O preço da habitação tem subido por toda a Europa. Em Portugal, na última década e com a “Lei Cristas”, ou seja, a completa liberalização do mercado imobiliário, o preço da habitação subiu 4,5 vezes mais do que os salários1 — foi o oitavo maior aumento entre os países da OCDE2. Foi uma subida de 51% nos preços e de 23% nas rendas3. Nada disto é novo, mas a crise da habitação está a chegar ao ponto crítico, quando a situação se torna insuportável para a grande maioria dos trabalhadores.

Nos centros urbanos, há anos que as rendas são exorbitantes e incomportáveis. Em Lisboa, onde a disparidade é a maior, o valor mediano das rendas é 1,9 vezes maior do que o salário mínimo nacional4. As famílias trabalhadoras são empurradas para a periferia das cidades. Aumentam também o número de habitações clandestinas5 e a sobrelotação de casas entre os trabalhadores mais pobres6. Estamos a recuar rapidamente para as condições existentes antes da Revolução, com grandes famílias, muitas vezes de três gerações, forçadas a viver numa casa diminuta e com cada vez menos condições de habitabilidade.

Adiciona-se a tudo isto o efeito da pandemia. Muitos trabalhadores perderam o emprego e o número de processos de despejo continua a aumentar. Aqueles que trabalham em setores nos quais o teletrabalho é uma impossibilidade, aqueles que estão mais vulneráveis no emprego, são também quem mais precisa de viver em casas arrendadas e, por isso, quem foi mais afetado pela pandemia. Até agora, a única razão pela qual muitas famílias não se viram a viver na rua foi a manutenção do período excepcional de proibição de despejos “quando o arrendatário (…) possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”. Inicialmente, esta medida ia durar apenas até julho de 2021, mas foi alargada até outubro e, depois, até ao final de dezembro. Apesar de não ter impedido completamente os despejos durante a pandemia — exemplo disso foram as demolições no Bairro da Torre, em Loures, ou o despejo pelo IHRU de 11 famílias do Bairro Cabo Mor, em Vila Nova de Gaia —, foi o único travão nesta catástrofe social.

O fim da proibição de despejos de famílias em “situação de fragilidade” junta-se ao fim das moratórias de crédito, que terminaram nos últimos meses do ano passado. Incapazes de juntar dinheiro para as cauções — que ascendem ao valor de três rendas — ou sequer para uma única renda, as famílias mais pobres estão entre a espada e a parede, prestes a ser atiradas para a miséria.

A crise da habitação só pode ser resolvida com um ataque à propriedade privada

Em capitalismo, a habitação é propriedade privada e converte-se num ativo financeiro, só mais uma mercadoria na mão de capitalistas que procuram maximizar o seu lucro por todos os meios. E numa época de crise estrutural do capitalismo, de sobreprodução, a burguesia não investe produtivamente — porque isso não dá garantias de lucros elevados. Em vez disso, limita-se a intensificar selvaticamente a exploração dos trabalhadores e a canalizar o capital para jogos financeiros (como a recompra de ações) e para a especulação mais desenfreada. O setor da habitação é perfeito para isto. Bandos de capitalistas tornam-se acionistas de gigantescos fundos imobiliários internacionais que compram casas em várias cidades e especulam com uma das mais básicas necessidades humanas: a habitação. No caso português, esta especulação dá-se à boleia do boom turístico dos últimos anos.

É por isso que as dificuldades que os trabalhadores enfrentam para adquirir habitação própria não significam que a procura por casas baixe. Apartamentos e prédios inteiros continuam a ser vendidos a grandes senhorios ou a fundos imobiliários. Na última década, a oferta de habitação em Portugal cresceu apenas 1% e o número de casas vendidas foi 40% mais baixo do que na década anterior, mas o volume de vendas aumentou 76%7, e o peso dos compradores estrangeiros duplicou8. Há uma chuva de capital no setor da habitação, num círculo vicioso de lucro especulativo e de aumento dos preços. Por cima de tudo isto, os custos de construção e renovação de casas estão também a aumentar9.

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Há uma chuva de capital no setor da habitação, num círculo vicioso de lucro especulativo e de aumento dos preços.

