O crescimento da agricultura no sul do país fez disparar, nos últimos anos, a exploração de trabalhadores imigrantes e o tráfico humano. Com a pandemia, condições de vida e de trabalho que já eram em si mesmas uma crise social e sanitária tornaram-se ainda piores.
Agricultura em crescimento, força de trabalho em falta
O sector agrícola conheceu uma expansão muito significativa na última meia década. De acordo com o PORDATA, entre 2012 e 2018, a formação de capital fixo na agricultura cresceu 29%, totalizando 1.023 milhões de euros, e, em 2017, este sector foi avaliado em 7.500 milhões de euros. O grande capital do sector, que representava apenas 2,4% das empresas em 2016, explorou quase 60% da superfície agrícola utilizada; além disso, a dimensão média das explorações tem vindo a aumentar, bem como a presença de capital imperialista — seis fundos financeiros detêm 65% do olival no Alqueva.
Este crescimento e concentração de capital registou-se principalmente no Alentejo. A região concentra perto de 58% da superfície agrícola do país e as explorações têm uma média de 59 hectares de área — 8 vezes a extensão média registada no norte e centro de Portugal. Apesar do agravamento da seca e desertificação, a região alentejana aumentou a sua produção agrícola graças aos projectos de regadio. O Perímetro de Rega do Mira e a Barragem do Alqueva tornaram-se verdadeiros oásis, permitindo o desenvolvimento de várias culturas: frutos vermelhos, uva de mesa, olival intensivo, amêndoa, entre outras. Os dados mais recentes são de 2016 e indicavam 604.511 assalariados agrícolas, dos quais 484.982 a tempo parcial.
O único problema que se colocou aos capitalistas foi o da força de trabalho. Além de poucos trabalhadores em idade activa permanecerem nas zonas rurais, os trabalhadores autóctones são impossíveis de submeter às condições brutais de exploração que são indispensáveis aos lucros deste sector. Foi por isso que os patrões recorreram a trabalhadores imigrantes, pobres, “ilegais” — portanto, sem direitos —, que não sabem falar português, que, enfim, estão nas piores condições possíveis para responder à violência do patronato.
Os novos jornaleiros
As condições de trabalho dos imigrantes na agricultura são em tudo semelhantes às dos jornaleiros agrícolas durante o fascismo: contratos sazonais, mal pagos, sem protecção social ou sanitária, obrigando estes trabalhadores a palmilhar o Alentejo e o Algarve ao sabor das campanhas agrícolas.
Os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de 2019 indicam que cerca de 12.700 imigrantes residiam no distrito de Beja. Este valor diz respeito unicamente aos trabalhadores documentados. Por isso, uma estimativa mais real aponta para mais de 30 mil trabalhadores imigrantes, a grande maioria originários do Nepal, Bangladesh e Índia, mas também do Paquistão, Moldávia, Roménia, Brasil, Senegal ou Guiné-Bissau.
Quando não são angariados por máfias que os escravizam através de dívidas, são recrutados por empresas de trabalho temporário (ETT) que não oferecem qualquer protecção uma vez acabada a campanha agrícola. São práticas comuns o assédio laboral e o roubo do salário e dos descontos para a Segurança Social por parte de ETTs que “desaparecem” de uma hora para a outra. Nalgumas explorações são utilizadas milícias privadas que mantêm os trabalhadores sob coacção.
Os ritmos de trabalho são extenuantes, com temperaturas altíssimas, jornadas longas e trabalho pago à peça. Do salário ainda é descontado o alojamento, o transporte e a alimentação, com cálculos feitos ao prazer dos patrões. Várias dezenas de pessoas são alojadas em contentores exíguos e insalubres nas propriedades agrícolas. Por vezes, relatos como o que mencionava 55 pessoas a viver dentro de um T3 com uma única cozinha e casa-de-banho chegam à imprensa.
São estas as condições enfrentadas pela camada mais precária e desprotegida da classe trabalhadora — os trabalhadores imigrantes do sector agrícola.
O Estado burguês mantém os imigrantes na clandestinidade
A única resposta que o Estado tem para os trabalhadores imigrantes é a manutenção da precariedade, a repressão e a clandestinidade. As condições exigidas pelo SEF para autorização de residência são impossíveis de cumprir para a maioria: provar a entrada legal no país, descontar para a segurança social ou pura e simplesmente ter alguma relação contratual com o patrão.
