Em 1976, uma maioria de deputados constituintes pró-capitalistas aprovou a Constituição “mais progressista do mundo”, que entre outras coisas proclamava o direito à habitação e a construção do socialismo.

Sob o olhar atento de milhões de trabalhadores, soldados e camponeses que tinham protagonizado 19 meses de luta revolucionária, estes deputados eram obrigados a mascarar com fraseologia socialista um texto constitucional burguês que estabelecia uma economia de mercado.

A natureza de classe da constituição foi demonstrada ao longo das últimas quatro décadas em todas as esferas por ela “consagradas”. A burguesia recuperou a sua propriedade com indemnizações e deu-nos uma lição a não esquecer: a lei é dos poderosos. Ao “meter o socialismo na gaveta”, a social-democracia negou os direitos da maioria. Entre estes, a habitação é um dos mais evidentes.

Um país de proprietários?

O golpe de Estado de 25 de Novembro de 1975 deu início à repressão das ocupações de grande propriedade imobiliária, assim como ao desmantelamento das políticas de construção pública de habitação lideradas pelas comissões de moradores. Neste contexto, a conquista do congelamento das rendas levou à falta de investimento e à degradação das casas destinadas ao arrendamento.

O governo de Bloco Central (PS-PSD) promoveu, em 1983, uma política de subsídios públicos ao crédito para a habitação. Esta política tornou-se uma das principais fontes de lucro da banca, privatizada de seguida por um governo de Mário Soares. No processo, seriam asfixiadas as cooperativas de construção, incapazes de competir com a política de crédito barato. Esta política foi mantida por todos os governos capitalistas posteriores, partilhados invariavelmente entre PS, PSD e CDS.

Seríamos todos “proprietários”, logo, todos “iguais”. E se é verdade que muitas famílias trabalhadoras puderam adquirir casa própria, bastou uma geração para que a utopia liberal desmoronasse. O sucesso temporário da política de crédito não se deveu à “eficiência” do mercado, que só gerou todo o tipo de esquemas de corrupção envolvendo as construtoras. A chave encontra-se, uma vez mais, nas conquistas da Revolução, que aumentaram de forma significativa a educação e os rendimentos, e eliminaram a precariedade em vastas camadas da classe trabalhadora, permitindo o planeamento familiar e o pagamento das hipotecas. Com a precarização da força de trabalho, esta política tornou-se crescentemente insustentável.

Na era de decadência capitalista dominada pela especulação financeira, por privatizações e pela intensificação da exploração, esta política só poderia abrir caminho para a criação de uma gigantesca bolha imobiliária. Entre 1995 e 2008 Portugal foi o país da UE onde mais aumentou a dívida das famílias em percentagem do PIB e cerca de 4/5 desse aumento são explicados pelos empréstimos à habitação.

Essa bolha rebentou finalmente com a crise de 2008, arrastando consigo toda a sociedade e empurrando para a miséria, precariedade e desemprego milhões de trabalhadores. A burguesia e os seus lacaios não tardaram a culpar-nos pelas suas políticas. Subitamente fomos acusados de “viver acima das nossas possibilidades” por ter a ousadia de querer um tecto. E enquanto vomitava este discurso, o governo dava início ao resgate da banca privada com os impostos de quem trabalha.

Daqui em diante, o discurso passou a ser a favor do arrendamento.

A distopia do livre mercado de arrendamento

A intervenção da Troika marca o fim da última conquista revolucionária no tocante à habitação. A coligação da direita liberalizou o mercado de arrendamento, descongelando as rendas com a lei que ficou conhecida como “Lei dos Despejos” ou “Lei Cristas”, acusando a autoria de Assunção Cristas, que assinou a lei enquanto ministra do Ordenamento do Território.

A promessa era de que o incentivo aos proprietários iria aumentar a oferta de casas para arrendamento e dar início a uma renovação dos edifícios degradados. A realidade foi bem distinta.

Com o sector do turismo em expansão, com um sistema financeiro com excesso de liquidez graças às políticas de resgate financeiro e de expansão quantitativa (quantitative easing), e com as taxas de juro em valores próximos de zero, houve uma enorme transformação dos centros urbanos, com a expulsão dos pobres para periferias cada vez mais longínquas e desprovidas de serviços.