A situação é exposta pela própria União Europeia num estudo sobre habitação produzido sobre o ano de 202110, e que, segundo o Ministro das Infraestruturas e da Habitação, mostra como "o mercado, só por si, gera desigualdades" e não garante o "direito fundamental de todos a uma habitação digna"11. O que o mesmo estudo apresenta como solução, no entanto, é mais investimento público de fundos europeus para aumentar a oferta, ou para criar rendas acessíveis — pagando parte das rendas dos inquilinos mais pobres. O FMI afirma algo semelhante sobre utilizar fundos europeus para gerar mais oferta pública, com incentivos fiscais, penalização de casas vazias, e claro mais investimento no mercado. E como não poderia deixar de ser, o governo “socialista” português segue a mesma linha liberal, tendo prometido em outubro, antes da dissolução do parlamento, uma “resposta pública à falta de habitação” que “pode não ser a solução total para o problema do acesso das classes mais desfavorecidas à habitação, mas o governo acredita que só intervindo diretamente no mercado (construindo) poderá ajudar à sua regulação”. Todas as instituições capitalistas — UE, FMI, governo português e restantes governos capitalistas da Europa — confluem também na rejeição de qualquer medida de controlo das rendas que possa, nas palavras do FMI, "desencorajar o investimento e a oferta de habitação para arrendamento a longo prazo".

Em primeiro lugar, há que dizer que este aumento do investimento público não será feito. No meio da profunda crise do capitalismo, a classe dominante em todos os países não está disposta a sacrificar um único cêntimo dos seus lucros. É por isso que por todo o mundo os governos capitalistas estão a reduzir o investimento público mesmo durante a crise sanitária — a enorme riqueza concentrada pelos Estados está a ser canalizada das mais variadas formas para os bolsos do grande capital. Mas mesmo que esta solução fosse levada a cabo, seria equivalente a tratar uma gangrena com um penso rápido.

Todas as medidas que mantiveram a habitação dentro de uma lógica de mercado são incapazes de travar a onda especulativa. Estas instituições insistem nesta via porque o direito à propriedade privada é o único direito que consideram sagrado — perante ele, o direito à habitação e até o direito à vida são secundários. É por isso que em 2020, em plena pandemia, apenas 16% do Orçamento do Estado para a habitação foi aplicado e, como explica o próprio Tribunal de Contas, das cinco medidas extraordinárias de resposta ao impacto da pandemia no setor da habitação “nenhuma se revela eficaz”, e todas têm um “grau de execução insuficiente e incipiente”12. Assim, se o mercado da habitação gera miséria, condições de vida cada vez mais degradadas e até um aumento da população sem-abrigo, o governo PS, mesmo admitindo essa realidade, só conseguem propor uma política de dinamização ainda mais intensa desse mercado e, dar migalhas em apoios sociais e esbanjar dinheiro público em ajudas ao grande capital.

Exatamente por isto, a questão da habitação foi corretamente apresentada pelo BE e PCP como um motivo para os votos contra a proposta do OE2022. No entanto, o mais longe que estas direções da esquerda chegaram foi à defesa de um limite máximo para as rendas e da revogação da “lei dos despejos” ou “lei Cristas”.

A revogação da “lei Cristas” para limitar as rendas é uma reivindicação que deixa os fundos imobiliários e os grandes senhorios com as suas propriedades, garantindo que, à primeira oportunidade, um governo de direita nos devolvia à situação atual com uma simples alteração da lei. O pior, no entanto, é que tanto o BE como o PCP focam toda a sua atuação no parlamento, onde mesmo estas propostas extremamente recuadas são repetidamente chumbadas pela direita e pelo PS.

A luta revolucionária é o único caminho

A crise de habitação em Portugal é parte de uma crise de habitação à escala mundial, e um reflexo da decadência do capitalismo, um sistema completamente incapaz de garantir habitação digna à maioria da população. Hoje, tal como antes da Grande Recessão de 2008 — que estourou em primeiro lugar com a crise do subprime —, os preços das casas estão a subir a grande velocidade enquanto as taxas de juro estão nos valores mais baixos que alguma vez tiveram. A nível mundial, as concessões de crédito continuam a disparar. A bolha continua a crescer e, tal como em 2008, quando finalmente rebentar, os capitalistas vão tentar que seja a classe trabalhadora a sofrer todas as consequências, com mais cortes na educação, na saúde e em apoios sociais.