O débil capitalismo português não sobrevive sem a sobre-exploração da força de trabalho imigrante ou descendente de imigrantes. Para a burguesia, é essencial ter acesso a uma camada de proletários que seja fácil de despedir e esteja suficientemente desesperada para aceitar trabalhar na semi-clandestinidade, sem contratos, sem protecção social... e até mesmo num regime análogo à escravatura. É por isto que o Estado burguês nega os direitos democráticos a esta parte da classe trabalhadora e permite que as máfias que traficam imigrantes, não só para a agricultura como também para a prostituição, continuem a operar impunemente no país — como na União Europeia — há décadas.
O estatuto de “cidadãos de segunda” atribuído aos imigrantes actua ainda em benefício da burguesia de uma outra forma: divide a classe trabalhadora segundo linhas étnicas ou nacionais, dificultando a união contra o inimigo comum — a burguesia.
Em situações de desemprego e crise, os imigrantes são utilizados como bodes expiatórios para os problemas sociais que toda a classe trabalhadora enfrenta. Quem agita esta bandeira é principalmente a extrema-direita, acusando-os, por um lado, de roubar o trabalho aos nacionais e, por outro lado, de serem preguiçosos e indigentes. Não basta entender que esta retórica é mentirosa e demagógica, é necessário compreender o papel que joga na sociedade.
A extrema-direita não tem interesse em expulsar os imigrantes ou descendentes de imigrantes. Como dissemos, ela precisa destes trabalhadores. O seu discurso pretende unicamente manter os trabalhadores imigrantes numa posição inferior à da restante classe. Consequentemente, não só se cria uma pressão de rebaixamento geral dos salários como ainda uma pressão de rebaixamento geral dos direitos laborais. Não é surpreendente, assim, que os latifundiários que lucram dezenas de milhares na apanha da azeitona financiem os partidos da direita e da extrema-direita.
A pandemia no campo
Nas estufas do Algarve e litoral alentejano milhares de trabalhadores amontoam-se na apanha de frutos vermelhos, um trabalho minucioso e intensivo. Quando se registou o primeiro caso de coronavírus no Algarve, a 16 de Março, soaram os alarmes e cerca de 70 trabalhadores imigrantes foram colocados em quarentena numa escola pública de Faro. Em São Teotónio, distrito de Beja, mais 17 entraram também em quarentena. A situação ficou, até agora, muito longe das piores previsões, mas apenas porque houve uma relativa contenção do surto a nível nacional, com uma incidência mais a norte, e porque estes trabalhadores se encontram extremamente isolados, quase sem contacto com as outras camadas sociais. No entanto, o nível de informalidade e o número de imigrantes não documentados torna difícil conhecer a abrangência real do contágio. O certo é que será pior do que o registado e que o risco de uma catástrofe se mantém inalterado.
A sobrelotação dos contentores, onde a grande maioria dos assalariados agrícolas vive, a falta de condições sanitárias e o transporte para as explorações agrícolas ou para as estufas que é efectuada em autocarros lotados e sem qualquer distanciamento são garantias de que um único caso positivo significa uma propagação quase imediata a todos os trabalhadores de uma mesma exploração.
Entretanto, devido à quebra das exportações e das vendas de alguns produtos, ao perigo de infecção juntaram-se o desemprego e a fome. Após a campanha da azeitona, que terminou em Fevereiro, muitas outras explorações fecharam — frutos vermelhos, flores, etc. — e os trabalhadores foram deixados à sua sorte. Há relatos de trabalhadores abandonados em explorações onde ficaram duas semanas a sobreviver comendo apenas melão.
Sem subsídio de desemprego ou qualquer ajuda, estima-se que muitos milhares se encontrem em situação de fome. Multiplicam-se as filas para a caridade em Beja enquanto os empresários e latifundiários recebem milhões de euros do governo.
O programa da esquerda reformista não tem solução para os trabalhadores imigrantes
Desde há várias décadas que a política das associações de imigrantes, dos sindicatos e dos partidos da esquerda reformista — quando não é a de ignorar por completo existência destes trabalhadores — é indistinguível da actuação das chamadas “organizações não governamentais” (ONG). A saber: pedir, no parlamento e restantes órgãos da democracia burguesa, que o Estado regularize a situação dos trabalhadores imigrantes — mais fiscalização, melhores condições de trabalho e mais meios para o SEF. Em suma, pedem mais regulação do capitalismo. Confiar nos órgãos do Estado burguês para fiscalizar a classe trabalhadora é desarmá-la e colocá-la à mercê dos interesses da classe capitalista.
Rejeitamos que sejam concedidos mais meios ao SEF e às polícias que espancam e assassinam trabalhadores negros e imigrantes. Defendemos a abolição do SEF e a legalização imediata de todos os imigrantes actualmente em solo português!