Ao mesmo tempo que os centros urbanos se tornaram gigantescos hotéis com recurso a todo o tipo de esquemas “inovadores” como o Airbnb, uma nova e ainda mais monstruosa bolha especulativa cresceu. A oferta criada é dominada pelo “alojamento local” para turistas, e as rendas dos imóveis que restam sofreram um aumento de 34%. Portugal é o país da UE onde o custo da habitação mais subiu nos últimos anos, com o preço das casas a superar os 20% de aumento em 2018 nas cidades de Lisboa e Porto. Só entre 2015 e 2018 tiveram lugar mais de 4.300 despejos.

Para a nova geração de trabalhadores, precária e com um rendimento médio inferior a 700 euros por mês — 1 milhão e 250 mil trabalhadores recebem hoje o salário mínimo —, ter casa tornou-se praticamente impossível. A maioria de nós está presa à casa dos pais ou avós (a geração da revolução) ou condenada a dividir casas e quartos, sem perspectivas de futuro e temendo o próximo aumento da renda. Em pior situação ainda, uma camada da nossa classe, muitas vezes imigrante, continua presa em bairros sem condições mínimas, sem electricidade ou água canalizada.

A nova Lei de Bases para a Habitação representa, acima de tudo, a capitulação da esquerda reformista aos interesses do capital, com a Lei Cristas intocada. O que temos são programas de arrendamento “acessível” com o limite de 80% do preço de mercado — o que significa que um estúdio em Lisboa pode custar 600 euros mensais — e que isentam os proprietários de IRS e IRC sobre as rendas. António Costa já avisava, no final de 2018, que era “vital” beneficiar os proprietários. E assim, para curar o cancro social na habitação, o PS manda-nos para casa (que não temos) com uma receita de paracetamol.

Para os banqueiros e os seus governos, a perspectiva de queda nos preços da habitação é uma catástrofe. Toda a política de crédito está baseada na especulação sobre o valor dos imóveis, que necessita de se manter alto e em ascensão para garantir a continuação dos lucros.

Um vislumbre do futuro no passado

Quando, no dia 27 de Abril de 1974, as primeiras ocupações de casas começavam em Lisboa, a classe trabalhadora de então mostrava-nos o caminho que devemos seguir. À época, tal como hoje, a esmagadora maioria do proletariado não tinha acesso a uma habitação digna. Dezenas de milhares de trabalhadores concentravam-se em bairros de lata ao longo da cintura industrial de Lisboa e Setúbal. Muitos trabalhavam na construção civil.

O golpe de Estado do MFA e o apoio das bases do exército à luta da classe operária e dos camponeses pobres e sem terra deu confiança ao jovem proletariado para avançar na luta. Milhares de trabalhadores organizaram-se em comissões de moradores e efectivaram o direito à habitação. Não esperaram a autorização de nenhum dos governos provisórios, todos eles desesperados por salvaguardar os interesses dos proprietários.

Milhares de casas foram ocupadas, umas de grandes proprietários, outras do Estado — estas destinadas muitas das vezes ao seu aparelho repressivo, como a PIDE. As comissões geriam democraticamente a distribuição das casas segundo as necessidades dos trabalhadores, organizavam o trabalho de obras que fosse necessário. E iam ainda mais longe: lutavam pelo direito a creches, centros de saúde, escolas e outros serviços comunitários.

Com a vitória que foi a nacionalização da banca, cooperativas de habitação foram criadas para implementar projectos de construção de parques de habitação pública de qualidade, com bairros que promovessem uma vida colectiva.

Tudo isto foi varrido pela contra-revolução “democrática”. O direito à habitação foi “consagrado” no papel, enquanto no mundo real a habitação permaneceu uma mercadoria.

Mas é neste breve passado revolucionário que está a chave do futuro. É preciso um plano de luta que parta de cada bairro e cada empresa, que exija não só o fim dos despejos e o controlo das rendas, mas que avance igualmente, sem medo de romper com o capitalismo, para uma verdadeira solução: a expropriação dos grandes fundos imobiliários, da banca e de todo o sector de construção, para que se faça a planificação democrática da habitação, com a construção de parques de habitação públicos, de qualidade e ambientalmente sustentáveis. Só assim podemos garantir casa para todos, e isso é o mínimo que se exige.

Está na hora de conquistar este futuro! Está na hora da organização e da luta!

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