O PS, como toda a social-democracia internacional, aceita hoje as “leis de mercado” como leis naturais e imutáveis às quais todas as reformas têm de sujeitar-se. A forma como aborda a crise da habitação é mais uma demonstração disto, e torna-se ainda mais absurda durante uma pandemia. A esquerda não pode procurar um meio-termo, tem de romper completamente com a política social-democrata. 

Basta de tentar colocar o Estado burguês a pagar as rendas dos mais pobres, a limitar as rendas através de nova legislação ou a guardar algumas migalhas do orçamento para criar um número manifestamente insuficiente de casas em programas de habitação pública.

A única forma de resolver o problema da habitação é considerando a habitação como um direito fundamental. O programa da esquerda tem de ser claro e ir à raiz do problema: em primeiro lugar, é preciso nacionalizar a terra e expropriar os fundos imobiliários, os grandes senhorios e a banca, assim como as grandes empresas de construção e de toda a propriedade imobiliária abandonada, sem indemnização. Desta maneira, está garantido à partida um parque de habitação pública capaz de dar resposta às necessidades das famílias trabalhadoras. Muito claramente, o problema não é falta de casas, o problema é que as casas são mercadorias e a habitação é um negócio. É preciso tomar as casas que existem e planificar todo o setor de acordo com as necessidades da população, não de acordo com o lucro. Há que desenvolver um plano à escala nacional — de distribuição, restauração e, quando necessário, construção — para garantir que toda a população tem acesso a habitação pública digna.

A habitação pública tem, além disso, de ser colocada sob o controlo de órgãos democrático dos moradores, para garantir que as rendas não são canalizadas novamente para o grande capital, mas antes para a manutenção e melhoria das condições de habitação, assim como para outros setores, como os transportes, a saúde e a educação públicas.

Realizar um programa destes é impossível pela via parlamentar e institucional porque implica um confronto com a burguesia e todo o seu Estado. Só é possível fazer esse confronto e vencê-lo pela via da luta revolucionária, da ação de massas. A esquerda tem de romper com a conciliação de classes e a social-democracia, tem de virar-se para as ruas, para os movimentos sociais e organizações dos trabalhadores, apresentar um programa genuinamente socialista e apoiar-se na gigantesca força da classe trabalhadora e da juventude para o concretizar. A luta pelo socialismo é a única capaz de resolver o problema da habitação, tal como todos os problemas com que hoje se depara a esmagadora maioria da população.

 


Notas:

1. "Preço das casas subiu 4,5 vezes mais do que os salários na última década", Diário de Notícias, 11 de fevereiro de 2020.

2. "Portugal teve o oitavo maior aumento do preço das casas na última década", Público, 27 de agosto de 2021.

3. "Custo da habitação em Portugal subiu mais do que a média europeia desde 2010", Público, 7 de outubro de 2021.

4. "Estatísticas de Preços da Habitação ao nível local", Istituto Nacional de Estatística, 28 de outubro de 2021.

5. "Mais 11 mil casas clandestinas no país? Trata-se de "um número estimado", Notícias ao Minuto, 23 de novembro de 2021.

6. "Como vivem os portugueses", Fundação Francisco Manuel dos Santos, julho de 2020.

7. "Habitação. Procura de estrangeiros mais que duplicou numa década", Dinheiro Vivo, 19 de outubro de 2021.

8. "Estrangeiros duplicam peso no setor da habitação em menos de dez anos", Jornal de Negócios, 20 de outubro de 2021.

9. "Custo de construção nova de habitação aumentou 7,1% em Setembro", Público, 9 de novembro de 2021.

10. "The State of Housing in Europe 2021", Housing Europe, 26 de março de 2021.

11. "Crise habitacional na Europa: Ministro das Infraestruturas e da Habitação defende reforço do investimento público", site do governo de Portugal, 26 de março de 2021.

12. "Tribunal de Contas diz que medidas de apoio público à habitação foram insuficientes", Público, 19 de novembro de 2021.

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