A pandemia do novo coronavírus acelerou todos os processos e aprofundou todas as contradições de um capitalismo mundial que já se encontrava à beira da recessão. A crise iniciada este ano ameaça deixar o crash de 1929 na sua sombra.

Por todo o mundo, as burguesias nacionais procuram desde já exportar para fora das suas fronteiras os efeitos económicos e políticos da crise, perturbando drasticamente até mesmo as relações internacionais que resistiram ao abalo da Grande Recessão de 2008, e dando os primeiros passos numa ofensiva total contra a classe trabalhadora. É isto que vemos a nível de União Europeia, com os primeiros impasses em reuniões à volta de questões como a mutualização da dívida pública com a emissão de eurobonds ou as regras orçamentais a seguir durante e após a pandemia.

A burguesia portuguesa, classe dirigente de um país cada vez mais dependente e que assentou o grosso do seu crescimento no turismo (que era, no início da crise, cerca de 14,5% do PIB) e na especulação imobiliária, sabe que a economia nacional será duramente atingida. O INE estima que uma redução de 25% da actividade do sector do turismo corresponda a uma queda de 2,9% do PIB, e é altamente improvável que o turismo sofra uma redução de apenas 25%. Aliás, segundo a OCDE, durante o período de paragem parcial da produção e confinamento que estamos a atravessar, Portugal terá uma queda de cerca de 25% não da actividade do turismo, mas antes de todo o PIB. Pouco surpreendentemente, as previsões de queda do PIB para o ano completo pioram a cada semana. O ISEG começou por colocá-las entre os 4 e os 8% no início do mês, mas agora, nas palavras de Mário Centeno, ficamos a saber que pode chegar aos 10%. E esta é uma previsão optimista se tivermos em conta que o ministro das finanças, na mesmíssima ocasião, admitiu que por cada 30 dias a funcionar nas condições actuais, a economia teria uma contracção de 6,5%.

A confusão destas contas é total não só por lidarem com uma doença que é ainda imprevisível — não se sabe sequer se haverá uma segunda vaga, não se sabe quando podemos contar com uma vacina, não se entende ainda os efeitos da infecção a longo prazo, etc. —, mas ainda por dependerem da forma como se desenvolve a luta de classes. A incerteza assombra todas as decisões da classe dominante. Apenas uma coisa é certa: em capitalismo não há qualquer solução para uma pandemia ou para uma crise destas proporções, exceptuando aquela que usa em todas as crises: destruir forças produtivas, despedir trabalhadores em massa, privatizar e destruir serviços públicos, aumentar drasticamente a repressão... em suma, afundar na miséria e na violência a maioria da população. E para salvar o capitalismo, sem dúvida alguma, não existe alternativa. É por isso que rejeitar este rumo, em qualquer país do mundo, significa rejeitar todo o sistema.

Salvar os capitalistas, sacrificar os trabalhadores

O ruído da comunicação social burguesa — nacional e internacional —, que agora elogia Portugal como um “milagre”, esconde que a política do governo Costa não se distingue em nenhum aspecto fundamental da política seguida pelo governo espanhol, pelo italiano ou por qualquer outro governo da Europa que tenha conhecido um resultado menos “milagroso”. O essencial da política dos governos capitalistas é comum a todos: salvar os lucros à custa dos salários e das vidas de trabalhadores.

Em Portugal, logo à partida, isso significou dar mais de 9.200 milhões de euros de liquidez às empresas, além de benefícios fiscais, alívio dos impostos sobre o capital, facilitação dos despedimentos, despedimentos colectivos, redução de horário, lay-offs e férias forçadas. Medidas destinadas fundamentalmente às grandes empresas e multinacionais, claro. Como todas as crises, este é um momento de gigantesca concentração de capital, com dezenas de milhares de pequenas empresas a dirigir-se a passos largos para a ruína enquanto um punhado de multinacionais açambarca quantidades imensas de riqueza. Como exemplo, veja-se a comparticipação do Estado no pagamento dos salários dos trabalhadores em lay-off. Sendo uma das mais hipócritas medidas do governo — apresentada como ajuda “às famílias” quando não passa de uma enorme oferta de dinheiro público às empresas e de uma permissão para rebaixar salários —, é ainda assim completamente inútil para uma grande parte das pequenas empresas. O Estado só transfere o dinheiro após a empresa pagar todos os salários, o que significa que qualquer pequeno empresário que não tenha liquidez suficiente para isso após semanas (ou até meses) de paragem tem apenas duas opções: declarar falência ou forçar os trabalhadores a produzir durante a pandemia. Ora, como a história não se cansa de demonstrar, qualquer patrão — quer seja grande, quer seja pequeno — protege sempre o seu capital acima de tudo, e certamente acima da segurança e das vidas dos trabalhadores que explora. No final das contas, a medida do governo serve para garantir uma futura injecção massiva de dinheiro público unicamente nas grandes empresas.

