Muito mais do que um homicídio
As últimas palavras que Bruno Candé ouviu foram “vai mas é para a senzala”. Seguiram-se quatro tiros à queima roupa. Assim foi assassinado um homem negro, às 13 horas e numa movimentada avenida de Moscavide, por um facho que o tinha já agredido e ameaçado de morte com insultos racistas, aos gritos nessa mesma avenida.
Este foi apenas o primeiro crime. Aquilo que de seguida vemos, no entanto, é uma sucessão interminável de crimes cometidos pelo Estado burguês e pelas empresas de comunicação social.
Cada artigo de “informação”, cada coluna de opinião, cada reportagem ou peça jornalística, cada palavrinha escrita ou proferida negando ou tão-somente lançando a dúvida sobre a natureza explicitamente racista deste homicídio é nada menos que um novo crime racista. E aqui já não se trata de crimes com uma única vítima, já não se trata de um acto de violência individual. Não. Os crimes do Estado e da comunicação social burguesa não são cometidos apenas contra a memória de Bruno Candé, não são cometidos apenas contra a sua família — a mulher que ficou sem o seu marido, as três crianças que ficaram sem o seu pai. Estes crimes são contra todos os que sofrem a violência racista, são contra todos os oprimidos, são contra todos os trabalhadores e explorados, e é de todos nós que merecem uma resposta contundente.
“Não há capitalismo sem racismo”
Para entender esta multidão de ataques racistas, que se repete pelo menos pela terceira vez este ano — a primeira foi depois do assassinato de Luís Giovani, a segunda depois do espancamento de Cláudia Simões —, há que entender que o racismo é intrínseco ao capitalismo.
O capitalismo português, especificamente, depende da superexploração da força de trabalho para garantir os lucros em vários sectores fundamentais — como na agricultura, na construção civil, no turismo, na restauração, na limpeza industrial, etc. —, ou seja, depende de salários abaixo do mínimo e até mesmo abaixo do que é necessário para sobreviver. A maioria destes trabalhadores superexplorados é imigrante, descendente de imigrantes, negra, asiática, brasileira... Só se pode manter uma massa de trabalhadores numa tal situação de superexploração — portanto, de subemprego e desemprego cíclicos, de miséria, de fome — através do terrorismo de Estado. Para tal terrorismo ser aplicado, são precisos homens que estejam não apenas dispostos a aplicá-lo, mas desejosos de aplicá-lo. É assim que o racismo se torna uma parte fundamental do Estado português.
Portanto, a polícia só funciona se o racismo for alimentado nas suas fileiras. Não se pode agredir sistematicamente a população pobre e negra da periferia de Lisboa sem ser um convicto racista. E não é difícil demonstrar que a PSP é de facto a maior e mais violenta organização racista a operar em Portugal actualmente. Os espancamentos e assassinatos de pessoas negras levados a cabo pela polícia, as páginas de polícias nas redes sociais que transbordam de comentários racistas, os repetidos casos de ostentação de símbolos fascistas e nazis dentro da PSP... tudo isto deixa claro o carácter desse órgão.
Não é surpreendente, assim sendo, que após o assassinato de Bruno Candé a PSP se tenha apressado a fazer declarações à imprensa, afirmando que nenhuma das testemunhas ouvidas mencionou racismo e que não há qualquer indício de se tratar de um crime de ódio. Nisto, contrariou todas as declarações dadas por testemunhas do homicídio aos primeiros jornalistas que se deslocaram ao local. A Polícia Judiciária, por sua vez, declarou que “tudo aponta para uma desavença por motivos fúteis”. É isto que tem a dizer-nos o Estado quando um homem negro é assassinado a tiros de pistola enquanto ouve insultos racistas, na rua, em pleno dia e perante dezenas de testemunhas.
Como sempre, por toda a comunicação social foram acriticamente reproduzidas as absurdas declarações oficiais da PSP e da PJ — isto aconteceu até mesmo naquelas empresas que já tinham publicado e transmitido as denúncias inequívocas de racismo feitas pelas testemunhas do crime. Uma tal articulação entre o Estado e o grande capital da comunicação social é a prova mais acabada de que a classe dominante portuguesa está bem ciente de que ocultar a violência racista e as suas causas corresponde aos seus interesses imediatos. Mesmo em casos tão gritantemente racistas como este, determinar as causas do crime e reconhecer o seu carácter seria abrir um precedente perigosíssimo para o funcionamento de todo o capitalismo português.
A luta organizada é o único caminho!
Existe ainda outra razão importante para a classe dominante negar o racismo tão energicamente com o seu Estado e as suas empresas de comunicação: o medo dos oprimidos.
A última década foi marcada por um crescimento — por vezes lento, outras vezes explosivo — da luta contra o racismo, sempre pontuado pelos inumeráveis episódios de violência racista, a maior parte dos quais protagonizados pela PSP.
O início de 2020, com os protestos contra a violência racista de Estado, mostrou-nos nítidos sinais de que se está a levantar um movimento anti-racista em Portugal com um carácter de classe bem definido e um tremendo potencial revolucionário. É por isto que o movimento Black Lives Matter e a massiva insurreição contra o racismo nos EUA, encabeçada pela juventude afro-americana, tiveram um efeito electrizante na juventude negra em Portugal — por todos os motivos que já expusémos, a identificação com a luta nos EUA é imediatamente estabelecida. A este respeito, a manifestação anti-racista do passado dia 6 de Junho foi nada menos do que histórica.
Mais uma vez, um assassinato racista, as mentiras do Estado, a propaganda nojenta das empresas de comunicação social e as provocações da extrema-direita exigem de todas as organizações de trabalhadores e de toda a esquerda a mais enérgica resposta. É preciso mobilizar e organizar para a luta revolucionária contra o racismo e contra todo o sistema que o suporta!
É preciso uma solidariedade real — material e continuada — dos sindicatos e comissões de trabalhadores com o movimento da juventude negra. É preciso uma frente unida dos trabalhadores e da juventude que exija direitos iguais para imigrantes e nacionais, habitação, condições de trabalho e salários dignos para pôr fim aos guetos e à exploração brutal dos trabalhadores negros e imigrantes; que lute pelo controlo democrático das forças de segurança e pelo saneamento e punição exemplar de todos os racistas e fascistas; que exija saúde, educação e transportes gratuitos; que, para conseguir tudo isto, não tenha qualquer pudor em colocar no seu programa a nacionalização dos sectores chave da economia, da banca e de todas as grandes empresas, sob controlo planificado dos trabalhadores.
Acima de tudo, é preciso construir uma esquerda combativa e romper de uma vez por todas com as direcções reformistas que mascaram o carácter racista do Estado, que insistem em defender a polícia e todo o sistema de justiça da classe dominante, que procuram canalizar a luta para o parlamento e restantes vias institucionais, sendo elas quem tem os melhores instrumentos para dar força à mobilização e à organização contra o racismo e tudo aquilo que oprime e divide a classe trabalhadora.
A luta contra o racismo é a luta contra o capitalismo e só pode ser feita contra o capital, o seu Estado e todas as suas organizações. Faz-se na rua, nos bairros, nos locais de trabalho e nas escolas, construindo as organizações da nossa classe e preparando as nossas forças para criar uma sociedade livre de exploração e opressão, o socialismo.
Está na hora da organização e da luta!
Junta-te à Esquerda Revolucionária!
Junta-te à luta revolucionária contra o racismo e todas as formas de opressão!