Até 1981 qualquer pessoa que nascesse em solo português tinha direito à nacionalidade portuguesa, independentemente da situação legal dos pais — aplicava-se o princípio de jus soli (direito de solo). Em Outubro desse ano o governo da Aliança Democrática, coligação formada dois anos antes pelo PSD, CDS e PPM, alterou de forma drástica a lei da Nacionalidade. Procurando restringir os fluxos migratórios das ex-colónias e dividir a classe trabalhadora em Portugal, aprovou a Lei n.º 37/81, impondo como condições necessárias à aquisição da nacionalidade pelos nascidos em Portugal que pelo menos um dos seus progenitores fosse português ou que ambos residissem em Portugal há pelo menos 6 anos — passava-se a aplicar o princípio de jus sanguinis (direito de sangue).

A lei da nacionalidade

Passaram-se 25 anos até que a lei fosse alterada no sentido de reforçar o princípio de jus soli. A 5ª versão da lei, de 2006, aprovada pelo governo do PS, atribuía a nacionalidade portuguesa a imigrantes de segunda e terceira geração nascidos em Portugal, exigindo contudo para isso que um dos progenitores tivesse nascido em Portugal. Continuam sem acesso à nacionalidade milhares de trabalhadores e seus filhos que são impedidos de exercer os seus direitos democráticos mais básicos, como votar ou ter participação política. Há situações tão gravosas como a impossibilidade de acesso a um médico de família ou a bolsas de estudo. O elevado custo do próprio requerimento de nacionalidade por naturalização e subsequentes emolumentos têm servido de barreira à aquisição da nacionalidade mesmo para quem já viva legalmente em Portugal há mais de 6 anos, como prevê a lei. O mesmo se pode dizer da burocracia e falta de funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que arrasta os processos de pedidos de residència durante anos, fazendo com que os trabalhadores imigrantes vivam muito mais anos numa situação de insegurança e precariedade extremas.

A campanha por uma nova lei da nacionalidade

A presente lei n.º 37/81 é um mecanismo de rebaixamento dos salários de toda a classe trabalhadora através da manutenção de um segmento da classe em situação de sobre-exploração. É uma lei naturalmente sentida como uma enorme injustiça por várias associações e coletivos antirracistas e de defesa dos imigrantes, que por este motivo se juntaram no final de 2016 para lançar uma campanha que tem como principal objectivo mudá-la de modo a que a nacionalidade portuguesa seja atribuída a todos os nascidos em Portugal, independentemente do país de origem e da situação legal dos seus pais. Exige-se ainda que a mudança da lei tenha efeitos retroactivos que se estendam a todos aqueles nascidos em Portugal depois de 1981, tendo sido privados do acesso à nacionalidade, e que se revoguem as alíneas que impedem o acesso à nacionalidade de pessoas que tenham sido condenadas a pena de prisão igual ou superior a três anos.

Foi lançada uma petição com estas exigências, com o propósito inicial de consciencializar os trabalhadores com nacionalidade portuguesa para as injustiças sofridas pelos trabalhadores imigrantes e seus filhos que cá vivem mas a quem é vedado o acesso à nacionalidade. Foi levado a cabo um esforço de mobilização de todos os trabalhadores de modo a pressionar o parlamento burguês a mudar de facto a lei quando o tema fosse a discussão na Assembleia da República. O Socialismo Revolucionário foi uma das várias organizações que esteve nas ruas a recolher assinaturas para a petição e a discutir com os trabalhadores, a maioria dos quais, revelando surpresa perante a actual lei e reconhecendo as dificuldades de quem vive sem acesso à nacionalidade, assinou a petição.

Totalizando mais de 8500 assinaturas, a petição foi entregue na Assembleia da República a 19 de Outubro do ano passado. À porta faziam-se ouvir os slogans “quem nasce em Portugal é português” e “documentos para todos”, entre outros, entoados por uma centena de pessoas que se mobilizaram para a acção de protesto. No microfone aberto houve relatos feitos na primeira pessoa sobre as dificuldades vividas por quem não tem a nacionalidade e ainda declamação de poesia e de RAP político.

Foi graças ao enorme potencial de mobilização rapidamente demonstrado pela campanha que vários partidos políticos apresentaram projectos de lei (PL) com propostas de alteração da lei da nacionalidade durante o ano passado. As propostas do BE e do PCP visavam reforçar o jus soli, ainda que de forma insuficiente.

As propostas de alteração da lei

Ainda no final de 2016, quando a campanha dava os primeiros passos, o PSD apresentou o PL 364/XIII que, ignorando a situação vivida por aqueles sem nacionalidade portuguesa em Portugal, propunha dar a nacionalidade portuguesa a netos de emigrantes portugueses, mesmo que não falassem a língua, não trabalhassem nem residissem em Portugal, expandindo e vincando o princípio do jus sanguinis na lei portuguesa.

Seguiu-se a apresentação do PL 390/XIII pelo BE, em Janeiro do ano passado, que propunha revogar a alínea e do artigo nº 1 e substituir a alínea f por “[São portugueses de origem] Os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros que não se encontrem ao serviço do respetivo Estado”, indo esta alteração ao encontro do princípio de jus soli. Pretendia-se ainda alterar o artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 322-A/2001 equipararando os emolumentos nos processos de atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade ao valor exigido para a emissão do cartão de cidadão: €15. Este PL, a ser aprovado, significaria um importante passo rumo à igualdade de direitos entre todos os trabalhadores.