E que medidas tomou este governo para proteger os trabalhadores? Em boa verdade, nenhuma. Só nos primeiros dias do mês de Abril, houve 4.098 novos desempregados por dia e 35 despedimentos colectivos. Há centenas de milhares de trabalhadores em lay-off, em férias forçadas, com redução de horário, etc. É uma gigantesca sangria de salários. Enquanto isto, a quase totalidade dos trabalhadores que mantêm o seu posto de trabalho é forçada a trabalhar sem equipamentos de protecção individual (EPI), mesmo em sectores completamente inúteis para enfrentar a pandemia. As maiores empresas recusam-se a parar a produção.

A Teleperformance é um caso ilustrativo. A grande multinacional francesa de call-centers recusou-se a encerrar as suas portas mesmo depois de 5 casos confirmados de COVID-19 entre os trabalhadores de um dos seus edifícios.

Outro caso emblemático é o da fábrica da empresa Eugster Frismag, capital suíço. Esta empresa preparava-se para fazer um despedimento colectivo de 50 trabalhadores quando o director da sua fábrica, em Torres Vedras, foi diagnosticado com COVID-19. Os trabalhadores foram mantidos nos seus postos de trabalho, todavia. Quando finalmente se decidiu parar a produção, foi em regime de férias forçadas. Por fim, escassos dias após a paragem, os patrões suíços ordenaram que se retomasse a produção numa fábrica com cerca de 1.000 operários. O risco é enorme para as famílias de todos estes trabalhadores, que voltaram à fábrica sob a ameaça do despedimento e o terror do contágio.

Por fim, pode ainda ser dado um exemplo da função pública, que ocorreu na Câmara Municipal de Lisboa (CML), um dos principais empregadores do país, acima da maior parte dos ministérios. As chefias e o actual dirigente do Sindicato de Trabalhadores Municipais de Lisboa (STML), da CGTP, tiveram conhecimento de casos de infecção por coronavírus entre os cantoneiros — trabalhadores de limpeza urbana e recolha de lixo —, mas decidiram esconder esta informação dos trabalhadores, que continuaram a desempenhar sem qualquer tipo de EPI o seu trabalho essencial e tão vergonhosamente mal pago.

Casos como o da Teleperformance, da Fresmag ou da CML estão actualmente a ocorrer por todo o país, em todos os sectores, sem que o governo os trave de maneira alguma. Pelo contrário, o decreto do Estado de Emergência suspendeu o direito à greve precisamente para permitir que estes ataques prossigam sem que os trabalhadores possam resistir de qualquer forma legal. Os traços repressivos do Estado português, como está a acontecer com os Estados capitalistas de todo o mundo, acentuam-se cada vez mais durante a pandemia, respondendo a uma necessidade impreterível da burguesia.

O governo, parafraseando Engels, actua unicamente como comité de administração dos assuntos da classe burguesa, transferindo riqueza do sector público para os bolsos dos grandes capitalistas, colocando o peso da pandemia e da crise económica sobre os ombros da classe trabalhadora, afundando no desemprego e na pobreza milhares de famílias trabalhadoras, além de vastos sectores das camadas médias. Eis o cerne da política de Costa.

O “milagre português”

Se a política do governo português não se distingue em nenhum traço geral da seguida pelo governo italiano ou espanhol, como se explica, então, que o número de mortes diárias em Portugal se tenha mantido abaixo das quatro dezenas até agora, ao passo que nesses países as mortes dispararam para as centenas em parcas semanas?

A diferença está hoje para lá de qualquer dúvida. Com a sua primeira morte de COVID-19 a 22 de Fevereiro, exactamente um mês mais tarde, a 22 de Março, Itália teve 793 mortes num único dia e um total de 5.476 mortes. Em Portugal, a primeira morte foi a 16 de Março e, contudo, a 15 de Abril, nenhum dia registou mais de 40 mortes e o número total de mortos é 599. Mesmo tendo em conta as diferenças de população e olhando para as mortes por milhão de habitante, Portugal mantém-se distante do caso italiano, espanhol ou francês.

