Foi a luta da classe trabalhadora durante a revolução portuguesa que levou à conquista do Serviço Nacional de Saúde (SNS), implementado em 1979, possibilitando-lhe o acesso gratuito a cuidados de saúde que antes do período revolucionário lhe eram vedados.
As conquistas desse período têm-nos sido retiradas a cada ano que passa e nem este governo, que se diz de esquerda, o tem impedido. O SNS foi subfinanciado até agora por vários governos, tendo havido um desinvestimento franco quanto aos recursos humanos, recursos materiais e infraestruturas. Durante o Governo PSD/CDS, foram aplicados enormes cortes ao financiamento do SNS, tendo sido reduzido para cerca de metade, o que afetou tanto os utentes como os trabalhadores da saúde. Os cuidados de saúde dos trabalhadores foram cada vez mais sendo entregues aos privados, ocorrendo uma diminuição da oferta pública de cuidados e um favorecimento do setor privado.
Há uma redução do número de trabalhadores, tendo sido fechadas camas e serviços, e havendo internamentos a funcionar apenas com um enfermeiro por turno. Esta política de desinvestimento garante assim ao governo uma diminuição da despesa pública e o cumprimento das metas do défice à custa do SNS e empurrando os trabalhadores para as instituições privadas, promovendo o seu desenvolvimento e rentabilização.
Durante todo este tempo, os enfermeiros têm sido um grupo muito prejudicado, com a precarização da sua profissão e o congelamento de salários e carreiras. Muitos enfermeiros ganham pouco mais de mil euros e não vêem uma actualização salarial há 20 anos, trabalham até aos 66, esgotados e muitas vezes desempenhando funções em ambientes sem um mínimo de condições.
Continuam a existir grandes dificuldades de contratação. Muitos enfermeiros são contratados em regime de substituição e quando o contrato acaba, não sabem se será transformado em definitivo ou não. Com o congelamento das carreiras, muitos especialistas ou enfermeiros com mais experiência decidiram ir para outros países. Em sete anos, a Ordem dos Enfermeiros (OE) registou 15.570 pedidos de declarações, necessárias para quem quer emigrar.
Segundo um estudo da Universidade Católica, em média, sete em cada dez enfermeiros dizem sofrer de ansiedade e insónia, e nove em cada dez consideram mesmo ter uma disfunção social. Dois terços têm uma perceção negativa da própria saúde mental e mais de um terço considera sofrer de, pelo menos, uma doença física ou mental. Entre os que fazem turnos, 90% dizem que não dormem o suficiente e 20% assumem mesmo que enfrentam uma depressão grave.
A luta dos enfermeiros
Em Março de 2017 a Comissão Negociadora Sindical dos Enfermeiros (CNSE), composta pelo Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP) e pelo Sindicato dos Enfermeiros da Região Autónoma da Madeira (SERAM), pertencentes à CGTP, entrou em negociação com o governo, tendo como reivindicações principais o descongelamento das carreiras, a reposição do valor integral das “Horas de Qualidade”, as 35 horas semanais para os contratos individuais de trabalho e a diferenciação económica para Enfermeiros Especialistas. O rumo que as negociações tomaram não estava de acordo com o que a CNSE defendia e por esse motivo especialistas de saúde materna e de obstetrícia convocaram e realizaram uma greve de zelo entre 31 de Julho e 4 de Agosto de 2017.
Praticamente pelos mesmos motivos, a FENSE, composta pelo Sindicato dos Enfermeiros (SE) e pelo Sindicato Independente Profissionais de Enfermagem (SIPE), pertencentes à UGT, convocou uma greve de 11 a 15 de Setembro de 2017. A paralisação teve cerca de 85% de adesão, o que levou ao adiamento de seis mil operações. A greve culminou com a manifestação de 15 de Setembro em que cerca de 5.000 enfermeiros estiveram nas ruas a reivindicar os seus direitos. Continuando na óptica da negociação com o Estado, o SEP distanciou-se da greve, o que levou muitos enfermeiros a afirmar que o Sindicato não representava os seus interesses.
É publicado um comunicado pelo Ministério da Saúde, a 16 de Outubro, onde se declara que o acordo formalizado com as estruturas sindicais (SEP, SERAM, SIPE, SE) trarão melhorias para os enfermeiros, mas a sua aplicação será faseada.
