Após décadas de escândalos na Igreja Católica, a denúncia chocante de 330 mil casos de pedofilia encobertos pela Igreja Católica francesa contribuiu para a criação, no início deste ano, da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CIEASCICP).

No primeiro mês de investigação esta comissão recebeu 214 denúncias diretas. Ao fim de três meses foram validadas 290 denúncias, das quais 16 ainda não prescreveram, segundo a lei portuguesa. Isto foi apenas a ponta do icebergue, estima-se que o número de vítimas seja muito mais elevado, como a própria Comissão admite, e como indicam os casos já reportados em França e na Alemanha.

As vítimas foram sobretudo rapazes nascidos entre 1934 e 2009, e os primeiros abusos sexuais ocorreram quando as vítimas tinham entre 2 e 17 anos, tendo sido perpetrados nos mais variados espaços controlados pela Igreja Católica — instituições onde menores estavam à guarda da Igreja, na catequese, nos escuteiros e grupos de jovens e ainda na escola pública, durante o ensino de Educação Moral, Religiosa e Católica.

A magnitude do problema, além de ser escandalosa e de uma violência atroz, deixa claro que estes abusos não são “casos isolados”. Centenas de milhares de abusos por todo o mundo, com centenas de denúncias já feitas em Portugal, mostram que estamos perante violência sexual sistemática e que é sistematicamente encoberta pela Igreja.

As lágrimas de crocodilo da Igreja

Nos últimos anos, perante os escândalos sucessivos e impossíveis de encobrir, o Vaticano foi forçado a dar algum tipo de resposta numa tentativa de limpar a imagem da Igreja. O próprio Papa Francisco, com cobertura mediática e surpreendentes aplausos de sectores da esquerda, anunciou o início de uma suposta "cruzada" para acabar com a pedofilia dentro da Igreja.

Em que consistiu esta campanha? Pois bem, em exigir aos bispos e membros da hierarquia religiosa que abrissem investigações perante quaisquer indícios ou informações de abuso sexual e pedofilia — sem necessidade de serem apresentadas queixas formais — e que estas investigações fossem comunicadas imediatamente ao Vaticano. Desta maneira, foi reconhecido que, até agora, e face a um crime tão grave quanto a pedofilia, era esperado que os sacerdotes assobiassem para o lado. Isto é, em si mesmo, um crime.

Quem agora organiza a “cruzada” contra a pedofilia são os mesmos sacerdotes que durante décadas encobriram milhares de casos. Um exemplo é Bento XVI, agora Papa emérito, que quando era arcebispo e cardeal de Munique, encobriu o caso de um padre condenado em 1986 a 18 meses de prisão por abuso de menores, chegando mesmo a transferi-lo duas vezes para outras paróquias numa tentativa de evitar escândalos. Esta política de transferências não fez mais do que facilitar os abusos em novas localidades. Em Portugal, esta prática também é comum para encobrir casos de abuso sexual e pedofilia.

A CIEASCICP foi criada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que financia e nomeia os seus membros. É esta comissão que está a fazer a investigação e que controla os casos que estão a ser enviados para o Ministério Público. No final dos seus trabalhos o objetivo é entregar um relatório à CEP para que decida que ações tomar. Portanto, uma instituição envolvida em centenas e até milhares de casos de pedofilia e encobrimento fica ela própria responsável por dirigir o processo. O cinismo e os privilégios desta casta não conhecem limites!

Mesmo nestas condições, a Comissão já admitiu a existência de ações de encobrimento e ocultação dos abusos sexuais por parte da hierarquia da Igreja, inclusivamente do topo da hierarquia, nomeadamente bispos no ativo. E a CEP, após a divulgação do primeiro relatório, chora lágrimas de crocodilo. Manuel Clemente, o Cardeal Patriarca de Lisboa, além de afirmar desconhecer qualquer caso de abuso ou ocultação, diz que "no que se refere à proteção de menores no espaço eclesial”, os líderes da Igreja em Portugal estão ”especialmente atentos (...) com plena consciência e compromisso para reconhecer e corrigir erros passados e pedir perdão por eles e prevenir o futuro". E acrescenta ainda que "se é preciso arrepender, então arrependamo-nos e vamos para a frente", para logo de seguida defender que o afastamento dos clérigos envolvidos nos abusos tem de ser analisado caso a caso.1

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Manuel Clemente, o Cardeal Patriarca de Lisboa afirma que "se é preciso arrepender, então arrependamo-nos e vamos para a frente", para logo de seguida defender que o afastamento dos clérigos envolvidos nos abusos tem de ser analisado caso a caso.

O cinismo é por demais claro. Como é possível que a CEP declare total desconhecimento quando se prova que bispos no ativo encobriram violações de crianças e adolescentes? Está claríssimo que as próprias estruturas da Igreja foram coniventes — o Tribunal Eclesiástico, o Segredo Pontifício e toda a sua hierarquia.