As legítimas críticas de cientistas que têm sido dirigidas à DGS e ao Ministério da Saúde pela forma como produzem e publicam dados, e até mesmo as mais duras críticas que denunciam o desfasamento entre os números oficiais e a realidade, não servem aqui de explicação. Em parte por incompetência, subfinanciamento da ciência e da saúde, geral falta de preparação dos governos, e em parte porque uma pandemia coloca dificuldades intransponíveis à recolha de dados, todos os países têm sem dúvida alguma números afastados da realidade. Além disto, diferentes países têm seguido muito distintas políticas no registo das mortes — uma das mais absurdas foi a do governo francês, que só muito recentemente passou a contabilizar as mortes de COVID-19 que ocorrem fora dos hospitais. Ainda acima de tudo isto, está algo evidente: uma tragédia de mais de seis ou sete centenas de mortes por dia — que em Itália significou a mobilização de camiões militares para transportar caixões e no estado de New York já provocou a abertura de valas comuns para sepultar o número crescente de corpos — é algo impossível de ocultar. Tentar explicar os números da pandemia em Portugal através da falsificação ou da ocultação de dados é entregar-se a absurdas teorias da conspiração.

A explicação deve ser encontrada, em primeiro lugar, na própria estrutura social e económica. Portugal é um país com cada vez menos indústria, com um grande sector de serviços, com enormes parcelas do território parcamente populadas e com apenas duas áreas metropolitanas de dimensão significativa à escala europeia: Lisboa e Porto.

O sector do turismo teve uma paragem abrupta e, com ele, dezenas de milhares de trabalhadores foram mandados para casa desde logo nas duas maiores cidades e no Algarve. Mas o factor mais relevante, no aspecto económico, é mesmo a fraca industrialização da maior parte do território. A importância da indústria na pandemia é notável tanto em Portugal como em Itália. Em ambos os países, a maioria dos casos dá-se no norte, onde há mais fábricas. Em Portugal, mais de metade de todos os casos até agora foi registado no norte do país, onde há um grande número de fábricas com mais de uma centena de trabalhadores, especialmente do sector têxtil e do calçado, muito ligados ao mercado italiano.

A isto é acrescido o facto de Portugal ter sido o último país da europa ocidental onde chegou a pandemia. Os trabalhadores puderam ver a catástrofe italiana e tirar rapidamente as conclusões necessárias. A pressão sobre o governo português foi, por isso, mais repentina e atempada do que a exercida sobre o italiano, sobre o espanhol ou o francês. As medidas como o encerramento das escolas, em Portugal, foram tomadas mais cedo do que noutros países, e as medidas que o governo foi demasiado cobarde para tomar — porque prejudicavam os interesses do grande capital — foram efectivadas pela luta dos trabalhadores. Mesmo com a traição da direcção da CGTP — que se recusou a mobilizar para a luta durante todo o processo, limitando-se a pedir uma aplicação “justa” do Estado de Emergência —, imediatamente estalaram protestos, conflitos e até pequenas greves em vários locais de trabalho, especialmente em call-centers e nos centros comerciais. Os pequenos negócios perderam clientes tão dramaticamente que se tornou impossível manter a actividade. Com a excepção daqueles que continuaram a ser forçados a encher os transportes públicos para ir trabalhar, as ruas esvaziaram-se.

Por último, é importante destacar um factor que, não sendo exclusivamente nacional, jogou um papel fundamental: o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Uma das mais importantes conquistas da Revolução Portuguesa, o SNS, mesmo depois de uma década de cortes e toda a espécie de ataques em benefício das empresas privadas de saúde, funcionando com falta de pessoal e equipamentos, continua a mostrar uma capacidade de resposta impressionante. As vidas salvas pelo SNS são incontáveis, e a pandemia tornou mais claro do que nunca que a saúde pública é a única com a qual a classe trabalhadora pode contar.

Assim se explica o “milagre” português, que de milagroso não teve nada, e no qual não se encontra qualquer mérito de um governo que caminha aos zigue-zagues e aos apalpões em todas as matérias de prevenção, mantendo os trabalhadores desprotegidos tanto perante o vírus como perante o patronato. Que não restem dúvidas: com a política do PS, caso a pandemia tivesse entrado na Europa por Portugal e não pela Itália, muitas mais vidas teriam sido perdidas. Só a classe trabalhadora salva a classe trabalhadora!