Num primeiro momento será feita uma revisão parcelar e transitória dos contratos individuais em contratos coletivos. A segunda fase terá início em Janeiro de 2018 e consistirá num “processo de revisão da carreira de enfermagem, que culminará com a sua reestruturação consensualizada até ao fim do primeiro semestre”. Se tudo for cumprido, os enfermeiros que tenham contrato individual de trabalho passarão ao regime de 35 horas semanais. Além disto, haverá reposição do pagamento das horas de qualidade por inteiro e a criação de um suplemento de funções no valor de 150 euros mensais para enfermeiros especialistas.
Mas muito está por fazer, e os enfermeiros continuam a sua luta. A 16 de Fevereiro de 2018, o SEP estabeleceu que dava ao governo até ao final da semana para colocar em marcha o processo de negociações. Se isto não acontecesse, SEP e FENSE admitiam avançar com a marcação de greves. Já devia ter sido discutido “o protocolo negocial para dar início à negociação da carreira de enfermagem”, o suplemento transitório de 150 euros a pagar aos enfermeiros especialistas — que deveria estar a ser pago desde 1 de Janeiro —, assim como as alterações necessárias para quando os enfermeiros de contrato individual passarem às 35 horas semanais. Além disto, estão ainda por repor 50% do valor das horas incómodas e das horas extraordinárias.
Contra a não concretização dos compromissos assumidos pelo Ministério da Saúde, a 23 fevereiro o SEP marca greve para 22 e 23 de março. A FENSE (SE e SIPE), afirmando estar em negociações com o governo em relação à sua proposta de carreira para os enfermeiros, demarca-se da greve. O SEP aponta para uma adesão nacional de 70% a 80%. Os serviços mais afectados foram as cirurgias e as consultas externas. No Hospital de São José, em Lisboa, os blocos operatórios só fizeram serviços urgentes, tal como no Hospital Santa Maria e quase todos os hospitais do país. Com isto, os trabalhadores conseguiram com que o governo concretizasse a assinatura do protocolo negocial de revisão da carreira de enfermagem e a publicação do suplemento remuneratório para os enfermeiros especialistas cujo valor impuseram.
Mas as promessas feitas pelo Governo não foram cumpridas, os enfermeiros continuam a não ser reconhecidos, continuam sem ter uma carreira; há casos de enfermeiros com 21 anos de serviço que ganham exactamente o mesmo que um enfermeiro que começou há um dia. A falta de contratação de pessoal pelas unidades de saúde, a um mês da entrada em vigor dos horários de 35 horas, coloca em risco as escalas e os serviços. Tudo isto levou a que no dia 19 de junho se realizasse uma concentração em frente ao Palácio de Belém, convocada pelo Movimento Nacional de Enfermeiros e apoiada por sindicatos e OE. Este movimento assume-se como “um grupo espontâneo, desligado de qualquer ideologia político-partidária, completamente independente de estruturas sindicais”.
A 8 de junho a FENSE apresenta um pré-aviso de greve às horas extra, a partir de 1 de Julho e por tempo indeterminado, exigindo um horário normal de 35 horas.
Por esta altura, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, dizia que seriam contratados pelo menos dois mil profissionais a partir de 1 de Julho para compensar a passagem das 40 para as 35 horas semanais de milhares de enfermeiros, técnicos e assistentes, e que numa segunda fase seriam contratados os restantes. Segundo os sindicatos e a OE, só para colmatar o impacto da redução de horário, seria preciso contratar mais de cinco mil novos enfermeiros e auxiliares para os hospitais.
A 28 junho o SEP agendou uma paralisação nacional para pedir a contratação de mais enfermeiros, tendo tido "uma adesão extremamente elevada" à greve nacional que convocou, apontando números entre 70% e 90% em várias unidades de saúde. No seguimento destas reivindicações, a FENSE marcou uma greve entre 13 e 17 de Agosto, dado que as negociações com o Ministério da Saúde, que duram há um ano, se mantinham inconclusivas.
