Após as eleições legislativas de 2019, escrevíamos:
“A vitória de Costa coloca-o numa posição delicada [...] porque terá de governar num novo ciclo de crise capitalista que vai extravasar em todos os aspectos a crise anterior e, portanto, que vai obrigá-lo a lançar uma nova onda de políticas de austeridade.”
Decorrido um ano do segundo mandato de Costa, podemos dizer que a previsível crise capitalista chegou, e agravada pela pandemia — esta sim, um elemento que não pôde ser previsto.
No segundo trimestre deste ano, em termos homólogos, a UE teve uma queda do PIB de 11,4%, com a poderosa Alemanha a cair 9,7% — aquela que foi a maior queda do país desde pelo menos 1970, quando passaram a manter-se registos trimestrais. Para Portugal, uma economia débil e cada vez mais rebaixada a uma posição semi-colonial, este colapso do capitalismo mundial significou, para já, uma queda homóloga de 16,5% do PIB, uma quebra abrupta de exportações, a crescente ruína de todo um sector da pequena-burguesia ligado ao comércio e ao turismo, reduções salariais de facto, despedimentos em massa. O desemprego atingiu em Julho os 409,7 mil, ou 8,1%. Entre a juventude, contudo, é de 26,3%. E é importante recordar que ambos os números são alcançados apesar da engenharia estatística usada para ocultar uma significativa parte do desemprego. Esta catástrofe social atinge a juventude e as camadas oprimidas com uma violência atroz e só encontra precedente se recuarmos à ditadura fascista.
Para onde vai a burguesia?
Redunda dizer que as piores “previsões” de “especialistas” estão a ser largamente ultrapassadas e terão, no fim das contas, tanta utilidade como as restantes discussões sobre o símbolo que melhor representará graficamente a “recuperação económica” — se será um V, se será um U, se será o logotipo da Nike ou outro traço capaz de excitar o sentimento religioso de um economista liberal.
É uma falsa discussão também aquela à qual se dedicam os reformistas que procuram demonstrar que os cortes sociais são opcionais, que existem políticas capazes de contornar a crise e agradar a trabalhadores e a patrões, enfim, que, se a esquerda reformista governar, o capitalismo poderá funcionar para todos — uma utopia reaccionária. Novas medidas de austeridade não são uma hipótese, elas estão efectivamente a ser aplicadas desde Março, com um rebaixamento real dos salários, lay-off facilitado para as grandes empresas, facilitação dos despedimentos, subfinanciamento dos serviços públicos, negligência nas medidas de segurança, canalização de gigantescos fundos para o grande capital, desregulação dos horários de trabalho a bel-prazer do patronato, etc. Toda a burguesia concorda com estas medidas porque elas são a única forma de atender às necessidades do capital neste período. O capitalismo tem como único remédio para a sua doença a destruição maciça de forças produtivas, ou seja, um retrocesso histórico com desemprego em massa, fome, repressão e guerras.
A discussão que realmente ocupa a burguesia não é sobre recuperação nem sobre austeridade, é sobre as políticas a seguir para gerir as explosões sociais que o colapso económico está a provocar internacionalmente, ou seja, sobre quais são os melhores métodos para esmagar a acção da classe trabalhadora. E é em relação a isto que a burguesia portuguesa, como todas as restantes, está a ser atravessada por divisões e discordâncias.
Ora, uma classe dominante nunca discute com palavras, discute com a força. A reorganização e radicalização da direita em Portugal dá-se exactamente assim. A ala mais reaccionária e decidida da burguesia, que escolhe desde já o caminho da repressão e do bonapartismo, está a excitar todas as camadas atrasadas e reaccionárias da sociedade ao máximo, está a testar e a concentrar a sua força não com palavras mas com actos, e actos cada vez mais ousados — discurso fascista em público, intimidação, insultos, agressões, assassinatos e todo o tipo de ataques dirigidos contra a classe trabalhadora, especialmente contra os sectores oprimidos, como as mulheres, os negros, as LGBT...
A ala “democrática” da burguesia — que pretende usar o parlamentarismo e a democracia burguesa para manter a sua dominação nesta nova crise — é posta à prova a cada investida da extrema-direita. A conclusão é que a “burguesia democrática” tem tanta capacidade de derrotar o fascismo agora como teve em 1974: nenhuma. Todos os ataques da extrema-direita continuam sem resposta efectiva.
Tarde ou cedo, a explosão social forçará uma conclusão para esta discussão. E o certo é que se em algum momento o PS se revelar incapaz de manter a paz, a burguesia vai livrar-se rapidamente do governo de Costa e colocar no seu lugar um governo que garanta os seus interesses por outros meios.
A última década de crise foi também de um aumento da repressão e dos ataques aos direitos democráticos, desde as cargas policiais contra protestos no governo de PSD-CDS de Passos Coelho à mobilização da requisição civil e até mesmo do exército para furar greves já durante o governo PS de Costa. Por fim, tivemos a declaração de um “estado de emergência” que suprimiu o direito à greve enquanto permitiu ao capital manter inutilizada uma gigantesca massa de recursos durante uma emergência sanitária — desde os hospitais privados, prontos a ser utilizados no combate à pandemia, à indústria têxtil e automóvel que deveriam ter sido imediatamente adaptadas à produção dos equipamentos necessários. Por cima de tudo isto, como dissemos, temos ainda bandos fascistas a actuar livremente. A tendência é por demais clara.