A burla dos “heróis” e da “unidade nacional”

O facto de nem o governo, nem o Ministério da Saúde ou a Direcção Geral de Saúde fazerem a mais ínfima ideia de como lhes correu tão bem uma política genocida de displicência e de cobardia, no entanto, não os impedirá de maneira alguma de procurarem apresentar-se como salvadores da pátria. A política burguesa, ou, melhor dizendo, toda a ideologia de uma sociedade dividida em classes sociais, é sempre tecida a mentiras. E se algo tem sido feito com fartura desde o surgimento da pandemia, é mentir.

A verborreia destes cretinos sobre “unidade nacional”, “guerra” e “heróis” serve para esconder o carácter de classe das suas políticas.

Começando pelos elogios que chovem agora sobre os trabalhadores da saúde, há que dizer que estes trabalhadores não precisam de ser chamados de “heróis” por aqueles que accionaram a requisição civil contra a greve dos enfermeiros, que aprovaram orçamentos do Estado austeritários ano após ano e mantiveram o subinvestimento crónico do SNS enquanto canalizavam recursos para empresas privadas. O que os trabalhadores da saúde e toda a classe trabalhadora precisam é de um SNS de qualidade, gratuito e verdadeiramente presente em todo o território. O que vemos, por detrás da conversa dos “heróis”, é a pandemia a servir para se fazer uma colossal transferência de riqueza do SNS para as empresas privadas da saúde. Os hospitais privados estão a receber até 13.000 euros do SNS por cada doente de COVID-19 que tratam, enquanto os laboratórios privados recebem 100 euros do SNS por cada teste realizado. Há quem lucre com a pandemia.

Quando os representantes políticos do capital nos dizem que estamos “todos no mesmo barco”, que temos de “ultrapassar estas dificuldades juntos”, que “não devemos politizar uma tragédia”, o que nos estão de facto a dizer é que nos querem quietos enquanto sofremos despedimentos massivos e todo o tipo de abusos às mãos dos patrões. Não, não estamos “no mesmo barco”. Se mantivermos a analogia naval, então há que dizer que as famílias trabalhadoras estão a afogar-se sem bote salva-vidas nas águas cada vez mais profundas desta crise enquanto os milionários e multimilionários fazem discursos sobre o sofrimento geral na segurança de um luxuoso iate. Esta sim, é uma imagem que representa a realidade devidamente, e que torna claro o que temos de fazer: tomar o iate de assalto e lançar ao mar estes parasitas sociais.

Que os capitalistas paguem a crise!

As crises económica e política já são uma realidade consumada. A cada dia que passa, a burguesia impacienta-se mais, exigindo a “reabertura da economia”. O maior perigo que enfrentamos, agora, é o de um regresso precoce à produção. Isto já se passa no Estado espanhol, ameaçando deitar por terra todas as lutas e sacrifícios das famílias de classe trabalhadora.

Avisámos repetidamente que com a chegada da crise não restaria qualquer espaço para a conciliação de classes. Hoje, escrevê-lo é apontar uma obviedade. Os capitalistas e o seu Estado já mostraram estar dispostos a assassinar quantas pessoas acharem necessário para “salvar a economia”.

Da parte da nossa classe, a atitude deve ser exactamente a mesma. Que seja a burguesia a pagar a crise do seu sistema! E se alguém tem que morrer, pois que morra o capitalismo!

Isto é o contrário da política de conciliação de classes que tem sido seguida pelas direcções do PCP, do BE e da CGTP, uma política que tem de ser travada imediatamente. O cretinismo parlamentar, a traição que constituiu o apoio ao Estado de Emergência, os discursos vazios — que não passam do eco da política de “unidade nacional” —, a renúncia a organizar a luta, o rebaixamento do programa até este não passar de medidas inócuas para os lucros do capital, tudo isto é inaceitável e, na prática, tem correspondido a uma frente unida desta esquerda com o patrões e as suas organizações e partidos.

Mais do que nunca, é indispensável levantar o programa de nacionalização da banca, da saúde, da educação, dos sectores chave da economia e de todos os monopólios e grandes empresas sob controlo das organizações de trabalhadores. Um programa de luta! É preciso organizar a nossa classe mesmo sob o Estado de Emergência, e construir uma esquerda combativa que esteja à altura das enormes batalhas que estamos prestes a travar na guerra de classes.

JORNAL DA ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA

JORNAL DA LIVRES E COMBATIVAS