Os sindicatos protestam novamente pela não conclusão de um acordo colectivo de trabalho que contemple, entre outras matérias, a categoria de enfermeiro especialista, e exigem o descongelamento da carreira, reivindicando que "o Estado deve aos enfermeiros 13 anos, 7 meses e 25 dias nas progressões".
É realizada, a 6 de agosto, uma reunião convocada pela ordem, onde foram convidados todos os sindicatos para analisar o processo de negociações sobre a carreira de enfermagem e discutir um "plano articulado de intervenção" conjunta, caso falhem as negociações com o Governo. O SE e o SIPE (FENSE) não marcaram presença, afirmando que "a ordem convocou outros movimentos para além dos sindicais" e "a Ordem nem se devia meter na esfera sindical".
A greve de 13 a 17 agosto, teve uma adesão de 95%, e levou ao cancelamento de mais de 2.000 cirurgias. Na ocasião, o presidente da FENSE lamentou que o movimento sindical dos enfermeiros estivesse dividido, “já que existe um outro sindicato afecto à CGTP (SEP) que está a negociar numa outra mesa com o Ministério da Saúde”.
O SEP marca novamente greve nacional para 20 e 21 de Setembro, contra a falta de propostas do Governo para a carreira, pois o governo tinha dito que até 15 de Agosto faria uma proposta sobre a carreira dos enfermeiros. Querem que o salário mínimo para os enfermeiros se situe nos 1.600 euros mensais; que esteja contemplada a perspectiva de se chegar ao topo da carreira técnica superior; que não haja deterioração de salários; que se valorize o trabalho especializado; e que se crie uma categoria na área da gestão.
Enquanto estes sindicatos anunciavam a próxima greve, o SE e o SIPE reuniam com os ministérios da Saúde e das Finanças para discutir o Acordo Colectivo de Trabalho (ACT) dos enfermeiros, afirmando que, por agora, “não há protestos previstos”.
No dia 31 de agosto os enfermeiros dos cuidados de saúde primários e das unidades de cuidados de saúde personalizados da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) cumpriram um dia de greve, cuja paralisação teve uma adesão entre os 90% e os 100%. Os profissionais exigem "o cumprimento da lei" no descongelamento da carreira e na reposição salarial dos enfermeiros, bem como a contratação de mais trabalhadores.
Próximos Passos
Existe um claro sectarismo entre as direcções sindicais, o que permitiu que a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco — militante do PSD, próxima de Rui Rio — se tornasse uma figura central das contestações feitas pelos trabalhadores. Este cenário resulta, mais uma vez, da incapacidade das direcções do BE, do PCP e dos sindicatos da CGTP de apresentar uma alternativa de luta capaz de mobilizar os trabalhadores, o que permite que a direita instrumentalize e dirija a luta dos trabalhadores rumo à derrota.
Passou mais de um ano desde o início das negociações, os sindicatos continuam a lutar cada um para seu lado, a ordem finge que defende a união de todos, quando claramente tem uma orientação política à direita e o governo mantém as suas acções de fachada, continuando a atirar areia para os olhos de quem se senta à mesa com ele. Mas os trabalhadores mantêm-se firmes na sua luta.
Estes trabalhadores organizaram-se sabendo que as negociações com o Estado burguês nunca chegariam a ir de encontro aos seus interesses. A construção de um programa que corresponda às necessidades dos trabalhadores só será possível com a sua organização, o que por sua vez aumentará a sua consciência de classe.
Apesar do sectarismo entre sindicatos e do não apoio dos partidos de esquerda no governo, os enfermeiros conseguiram conquistas muito importantes com a sua luta. As 35h foram aplicadas a todos com contrato individual de trabalho, foi criado um suplemento de funções no valor de 150 euros mensais para enfermeiros especialistas e foram contratados mais enfermeiros (ainda que não os suficientes).
Para o fortalecimento da organização dos trabalhadores da saúde seria necessário e importante que todos — médicos, enfermeiros, auxiliares de diagnóstico, auxiliares médicas, funcionárias de limpeza e seguranças — se unissem numa luta conjunta. Além de ser esta a única forma de obrigar o governo a ceder às exigências dos trabalhadores, é também a partir desta posição de união e solidariedade que se pode passar à ofensiva e lutar por um controlo verdadeiramente democrático de todo o SNS.