Depois de quase um ano de pandemia, a catástrofe sanitária alcançou níveis inéditos. A terceira vaga está a ter uma letalidade dezenas de vezes maior do que aquela que conhecemos no início da pandemia e que obrigou o governo, depois de muita resistência, a avançar finalmente com o confinamento da população. Meses de propaganda vazia, de mentiras e de demagogia, sem qualquer previsão ou planificação séria, resultaram nisto.

Os contágios ultrapassaram os 16.000 num único dia. No momento da escrita deste artigo, há 166.888 casos ativos de covid-19. As entradas nos hospitais dispararam e as mortes diárias mantêm-se perto das 300. Segundo dados oficiais, o número total de mortes é agora de mais de 13.000. No pico desta vaga, Portugal chegou a ter a maior taxa de contágios, com 16.829 casos por milhão de habitantes, e a maior taxa de mortalidade, com 340 mortos por milhão de habitantes.

Chegam denúncias dos hospitais que comprovam como o SNS se encontra em colapso, existindo Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) a atingir mais de 90% e até 100% da ocupação, isto depois de a capacidade ter sido, segundo o governo, duplicada desde março de 2020. Vários hospitais estão a ser forçados a transferir doentes e a ocupação das camas no SNS alcançou 94% no dia 1 de fevereiro. As ordens são de endurecimento da triagem para diminuir o fluxo de doentes, mas o facto é que, por falta de infraestruturas, equipamentos e pessoal, os profissionais de saúde estão neste momento à beira da situação em que têm de decidir quem vive e quem morre. E os números aos quais temos fácil acesso são os das mortes por covid-19, mas por detrás deles esconde-se uma realidade terrível de muitas outras doenças que o SNS está incapaz de tratar no caos atual.

O investimento na saúde não foi apenas insuficiente, foi nada menos que ridículo, tal como demonstra a crua realidade desta matança perfeitamente evitável. E apesar de tudo, o governo mantém que “ainda não chegámos ao ponto em que é necessária a requisição civil dos hospitais privados” e recusa-se a fechar a economia e todos os serviços não-essenciais. Porquê? Porque assim exigem as patronais, o PSI20 e todas as grandes empresas.

Ao mesmo tempo, dá-se uma transferência obscena de dinheiro público para as empresas privadas da saúde através de acordos nos quais o Estado paga milhares de euros por cada doente tratado no setor privado. O preço a pagar por doente pode ascender a quase 13.000 euros, nos casos mais graves. Para os capitalistas, o adoecimento e a morte de milhares de pessoas é uma excelente oportunidade de negócio, como o demonstra esta pandemia e qualquer guerra.

Tudo acontece, como é óbvio, sem jamais prejudicar o acesso da burguesia a cuidados de saúde especiais nesses mesmos hospitais privados, enquanto a esmagadora maioria da população arrisca a morte nas filas intermináveis de ambulâncias e no caos mais absoluto de um SNS cronicamente subfinanciado. Esta é a realidade brutal que os responsáveis por esta gestão criminosa querem ocultar ou dissimular! Que mais tem de acontecer para que o governo PS nacionalize e tome o controlo dos recursos e do pessoal da saúde privada para fazer frente à pandemia e colocar toda a população em situação de igualdade?

A culpa é da população? Basta de criminalização social para esconder os assassinos

Que Marcelo, Costa, Marta Temido e todo o governo, juntamente com a comunicação social, culpem a população pela situação que vivemos é um insulto à nossa inteligência. Com o tipo de afirmações que têm feito, só mostram como funciona a política burguesa em tempos de guerra: a verdade é sempre a primeira vítima. Marcelo mostrou bem isto com as suas declarações a meio de Janeiro, à saída do Hospital de Santa Maria: “Ou a sociedade percebe a gravidade da situação ou os políticos podem concluir que é necessário ir mais longe no fecho de atividades (...). Fechar é fechar, confinar é confinar, não é confinar mais ou menos, não é fingir que confina, não é usar todas as exceções ou passear o cão três ou quatro vezes por dia”. Que declaração mais repugnante, cheia de hipocrisia e paternalismo!

Apesar das incontáveis advertências dos especialistas, quase um ano depois do início da pandemia, é evidente que não se tomaram as medidas adequadas nem se investiu nos recursos necessários. O governo manteve a atividade produtiva e comercial a todo o custo, tal como exigem as empresas do PSI20 e todos os grandes capitalistas. Esta é a explicação do que está a acontecer: acumular lucros e enriquecer ainda mais os ricos está acima de proteger a saúde pública. Não será esta exatamente a mesma política seguida por Trump, nos EUA, por Boris Johnson, no Reino Unido, ou por Macron, em França?

Por que motivo está o SNS em colapso? Por que motivo está o programa de vacinação a ter tantas irregularidades e atrasos? Onde estão as contratações e os investimentos anunciados com pompa e circunstância pelo governo? Onde está o equipamento de rastreamento para travar a expansão da pandemia? Não houve tempo suficiente para tomar medidas contundentes? Anos de cortes e privatizações deixaram uma marca profunda no nosso SNS, mas o que faz a ministra da saúde para reverter esta situação dramática?