O facto é que entre a ala “democrática” e a ala mais reacionária da burguesia não existe qualquer discordância de fundo — trata-se de uma discordância nos meios, não nos fins. É por isso que o PS actua em bloco central com o PSD na aprovação do Orçamento Suplementar, na transferência de milhares de milhões de euros para o Novo Banco, na manutenção da TAP como empresa privada, etc. Costa segue zelosamente a única política capaz de servir a burguesia neste momento.
O PS e a “crise política”
Quando Costa declarou em entrevista ao Expresso que “Se não houver acordo, é simples: não há Orçamento e há uma crise política”, errou grosseiramente por defeito. O reflexo político do colapso económico não pode ser evitado nem por meio de acordos nem por meio algum. Isto, o primeiro-ministro sabe. O seu “erro”, portanto, não é mais do que uma manobra de intimidação das direcções do BE e do PCP. E qual o objectivo último desta manobra? Como se explica na mesma entrevista, não se trata apenas de aritmética parlamentar, trata-se de “realidade política”. A realidade política é, como dissemos, que a burguesia exige ao PS a continuidade da paz social durante um colapso económico sem precedentes — correspondentemente, o PS exige da esquerda mais do que a aprovação de Orçamentos do Estado no parlamento, exige a defesa da paz social nos sindicatos, nos movimentos sociais, em cada luta e acção dos trabalhadores e da juventude.
Esta continuação da “geringonça” é, efectivamente, a única táctica disponível a Costa para tentar fazer frente a uma crise política tão certa como a morte, procurando evitar pelo menos que ela se manifeste de forma decisiva no parlamento e signifique a queda do seu governo. O problema é que a autoridade das direcções do BE e do PCP está desgastada precisamente por terem seguido essa política nos últimos cinco anos — o impacto no PCP, particularmente, já significou a perda de controlo de importantes sectores, como os enfermeiros e os motoristas de matérias perigosas. Prolongar esta política é agravar este desgaste.
Ao nível externo, a táctica de Costa também só pode ser uma: pedinchar “ajuda” e “solidariedade” internacional. Mas, como já escrevemos, “cada burguesia nacional procura, antes de mais, exportar as piores consequências políticas desta crise económica”. Essa é a base das enormes tensões que atravessaram a reunião do Conselho Europeu em Julho e colocaram as burguesias mais estáveis (dos chamados “países frugais”) contra as mais débeis e aquelas que se vêem a braços com maior instabilidade política, como é o caso da francesa. Costa alinhou com Macron, Sanchéz, Conte e outros tantos chefes de Estado contra as tentativas de redução drástica dos apoios financeiros às economias mais afectados pela pandemia. O acordo alcançado pelos representantes das diferentes burguesias nacionais resultou no actual Mecanismo de Recuperação e Resiliência, comummente chamado de “bazuca financeira” — um plano de apoio que distribuirá 750 mil milhões de euros pelos Estados da UE sob a forma de subvenções e empréstimos.
Costa vangloriou-se repetidamente por ter “conseguido vencer uma batalha muito importante [...] e ter uma verdadeira ‘bazuca’ para responder a esta crise”. Mas a “bazuca”, apesar de ser o maior plano de apoio financeiro alguma vez lançado na UE, é armamento ligeiro. Como já escrevemos noutra ocasião, “o governo de Costa, como qualquer governo burguês, funciona como uma ‘comissão para administrar os negócios colectivos de toda a classe burguesa’”. Os fundos europeus serão, por isso mesmo, usados para garantir os lucros dos capitalistas em primeiríssimo lugar, e até para este fim se demonstrarão terrivelmente insuficientes. De resto, cada euro vindo da UE está sujeito à aprovação dos projectos dos respectivos governos e, em boa parte, é dinheiro emprestado. As relações de dependência, ou seja, de subordinação da economia portuguesa aos interesses das burguesias mais poderosas da Europa, ficarão ainda mais estreitas. Esse processo de crescente vinculação ao capital imperialista da UE não significa, de maneira nenhuma, um apaziguamento das contradições entre as classes; pelo contrário, implica cada vez maiores humilhações para a classe trabalhadora em Portugal.
Assim vemos que ambos os pilares da estratégia de Costa para manter a paz social — o acordo à esquerda, por um lado, e a utilização da “bazuca financeira”, por outro — se mostram desde já vacilantes. Resta dizer, por último, que a crise capitalista será muito mais prolongada do que este mandato. O PS está tão somente a empurrar os problemas com a barriga. Não é possível governar para a burguesia e para a classe trabalhadora ao mesmo tempo, e só é possível dar a aparência de governar para ambas as classes quando se vivem períodos de crescimento. A política do PS tem, por tudo isto, os dias contados.
Para onde vai a esquerda?
