impasse na mobilização, desde o início de Setembro os tradicionais protestos de sexta-feira na Plaza Dignidad foram retomados para exigir a queda do governo. Embora nas primeiras semanas tenham reunido apenas algumas centenas de manifestantes, o número de participantes tem vindo a crescer a cada semana, desafiando a dura repressão que se mantém, assim como a proibição explícita de reuniões de mais de 50 pessoas. A massiva mobilização do dia 18 de Outubro significou um grande passo em frente e um grande passo que mostra o verdadeiro ambiente de combate que existe entre a classe trabalhadora e oprimidos do Chile.

No entanto, essa atitude abnegada das massas contrasta com a actuação dos dirigentes sindicais e da esquerda reformista, que levantaram como sua bandeira o mais lamentável cretinismo parlamentar. Desde o início do processo revolucionário, colocaram todos os seus esforços exclusivamente na promoção de uma "nova transição democrática" por meio de um processo constituinte. É disso que trata a celebração do plebiscito de 25 de Outubro, onde os chilenos decidirão se querem substituir a Constituição de Pinochet por uma nova e, em caso afirmativo, se a mesma será elaborada por uma convenção constitucional (composta por constituintes especificamente eleitos para esta tarefa) ou por uma convenção mista (metade parlamentares e metade constituintes).

Com esta manobra, a burguesia chilena, amparada pelos dirigentes reformistas, alcançou parcialmente o seu objetivo de tirar das ruas a classe trabalhadora — o único sujeito que pode transformar as penosas condições de vida das massas com a sua acção directa — e colocar o foco sobre as instituições burguesas como se estas pudessem garantir os direitos democráticos e sociais mais básicos.

A oligarquia pretende apresentar-se com um verniz “democrático”, “modernizar” uma constituição totalmente colocada em causa e vinculada directamente à ditadura militar, para tentar lavar a cara do sistema e conter os protestos sociais. No entanto, estas “reformas” não poderão alterar em nada a dominação económica e política dos capitalistas, o seu controlo do exército e do aparelho de Estado, nem, claro está, o regime de propriedade privada dos meios de produção. Enquanto todo este poder estiver nas mãos dos oligarcas de sempre, nenhuma constituição resolverá os problemas dos trabalhadores e oprimidos.

O referendo constitucional é a única "alternativa" que a esquerda parlamentar defende há meses. Por isso, como explicámos anteriormente, amplos sectores dos trabalhadores e da juventude acabaram por conceber este voto como a forma mais viável de ferir o regime de Piñera e conseguir derrotá-lo. Mas os mecanismos de defesa que a Constituinte oferece ao regime são muitos e variados. No pântano da comissão constitucional, nas negociações das comissões, a direita manobrará e ganhará concessão após concessão da esquerda reformista.

Quando o "Acordo pela Paz e a Nova Constituição" foi assinado a 15 de Novembro de 2019, deu-se suporte ao governo de Piñera ao deixar a iniciativa nas suas mãos. Esse pacto, firmado pela direita, pelo PS e pela Frente Ampla (FA), contou inicialmente com a relutância da Mesa de Unidade Social — plataforma que reúne os principais movimentos sociais e sindicatos do país —, a CUT e o Partido Comunista. Mas estes últimos acabaram por apoiar a estratégia do pacto e, abandonando a mobilização social, desistiram de aprofundar a revolução e apontar uma alternativa para a tomada do poder com base na força do movimento operário. Tal como o PS, depositaram todas as esperanças na Constituinte.

Por um governo dos trabalhadores. Pelo Socialismo!

Enquanto criam ilusões na Assembleia Constituinte, o governo e os capitalistas continuam a preparar-se para esmagar o movimento revolucionário. No mês passado, Piñera investiu mais de 15 milhões de dólares para equipar militares e polícias. Foi anunciado o envio de 40.000 carabineros para controlar as manifestações. A burguesia está mais consciente do que as direcções da esquerda sobre qual é o ambiente real entre a população e a possibilidade de uma nova explosão revolucionária. Isto que pode ser visto claramente nas declarações do chefe dos carabineros: “Há meses que nos estamos a preparar para isto. Depois do 18 de Outubro [de 2019], muitas lições foram aprendidas. Adquirimos uma experiência que não tínhamos e que permitiu que nos preparássemos durante todo este tempo”. Se as direcções da esquerda e dos sindicatos tivessem tirado as mesmas conclusões e com a mesma clareza que a classe dominante, a queda do governo e do próprio capitalismo chilenos já seriam uma realidade.

A verdade é que os dados da repressão que este ano de mobilizações deixa são absolutamente assustadores. De acordo com dados oficiais fornecidos à Human Rights Watch, os carabineros detiveram mais de 15.000 pessoas só entre 18 de Outubro e 19 de Novembro, e “prenderam” outras 2.000 por violar o recolher obrigatório durante o estado de emergência. Pelo menos 30 manifestantes foram assassinados e, segundo informações do próprio Ministério da Saúde, os serviços de emergência médica do país atenderam 12.652 pessoas feridas nas manifestações.

As imagens, de há algumas semanas, de um soldado empurrando um manifestante de 16 anos de uma ponte viajaram pelo mundo. As prisões e torturas continuam a acontecer a cada mobilização. sem ir mais longe, a manifestação de 18 de Outubro terminou com uma morte e mais de meio milhar de detidos.

É muito significativo que Piñera tenha decidido, finalmente, não se apresentar publicamente perante o país (quando já tinha sido anunciado) no aniversário do 18 de Outubro. É um claro reflexo de que a burguesia não quer esticar a corda mais do que o estritamente necessário, e de que sabe que a repressão num dado momento pode estimular ainda mais a luta ao invés de a travar.

Não se pode exigir maior esforço das massas chilenas. Ao longo de um ano, entregaram-se totalmente à tarefa de acabar com este regime criminoso, manifestando uma clara vontade de transformar a sociedade.

Não queremos governos burgueses ao serviço da oligarquia industrial e financeira, mesmo que se envolvam demagogicamente com as reivindicações da Constituinte. Precisamos de um governo dos trabalhadores que defenda e ponha em prática um programa socialista que nacionalize os bancos, os monopólios e a terra, sem indemnização e sob o controlo democrático dos trabalhadores e das suas organizações; que traga educação e saúde públicas dignas, gratuitas e universais; salários dignos e emprego estável; direito à habitação pública acessível; pensões 100% públicas e decentes; liberdade para todos os presos políticos e a purga imediata dos fascistas do exército, da polícia e dos tribunais; que, juntamente com o movimento, imponha o julgamento e a punição dos responsáveis ​​pela repressão e crimes da ditadura e conceda todos os direitos democráticos ao povo Mapuche. Este é o programa pelo qual vale a pena lutar e sacrificar a vida.

A classe operária e a juventude chilena passarão pela experiência da Assembleia Constituinte, que será mais um nado morto do capitalismo, e sobre os seus ensinamentos impulsionará a segunda fase desta revolução inacabada que não pode ter outra forma ou outro conteúdo senão o da revolução socialista.

 
 
 

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