Em Março também o PCP apresentou uma proposta, o PL 428/XIII, que pretendia revogar a alínea f do artigo nº 1 e substituir a alínea e por “[São portugueses de origem] Os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros se declararem que querem ser portugueses e, desde que, ao tempo do nascimento, um dos progenitores aqui resida independentemente do título”. Pretende-se desta forma prevenir, segundo o PCP, os “riscos de abrir a possibilidade de se considerar portugueses quem cá nasça por acaso ou com o único objectivo de adquirir a nacionalidade”. Resta saber que riscos são esses, e para quem são eles — certamente não para quem vive do seu trabalho. Ao contrário do PL do BE, não altera os valores relativos aos emolumentos dos processos de atribuição ou aquisição da nacionalidade. O PCP ficou, assim, por uma meia-medida que, apesar de ser um passo em frente, não resolve o problema nem ultrapassa a proposta do BE.

Em Junho foi a vez de o PS apresentar o PL 544/XIII, propondo que se modifique a alínea f do artigo nº 1 para que possam adquirir a nacionalidade “indivíduos nascidos no território português [...] desde que, no momento do nascimento, um dos progenitores aqui resida legalmente há pelo menos 2 anos” em vez dos 5 previstos na actual lei. Apesar da diminuição de tempo, estes 2 anos continuam a ser uma barreira injusta à aquisição da nacionalidade. Propõe ainda que se retire a menção à lei portuguesa no artigo nº 9, lendo-se então “[Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:]  b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença com pena de prisão igual ou superior a 3 anos segundo a lei portuguesa”. Esta alteração significaria a impossibilidade de aquisição da nacionalidade por pessoas condenadas por sistemas de justiça alheios ao português, incluindo, por exemplo, activistas, militantes ou membros de alguma minoria perseguida exilados em Portugal que tenham sido condenados pelas suas actividades políticas, religiosas, etc, em estados autocráticos. O PL do PS vem portanto impedir que mais pessoas tenham acesso à nacionalidade portuguesa ao agravar um artigo que já na sua forma original tinha sido considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, pois entrava em conflito com a alínea 1 do artigo 30º da constituição portuguesa “Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”.

Seguiu-se-lhe o PL 548/XIII do PAN seis dias depois, que, não propondo sequer alterações ao artigo nº 1, apenas propõe alterar uma das condições necessária à naturalização no artigo nº 6: que residam legalmente no território português há 5 anos em vez dos 6 actualmente previstos na lei.

Vale a pena realçar que nenhum destes PL responde às reivindicações da campanha — à retroatividade ou à revogação das alíneas que impedem o acesso à nacionalidade àqueles que tenham sido condenados a penas de prisão igual ou superiores a três anos.

Votação das Propostas de Alteração da Lei

A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a quem compete apreciar os PL e petições submetidos à Assembleia relativas à questão da nacionalidade, constituiu em Outubro passado um Grupo de Trabalho incumbido de proceder à discussão e votação indiciária das 5 iniciativas legislativas, esta última tendo acontecido na 6ª e última reunião do grupo a 12 de Abril.

Na votação dos PL, que se faz alínea a alínea, o PS aliou-se sistematicamente ao PSD e CDS-PP ao rejeitar as alterações propostas pelo BE e PCP, ou abstendo-se. Desta votação resultou a retirada dos PL do BE, PCP, PS e PAN em favor de um projecto de texto de substituição exactamente igual à PL do PS, remetido à Comissão para ratificação das votações indiciárias, o que aconteceu a 18 de Abril.

Quiçá apanhados de surpresa pela capacidade de mobilização da campanha para o evento de dia 19 de Outubro, os partidos burgueses parecem ter decidido não correr o risco de permitir uma segunda mobilização, tendo sido o texto de substituição subrepticiamente votado em plenário apenas dois dias depois, a 20 de Abril. As votações indiciárias foram aprovadas por unanimidade e o texto de substituição foi aprovado na votação na generalidade e na votação final global com os votos a favor do PS, BE, PCP, PEV, PAN, votos contra do CDS-PP e abstenção do PSD, esperando agora a promulgação do Presidente da República para se modificar a lei. Com a aprovação deste projecto, BE e PCP deixaram cair as suas propostas, abandonando assim a luta pelo jus soli.

Estes resultados vêm confirmar mais uma vez o PS como partido da classe dominante, assim como a incapacidade — ou falta de interesse — das direcções do BE e do PCP de o denunciarem. Ao abdicar do jus soli, as direcções do BE e do PCP abandonaram o movimento que dizem apoiar e as reivindicações que dizem considerar da mais elementar justiça.

Apesar desta capitulação, a campanha continuará. Fez-se representar recentemente nas marchas do 25 de Abril e 1º de Maio com um bloco, tendo já marcados alguns eventos até à data de discussão da petição na Assembleia da República a 18 de Maio.

O Socialismo Revolucionário condena a política de conciliação de classes seguida pelas direcções da esquerda parlamentar em relação à questão da nacionalidade[1], mantendo discriminações inaceitáveis que ajudam a precarizar as condições de trabalho em Portugal, mantendo uma parte importante da classe trabalhadora sem direitos de cidadania plenos. O Socialismo Revolucionário segue comprometido com a luta pela implementação do jus soli em Portugal enquanto passo de extrema importância para a promoção da unidade da classe trabalhadora e pela construção de um partido da classe trabalhadora capaz de corresponder às justas expectativas de milhares de trabalhadores e jovens que vivem em Portugal.


 

[1] Aconselhamos a leitura do artigo do Socialismo Revolucionário “Lei da nacionalidade: uma análise marxista” onde analisamos em maior profundidade as posições da esquerda nesta matéria e expomos a posição marxista.

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