António Costa afirma e reafirma a confiança em Marta Temido, apresentando-a como uma heroína nacional, mas qual é, afinal, o balanço real dos seus mandatos à frente do ministério? Há que dizê-lo: para além de fazer relatórios periódicos dos números da pandemia em conferências de imprensa — das quais Graça Freitas, diretora da DGS, simplesmente fugiu —, se algo caracteriza a sua gestão é não prever, não planificar, não mobilizar recursos suficientes perante as várias ondas, procurando ilibar-se constantemente com a culpabilização da população, das diferentes estirpes, do frio ou do calor e do que mais houver.

Estas são as consequências de aceitar a lógica capitalista. Agora o governo encolhe os ombros, mas o facto é que por não ter rompido com as políticas capitalistas, por não ter nacionalizado a saúde privada, a banca e as empresas de energia, por só dar migalhas às famílias trabalhadoras, fez-nos chegar a este trágico espetáculo. A renúncia a adotar políticas genuinamente de esquerda para chocar frontalmente com os interesses instalados, a opção por tentar conciliar o inconciliável, isto é o que realmente faz com que a catástrofe económica, social e sanitária não tenha solução à vista.

É preciso parar a atividade económica não-essencial, garantindo os salários e proibindo os despedimentos!

Ignorando os alertas de especialistas que pediam um novo confinamento restrito, Temido e o governo seguiram à risca a rota que lhes impôs o grande capital até ser tarde demais. Costa afirmou vezes sem conta que é preciso salvar vidas “sem matar a economia”, porque de outra forma será “pior para todos”. Este argumento, repetido ad nauseam pelos comentadores de direita e igualmente por aqueles que se fazem passar por “progressistas”, é uma falácia completa. Os grandes empresários têm bem guardado o lucro dos anos anteriores e não querem ver diminuições do seu lucro atual. Pouco lhes importavam as vidas dos trabalhadores antes da pandemia, pouco importam agora, durante a pandemia, e pouco importarão depois de tudo isto.

O problema é radicalmente diferente para quem todos os dias tem de entrar no comboio, no metro ou em autocarros a abarrotar de passageiros para chegar ao local de trabalho, para quem tem de trabalhar sem equipamentos ou regras de segurança que são sistematicamente desrespeitadas pelas empresas. As nossas vidas importam, sim, e muito mais do que os lucros.

Se realmente se pretende proteger a população é necessário tomar medidas capazes de efetivamente controlar a pandemia. O incompleto confinamento que vivemos está já a mostrar resultados (40% de redução dos contágios), mas quem paga por ele é a classe trabalhadora. O que é necessário, rompendo com a lógica capitalista, é fazer um confinamento que não implique uma hecatombe para os trabalhadores e para a juventude. Que sejam os capitalistas a pagar, com os colossais lucros que acumularam durante anos. Só as empresas do PSI20 lucraram 3,2 mil milhões de euros em 2019, boa parte dos quais foi distribuída pelos acionistas em chorudos dividendos. Onde está essa riqueza agora?

O governo PS não pode governar “para todos”, ou governa para quem trabalha, ou governa para a família Amorim, para a família Mello, para a família Soares dos Santos e toda a laia de grandes capitalistas. Até agora, tem claramente governado para as grandes famílias capitalistas, e contra nós, as centenas de milhares de famílias trabalhadoras, que somos quem produz toda a riqueza com o suor do nosso trabalho. E perante a pandemia, esta política é nada menos que genocídio.

O que se exige de um governo de esquerda são políticas de esquerda. É fundamental que se paralise imediatamente a atividade não-essencial, garantindo os salários por completo, proibindo despedimentos e canalizando os enormes recursos de toda a sociedade — que estão neste momento nas mãos de um punhado de plutocratas — para garantir habitação, alimentação, educação, saúde, aquecimento… Tudo isto é perfeitamente possível!

Se foi possível entregar, logo no início da pandemia, 9.000 milhões de euros às empresas, e se agora podem fazer chover outros incontáveis milhões sobre as empresas do PSI20 até contando com ajudas da UE, é porque não faltam recursos. O problema não é falta de recursos, o problema é que nesta crise quem está a ser resgatado é o grande capital monopolista e financeiro, tal como em 2008, e quem está a pagar pelo resgate é a classe trabalhadora — com desemprego, reduções salariais, pobreza, doença e morte...

A esquerda tem de romper com a política de unidade nacional!

