O debate de investidura de Núñez Feijóo terminou como estava previsto. O facto de se gabar de ter os votos mas que não ia ser presidente porque não queria trair a Espanha, só serviu para sublinhar a sua impotência.

Este fracasso segue-se ao seu apelo falhado de "mobilizar as ruas" contra a amnistia e o direito do povo catalão a decidir. As 40.000 pessoas reunidas no bairro de Salamanca, em Madrid, muitas das quais chegaram em autocarros vindos de outras partes do Estado espanhol, não têm comparação com os mais de 300.000 participantes convocados pelo Podemos em janeiro de 2015 na Marcha pela Mudança, ou com os mais de 600.000 participantes da última manifestação da Diada em Barcelona.

A crise da direita

O debate sobre a investidura permitiu uma trégua temporária nos confrontos internos do bloco de direita. Mas as consequências do choque da sua derrota nas eleições de 23 de junho estão longe de ter terminado. PP e Vox continuam presos num dilema fatal: se seguirem caminhos separados, não poderão governar, e se se unirem em torno de um programa franquista, espanholista, chauvinista e racista – o único que facilita essa união – suscitarão uma enorme rejeição social que, de momento, lhes fecha as portas de La Moncloa.

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O debate de investidura de Núñez Feijóo terminou como estava previsto. O facto de se gabar de ter os votos mas que não ia ser presidente porque não queria trair a Espanha, só serviu para sublinhar a sua impotência.

A tensão entre uma ala que se pretende mais "moderada" e "europeia" e os nostálgicos do franquismo vem de longe. A súbita ascensão eleitoral do Vox em 2019 aguçou a tensão e favoreceu a ala abertamente trumpista do PP, encabeçada pelo Triplo A da direita espanhola – Ayuso, Aguirre e Aznar – e apoiada por sectores nada negligenciáveis da classe empresarial, exploraram os preconceitos de camadas atrasadas e desmoralizadas dos trabalhadores, de muitos sectores que vivem do aparelho de Estado e da ânsia de enriquecimento fácil de milhões de pequeno-burgueses. Foi por isso que a aliança com o Vox nas eleições municipais e autonómicas de maio se impôs e deu muito bons resultados perante a desmobilização da base social da esquerda.

Mas a sua alegria durou pouco tempo. As eleições de julho foram um teste à realidade e voltaram a colocar o PP e o Vox no ponto de partida. Nas fileiras de Abascal, a derrota já provocou um primeiro terramoto. Os líderes mais ligados ao grande capital, incluindo o seu antigo guru económico Rubén Manso e o antigo porta-voz parlamentar Iván Espinosa de los Monteros, foram excluídos do partido por uma liderança mais falangista e ultra-católica.

Mas as coisas não estão a correr melhor no PP e as espadas continuam em riste. Depois de momentos de incerteza, de contradições e de uma desorientação que se manifestou em declarações para todos os gostos, o discurso de Feijóo no debate de investidura foi, acima de tudo, uma tentativa de reunificação da direita, fazendo suas as posições do Vox sobre temas como a violência de género ou a crise climática, e com a oposição frontal à amnistia e ao direito de decisão do povo catalão como eixo central do seu programa espanholista.

O plano do PP parece claro: mobilizará todos os seus recursos, incluindo as poderosas alavancas da alta magistratura e o esquadrão mediático que controla, para repetir uma oposição selvagem contra o novo governo de coligação.

Pedro Sánchez: paz social e amnistia, com o Podemos nas lonas

A derrota da tentativa de investidura de Feijóo abre caminho para que Pedro Sánchez forme um governo totalmente adaptado às suas necessidades e deixa-o livre para reforçar a sua política de paz social e desativar definitivamente o levantamento catalão, o maior desafio ao regime de 78 em toda a sua história.

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O plano do PP parece claro: mobilizará todos os seus recursos, incluindo as poderosas alavancas da alta magistratura e o esquadrão mediático que controla, para repetir uma oposição selvagem contra o novo governo de coligação.

Depois de ter esmagado Feijóo sem usar da palavra no debate e com o apoio incondicional de Sumar, Sánchez prepara-se para lançar uma amnistia que, em troca de libertar os líderes do independentismo catalão de eventuais consequências penais e pesadas multas, reoriente o movimento de libertação nacional para a política institucional, negando qualquer possibilidade de um referendo de autodeterminação.