Relativamente às campanhas pela legalização dos trabalhadores agrícolas imigrantes, a associação Solidariedade Imigrante tem promovido nos últimos anos várias manifestações em Lisboa, sobretudo de imigrantes originários do Bangladesh, Índia e Nepal. Os resultados desta forma de protesto têm sido poucos: acelerar alguns processos de legalização individuais, mantendo o problema de fundo.
O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista limitam-se a denunciar pontualmente as condições de trabalho e de habitação e a pedir respostas do governo, sem jamais avançar com os vastos meios de que dispõem para impulsionar a organização destes trabalhadores e para construir uma campanha de massas que conquiste reais melhorias nas condições de vida e de trabalho do sector agrícola.
Por seu lado, os sindicatos têm ignorado os trabalhadores imigrantes durante décadas, cedendo ao racismo das camadas mais atrasadas da classe trabalhadora e da pequena-burguesia. Este sindicalismo burocrático, feito no gabinete “das 9 às 5”, é incapaz de arrancar vitórias quando a única solução possível é a organização e a luta de massas, feita não só em ruptura como em choque directo contra o Estado burguês e o sistema capitalista.
É preciso dizê-lo: as direcções reformistas são incapazes de apresentar um programa para os trabalhadores imigrantes porque se integraram completamente no regime de democracia burguesa. Estes oportunistas sabem que a luta a fazer para transformar realmente a vida dos trabalhadores imigrantes e descendentes de imigrantes compromete a ordem capitalista nacional e coloca em cheque os seus próprios privilégios enquanto mediadores da luta de classes.
Como marxistas, não podemos senão rejeitar esta política de conciliação de classes. É preciso romper com a esquerda pequeno-burguesa e o seu programa reformista completamente estéril.
É a hora da organização dos trabalhadores agrícolas!
A necessidade de organização dos trabalhadores enquanto trabalhadores — e não enquanto “cidadãos” — é absoluta. Os métodos de luta utilizados até agora têm se revelado claramente insuficientes. À política legalista e conciliatória das ONGs e associações pluriclassistas é necessário opor os métodos proletários de luta, como a greve, o bloqueio e a auto-defesa; e um programa para a classe trabalhadora que tenha como reivindicação central a nacionalização de toda a grande propriedade fundiária, ou seja, a concretização da reforma agrária que foi iniciada pelos assalariados rurais num movimento revolucionário de massas em 1975 e abortada pela contra-revolução capitalista que se seguiu e criou a actual situação.
Para isto, antes de mais, é necessário que os sindicatos de todos os sectores estabeleçam como objectivo a integração dos trabalhadores mais precários, oprimidos e imigrantes nas suas fileiras. O racismo e a xenofobia devem ser consciente e constantemente combatidos dentro das organizações da classe trabalhadora sob pena de estas sucumbirem a pressões oportunistas e corporativas, participando elas mesmas na divisão da classe, como tem acontecido repetidamente.
No sector agrícola, especificamente, a situação de precariedade e escravidão que estes trabalhadores enfrentam não pode ser utilizada como desculpa para não dedicar recursos e militância à organização dos assalariados. É preciso constituir comités de acção que exijam, com greves, salários e habitação condignos. E se as máfias que escravizam milhares de imigrantes não hesitam em utilizar a força bruta contra a organização dos trabalhadores, então está claro que a única solução é a auto-defesa. A formação de comités de auto-defesa para expulsar das terras os capatazes e a máfia esclavagista é uma necessidade evidente. O Estado burguês não só ignora estas máfias como é cúmplice delas.
A luta contra a exploração é de toda a classe trabalhadora e sairá fortalecida com a verdadeira união de classe por cima de quaisquer divisões raciais ou nacionais.
A luta contra o capital é internacional!
A Esquerda Revolucionária opõe-se a qualquer política de fecho de fronteiras. Somos contra o abandono dos nossos irmãos de classe às mãos de traficantes, de latifundiários ou dos próprios Estados europeus que deixam milhares de imigrantes morrer às portas da União Europeia, afogados no Mediterrâneo ou vítimas da fome e das mais variadas doenças atrás de vedações e muros com arame farpado e guardas armados.
Os que prosperam com um discurso que faz dos trabalhadores mais explorados e oprimidos o bode expiatório deste sistema, assim como aqueles que mantêm a exploração e o racismo intactos enquanto fazem belos discursos sobre democracia, só serão derrotados pela força organizada da classe trabalhadora.
O sistema capitalista expandiu-se a todos os cantos do planeta. Para o derrotarmos, também temos de estar unidos internacionalmente. E essa união começa precisamente por incluir todos os trabalhadores, independentemente da sua origem, na luta pelo socialismo.
Só uma sociedade socialista, em que a produção seja organizada de uma forma racional e sustentável para responder às necessidades de todos, poderá acabar com a exploração, o racismo e a xenofobia.