A complacência do Estado burguês nos crimes da Igreja

A Igreja Católica, um dos braços ideológicos da ditadura fascista, permanece uma ferramenta ideológica dos setores mais reacionários e rançosos da burguesia, um reduto de machismo, racismo, lgbtifobia, uma instituição de defesa da propriedade privada e da exploração capitalista. Não é de maneira nenhuma um acaso que a direita e a extrema-direita agitem tão fanaticamente a bandeira do catolicismo ou que André Ventura sinta necessidade de declarar repetidamente a sua “fé”.

A Revolução de 1974-75 conseguiu imensas conquistas para a nossa classe, mas deixou os privilégios da Igreja em Portugal praticamente intocados: a confidencialidade eclesiástica, a isenção de deveres judiciais, a existência da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica nas escolas públicas e o poder de definir os conteúdos a lecionar, a possibilidade de estabelecer escolas católicas em qualquer nível de ensino, a total isenção fiscal para rendimentos e bens da Igreja Católica… A igreja mantém-se como organização com direitos especiais.

Isto não é nada surpreendente quando se entende que a Igreja é essencialmente uma empresa capitalista multinacional, com o Vaticano a acumular um património avaliado em 4.000 milhões de euros. E como qualquer multinacional, comporta-se como uma autêntica máfia. Em Portugal, o seu poder económico é gigantesco, e é utilizado para influenciar os sucessivos governos.

A Igreja portuguesa é proprietária do Grupo Renascença Multimédia — detendo, com o Grupo Media Capital, o monopólio da comunicação social — e da Universidade Católica Portuguesa (UCP), uma das maiores universidades privadas no país. Só com a UCP, obtém lucros anuais de mais de 65 milhões de euros.2 É ainda a principal empregadora do “setor social”, com incontáveis IPSS como a Cáritas, as Santas Casas da Misericórdia e centros sociais paroquiais que recebem chorudos apoios do Estado e representam um mercado gigantesco de serviços — compreendendo creches, escolas, centros de dia, lares, hospitais, cuidados de saúde, apoio alimentar, etc.

A Igreja acumula desta forma uma série de funções sociais das quais o Estado burguês se desembaraça, e fá-lo obtendo lucros astronómicos e espalhando a ideologia mais reacionária.

Este entrelaçamento com o Estado burguês — oficialmente laico — explica a forma como mesmo perante uma quantidade avassaladora de crimes de abuso sexual e pedofilia a hierarquia católica mantenha o controlo de todo o processo de investigação e punição dos violadores e pedófilos. É tudo tratado em família! Aliás, os laços ideológicos e políticos dos mais altos funcionários do Estado com a “Santa Sé” ficam à vista de todos quando há casos tão escandalosos como o acórdão do juiz Neto de Moura, que desculpava brutais agressões machistas dizendo que “na Bíblia podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”.

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A Igreja acumula uma série de funções sociais das quais o Estado burguês se desembaraça, e fá-lo obtendo lucros astronómicos e espalhando a ideologia mais reacionária.

É necessário acabar com a impunidade e privilégios da Igreja!

Outro reacionário e católico declarado, o presidente da república Marcelo Rebelo de Sousa, tem tratado estas centenas de violações de menores como se se tratassem de um par de multas de estacionamento. O máximo que disse foi “que tudo o que seja feito em termos de transparência neste domínio é muito importante para a democracia portuguesa e muito importante para a sociedade portuguesa”. Quais são as consequências que Marcelo defende? Ficamos sem saber.

Perante isto, a esquerda tem de tomar uma posição que rompa de uma vez por todas com a política de relações amistosas e silêncio ante a Igreja que tem sido seguida por décadas pelas direções reformistas, que temem chocar com o Vaticano como temem chocar com qualquer grande poder capitalista.

Um programa verdadeiramente socialista e revolucionário tem de arrancar este problema pela raiz com medidas como:

- Investigação independente — feita por organizações dos trabalhadores — e punição exemplar de todos os culpados diretos e indiretos dos abusos de bebés, crianças e adolescentes;

- Apoio e reparações para todas as vítimas da Igreja;

- Nacionalização sem indenização de toda a educação privada, na qual se inclui a da Igreja. 

- Fim da disciplina de Educação Moral, Religiosa e Católica e de todo o ensino religioso nas escolas públicas;

- Fim da isenção fiscal da Igreja Católica, fim de todos os privilégios e regras especiais para seitas e grupos religiosos;

- Expropriação de toda a propriedade da Igreja com utilidade social — instituições de ensino, saúde, de apoio social e quaisquer lugares de culto que possam ter utilidade social;

- Investimento público massivo na saúde, educação e apoios sociais.


Notas:

1.  Afastamento de clérigos ligados a abusos deve ser avaliado caso a caso

2.  Universidade Católica não paga impostos e fatura mais de 65 milhões

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