Não há dúvida de que as classes dominantes espanhola e catalã ficarão muito gratas a Sánchez se esta política for bem sucedida. Com os seus lucros a atingirem máximos históricos, com os dois grandes sindicatos a seus pés, impedir um levantamento catalão é essencial para sustentar um ambiente de estabilidades para os negócios.

Mas esta amnistia não será, de forma alguma, uma concessão graciosa de Sánchez, tal como a utilização de outras línguas do Estado espanhol no Congresso. Ambas as questões implicam uma viragem de 180º na posição adotada pelo PSOE até há poucas semanas. Felipe González e as outras múmias "socialistas" estão furiosos com esta mudança e não parecem compreender que não se trata de um capricho de Sánchez. As mudanças na política do PSOE e a sua viragem a favor da amnistia foram impostas por uma enorme pressão das ruas. As imensas mobilizações de 2011-2015 em todo o Estado espanhol e de 2016-2019 na Catalunha continuam a provocar efeitos políticos que obrigam Sánchez a fazer certas concessões à esquerda se quiser manter-se no poder face à ofensiva permanente da direita.

São estas as razões que levam Sánchez a ir tão longe na amnistia. Sánchez sabe bem que o aparelho de Estado vai fazer tudo para a sabotar. Mas o líder do PSOE sabe que pode contar com um bloco parlamentar que quer evitar a direita em La Moncloa, porque todos perdem com esta solução. É por isso que está a enveredar por um caminho cheio de dificuldades, que espera poder ultrapassar. O seu apelo à concórdia e ao encerramento do conflito catalão, ou seja, ao fim do movimento de massas, tem um apoio muito sério do grande capital e das formações políticas parlamentares que não põem em causa a ordem social e económica atual.

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Sánchez prepara-se para lançar uma amnistia que visa reorientar o movimento de libertação nacional para a política institucional, negando qualquer possibilidade de referendo sobre a autodeterminação.

É este o paradoxo da situação atual. Sánchez cavalga uma mobilização antifascista e feminista, mas conduz essa mobilização para a calma do pacto social, para a salvaguarda do lucro das empresas e para o amortecimento das reivindicações de emancipação nacional.

É claro que as políticas do PSOE não vão resolver os gravíssimos problemas que a classe trabalhadora sofre. Nem o elevado custo de vida, nem as dificuldades de acesso à habitação, nem a deterioração dos serviços públicos mais essenciais, nem a precariedade laboral, vão ser resolvidos mantendo as políticas pró-capitalistas e a estratégia de paz social defendida pelo PSOE. Embora a curto prazo Sánchez esteja a viver uma situação de sonho, sem oposição efectiva à sua esquerda e com a bênção tácita dos poderes económicos e financeiros, a longo prazo as suas políticas acabarão por minar o seu apoio social e reabrirão as portas ao regresso da reação.

O reforço a curto prazo da posição de Sánchez também beneficia das perdas do Podemos. Yolanda Díaz tem desempenhado um papel fundamental nesta tarefa. Nomeada da forma mais burocrática possível por Pablo Iglesias, a sua hostilidade brutal para com formação roxa [Podemos] não tem paralelo. Ao excluir Irene Montero das listas e ao tentar evitar a todo o custo a sua presença no futuro executivo da coligação, deixa bem claro o que pretende.

Yolanda Díaz foi demasiado longe. Só lhe importa cumprir a sua missão, custe o que custar, e garantir assim um papel proeminente num governo que se sustém nas posições mais moderadas e aceitáveis para os poderes económicos. Mas se Yolanda Díaz chegou até aqui, não foi por acaso. Os graves erros políticos da direção do Podemos, a sua recusa em romper com este colaboracionismo ministerialista e o seu abandono da luta de classes permitiram que os seus inimigos atacassem sem que a sua base se pudesse mobilizar, paralisada pela estratégia dos seus dirigentes.

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Mais do que nunca, precisamos de uma esquerda coerente, que não se contente em "vencer" a direita com escaramuças parlamentares, mas que a combata abertamente com uma política de classe.

A próxima legislatura vai estar sujeita a muitas pressões contraditórias, mas uma coisa é certa: a luta de classes vai continuar a encontrar formas de se expressar. É por isso que precisamos mais do que nunca de uma esquerda consequente, que não se contente em "vencer" a direita com escaramuças parlamentares, mas que a combata abertamente com uma política de classe. O reformismo esforça-se por mostrar aos capitalistas que os seus interesses estão mais bem garantidos sob o seu governo do que sob um governo de reação. A esquerda de que precisamos não se concilia com os nossos exploradores, mas luta para os expropriar e para construir uma sociedade socialista.

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