No discurso de encerramento do Avante, imediatamente depois de dizer que “é no concreto e não em meras palavras de intenções que tem de assentar a avaliação do que precisa ser feito”, Jerónimo de Sousa prometeu que o PCP avançará com “um conjunto de propostas” no parlamento. As propostas que decidiu destacar no seu discurso foram o aumento do salário mínimo para 850 euros, a criação de uma série de suplementos remuneratórios e um reforço do subsídio de desemprego.
O BE, por seu lado, na sua resolução da Mesa Nacional, estabelece “três compromissos fundamentais”, a saber: “i) não deixar ninguém para trás nas medidas de emergência; ii) forte investimento público e recuperação de mecanismos de soberania económica; iii) uma intervenção pública determinada para redirecionar a economia, responder à crise climática, reconstruir direitos do trabalho e criar emprego.”
O que fica claro sempre que estas direcções falam é que a sua política assenta nos órgãos do Estado, na defesa de medidas que não colocam em causa o capitalismo e, acima de tudo, numa recusa absoluta de mobilizar as massas. Isto não tem outro nome senão cretinismo parlamentar.
Toda a história do capitalismo demonstra o perigo desta política e, no passado recente, por duas vezes, os reformistas tiveram oportunidade de colocá-la à prova. Primeiro, quando o Syriza constituiu governo na Grécia, em 2015; mais recentemente, quando o Podemos e a Izquierda Unida (IU) constituíram governo em coligação com o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) no Estado espanhol. Em ambos os casos, a política seguida pelos reformistas é de completa subordinação aos interesses da burguesia. Na Grécia, tudo o que se conseguiu foi substituir o PASOK (PS grego) pelo Syriza, prosseguir com políticas brutais de empobrecimento e, por fim, abrir as portas a um governo de direita. No Estado espanhol, Sánchez (PSOE), Iglesias (Podemos) e o “comunista” Garzón (IU), perante uma pandemia que já matou mais de 30.000 pessoas no território, prosseguem todavia uma política indistinguível da de qualquer governo de direita: antes de tudo, garantir os lucros da burguesia! A continuar assim, também no Estado espanhol se abrirão as portas a um governo da direita e da extrema-direita.
O facto é que os interesses de trabalhadores e patrões são totalmente opostos. A dificuldade que o governo enfrentará para manter a paz social vem, assim, colocar duas hipóteses: ou bem que termina com uma vitória da classe trabalhadora e um avanço decisivo da esquerda, ou bem que termina com uma vitória da burguesia, um avanço da direita e um governo reaccionário de guerra declarada contra os trabalhadores e os pobres. Se as direcções do BE e do PCP seguirem o plano de Costa e mantiverem a sua política de conciliação e de unidade nacional — desmobilizando, desmoralizando e desviando para canais institucionais todas as lutas — não estarão a fazer nada senão a preparar esse governo da direita em Portugal.
Que estas direcções justifiquem a sua política de cretinismo parlamentar e conciliação de classes com alegações de que não existe consciência suficiente ou de que a correlação de forças é desfavorável à esquerda só demonstra o seu carácter traidor. A correlação de forças só se altera na luta, a cada vitória ou derrota, e as mobilizações massivas dos trabalhadores, das mulheres e da juventude nas ruas — pelo feminismo, pelo clima e contra o racismo e a brutalidade policial — mostram bem o potencial que existe para transformar radicalmente a realidade. O que falta é um programa para organizar este potencial.
É preciso nada menos do que uma inversão de toda a política seguida até aqui pelo PCP e pelo BE, assim como pela CGTP. Um programa verdadeiramente socialista tem de incluir a nacionalização da banca e de todos os monopólios; a nacionalização de toda a educação, saúde e transportes com a contratação de centenas de milhares de profissionais e um enorme aumento no investimento público; a proibição dos despedimentos e dos despejos; um aumento imediato do salário mínimo para 900 euros; um subsídio de desemprego igual ao salário mínimo e garantido até se conseguir novo emprego; a expropriação dos fundos imobiliários e a criação de um parque de habitação pública e acessível; além disto, uma purga de todos os fascistas do aparelho de Estado e a ilegalização efectiva de todas as organizações fascistas.
Qualquer passo em frente neste sentido só é possível se nos basearmos nas ruas e nos locais de trabalho, onde de facto temos força, e não no parlamento e restantes órgãos da democracia burguesa. Por fim, a vitória só é possível se a esquerda assumir os interesses da classe trabalhadora tal como os partidos da direita assumem os interesses da burguesia: com absoluta intransigência. A burguesia age implacavelmente contra os trabalhadores e a juventude, disposta a aprofundar a catástrofe social até onde for preciso — mesmo que isso signifique a miséria, a fome e até a morte para milhares de trabalhadores — para salvar o capitalismo. Para fazer frente a este inimigo, as organizações da nossa classe têm de agir com a mesma determinação e independência de classe na luta pelo socialismo, por uma sociedade não ao serviço do lucro de uma minoria, mas ao serviço do bem-estar da imensa maioria que hoje é explorada e oprimida.
Está na hora da organização e da luta!
Junta-te à Esquerda Revolucionária!