A esquerda está numa encruzilhada. A sua política de cedências, de conciliação de classes, de “unidade nacional” está a colocá-la numa posição perigosa. Perante a pandemia, o mais que as direções do BE e do PCP fazem são afirmações vazias. Catarina Martins surge indignada com os escândalos no programa de vacinação e exige a punição dos culpados, Jerónimo de Sousa fala num “equilíbrio difícil” entre medidas de combate à pandemia e medidas que permitam “aos portugueses” continuar “a trabalhar e a conviver”. Isto é tudo o que a esquerda exige: cumprimento da lei, continuar a ir para o trabalho... e poder conviver. Até a direita consegue concordar com estas palavras!

O problema não é a falta de punição para quem desviou vacinas, é a mais completa falta de planeamento, é a crónica falta de investimento no SNS, é a manutenção dos privados, é a completa ausência de controlo democrático dos trabalhadores sobre o processo, permitindo-se assim que os administradores se entreguem a todo o tipo de falcatruas e favorecimentos sem prestar contas a ninguém. Há que nacionalizar a saúde imediatamente.

As palavras de Jerónimo de Sousa merecem ainda mais atenção. Disse o Secretário Geral do Partido Comunista Português que “esta questão do confinamento que alguns dizem fundamental, incontornável, levanta uma questão: é que podemos todos confinar-nos, acabamos com as transmissões do vírus, o problema é que podemos acabar com a vida”. Não admira que nas fileiras do PCP se encontrem inclusivamente negacionistas do vírus, tal é o grau de contorcionismo destes dirigentes para justificar o injustificável. Quando não só o confinamento como ainda o encerramento completo de toda a atividade não-essencial se torna uma necessidade para salvar milhares de vidas, temos um dirigente “comunista” a dizer-nos que é preciso ir trabalhar e conviver.

O problema tem sido precisamente sermos forçados a ir para o trabalho em condições inaceitáveis, trabalharmos em condições igualmente inaceitáveis e sermos ainda tratados num SNS em colapso. Tem sido o desemprego crescente, tem sido os rios de dinheiro público que é entregue a empresas privadas enquanto as famílias trabalhadoras são abandonadas. Isto não só ameaça “acabar com a vida” de milhares de trabalhadores e pobres, como realmente acaba com mais de um milhar de vidas por semana.

É por demais evidente que aqui não se trata de um "equilíbrio difícil” entre “segurança e convívio”, como diz Jerónimo, ou, nas palavras mais claras de Costa, um “equilíbrio” entre saúde pública e economia que tem de ser feito pelo governo. Aceitar este argumentário é aceitar a inevitabilidade da matança que vivemos. A verdade é completamente diferente. Do que aqui se trata é de um equilibrismo impossível que está a ser feito por todas estas direções reformistas da esquerda, e que tem um elevado custo para toda a classe trabalhadora e para a juventude.

Ou será que afinar uns detalhes no confinamento e punir quem rouba vacinas é o máximo que se pode fazer com os recursos e a tecnologia que temos ao nosso dispor?!

Se de facto servem para alguma coisa, estas direções da esquerda têm de dar um murro na mesa e mobilizar os trabalhadores e a juventude para a luta. Esta é a única forma de parar a matança. E ninguém aqui descobriu a pólvora. Esta conclusão é simplesmente a que se tira das lições que nos deu a história da luta de classes. Mas ao abandonar a perspetiva de mobilização social e ao reduzir tudo ao jogo parlamentar, estas direções caíram na cegueira mais absoluta e prestam-se a fazer as mais tristes figuras.

O rumo que está a ser tomado prepara uma nova onda de austeridade e, a prazo, abre as portas a um governo da direita. Ao capitular desta maneira e ao juntar-se ao coro da “unidade nacional”, mesmo mantendo pontuais críticas a aspectos particulares do governo PS — a restruturação da TAP, o caso BES… ou até o orçamento da saúde —, as direções do BE e do PCP anulam-se completamente. O programa do governo é um todo, e só pode ser entendido como um todo. Quando se entregam milhares de milhões de euros à banca e às grandes empresas, mas uns poucos milhares a políticas sociais, está a ser efetivamente aplicada uma política de austeridade que se revelará completamente após a pandemia.

O perigo da extrema-direita que é constantemente agitado pelas direções da esquerda é tanto maior quanto mais a esquerda segue por este caminho. Se não se combate a extrema-direita com políticas reais que resolvam os problemas dos trabalhadores e da juventude, se se rejeita mobilizar para a luta nas ruas, então como se combate a extrema-direita? Com discursos sobre a democracia e a constituição? Esta estratégia de conciliação com a burguesia só fortalece a direita e a sua demagogia populista perante uma catástrofe social que não pára de agravar-se.

A esquerda precisa de abandonar imediatamente esta política, não só verbalmente, no parlamento e nas declarações à comunicação social — onde é fundamental denunciar os acordos criminosos do governo com as patronais, com os privados da saúde, etc. —, senão também na prática, com a mobilização decidida das massas, com uma política de esquerda consequente e apoiada na força da classe trabalhadora organizada. Em última instância, ou estas direções se viram para a classe trabalhadora ou acabarão a obedecer servilmente ao grande capital.

 

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