A Revolução Portuguesa foi um momento histórico para a emancipação da classe trabalhadora internacional. Meio século de fascismo e treze anos de guerras de libertação nacional em África terminaram com a entrada em cena de milhões de trabalhadores e camadas das classes intermédias depois do golpe militar de 25 de Abril de 1974. Atomizada durante décadas sob a ditadura do capital na sua forma mais extrema, a classe trabalhadora rapidamente tomou nas suas mãos a construção coletiva de órgãos democráticos para organizar todas as esferas da sua vida.

Durante 19 meses 3 milhões de trabalhadores discutem e votam como organizar o seu dia a dia em mais de 4.000 comissões. Comissões de trabalhadores (CTs) decidem como organizar os locais de trabalho, ocupando fábricas e terras, no caso dos assalariados agrícolas, e implementando a reforma agrária. Os patrões viam-se sequestrados nas empresas que anteriormente detinham ou fugiam do país perante estas ocupações. Salários são aumentados, horários reduzidos e capatazes do velho regime saneados. Comissões de moradores ocupam e distribuem as casas devolutas nos bairros para que cumprissem a sua função social. Na maioria das vezes eram dirigidas por mulheres que exigem a socialização do trabalho doméstico com a transformação de algumas destas casas em creches e cantinas. Até comissões de soldados aparecem no exército, incentivadas pela organização clandestina Soldados Unidos Vencerão (SUV) que busca democratizar os quartéis, destruir o exército burguês e criar o Exército Popular Revolucionário, o braço armado da revolução. A entrada de militantes nos partidos de esquerda é massiva e o socialismo estava na boca de toda a gente.

Como foi então possível que a Revolução Portuguesa ficasse a meio, apesar do colapso quase total do Estado e da criação destes órgãos de duplo poder que punham em causa a autoridade do recém-criado Estado Burguês “democrático”? Ao contrário da Rússia em 1917, não havia, em Portugal, no biénio 1974/1975, um partido Bolchevique capaz de levar a Revolução ao fim.

A burguesia entendeu que o Partido Socialista (PS) era a melhor ferramenta ao seu dispor para desviar o desfecho da Revolução do socialismo para uma democracia liberal. A social-democracia teve em Mário Soares um dirigente capaz. Defende, perante toda a burguesia internacional, que o PCP, o partido mais bem organizado naquele momento e referência na luta contra o fascismo, integre o 1º Governo Provisório por forma a partilhar as responsabilidades e a amarrá-lo ao programa e falhanços do governo burguês. Soares consegue desta forma ganhar um ano para organizar o PS e desacreditar o PCP. Bem financiado pela social-democracia europeia e explorando todos os erros do PCP, o PS vence as eleições de 25 de Abril de 1975 para a Assembleia Constituinte, obtendo quase uma maioria absoluta.

Em Abril de 1974 a direção do PCP ainda segue as estratégias discutidas no VI Congresso de 1965, e acredita que uma “revolução democrática”, feita em aliança com os sectores “progressistas” da burguesia, é uma etapa necessária para uma revolução socialista vindoura. Decide assim integrar o 1º Governo Provisório burguês. A direção do PCP em 1974 posiciona-se deste modo mesmo atrás dos bolcheviques mais atrasados em Fevereiro de 1917, Stalin e Kamenev, que tinham decidido apoiar o Governo Provisório russo antes da chegada de Lenin a Petrogrado. Lenin escreve o texto Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução (mais comummente conhecido por Teses de Abril), para defender perante os seus camaradas o programa que o partido Bolchevique deve adoptar para fazer avançar a revolução. Um programa que, na sua 3ª tese, repudia o apoio ao Governo Provisório e que, mutatis mutandis, poderia ser aplicado à Revolução Portuguesa, razão pela qual o acrescentamos no final desta publicação.

A 5ª das Teses de Abril diz o seguinte: ”Não uma república parlamentar — voltar dos sovietes de deputados operários a esta seria um retrocesso — mas uma república dos sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses em todo o país, de baixo para cima.” Esta posição defendida por pequenos grupos da extrema-esquerda durante a Revolução Portuguesa, mas nunca pelo PCP, que apenas apoia a auto-organização dos trabalhadores nos cinco primeiros dias após o 25 de Abril, até ficar claro que vai integrar o Governo Provisório. Pelo contrário, o PCP opõe-se à criação de um órgão superior das CTs — algo como um Congresso dos Sovietes — e às greves convocadas por estes e outros órgãos democráticos, caracterizando-as frequentemente de “reacionárias”. Para combater as CTs, muitas das quais dirigidas pela extrema-esquerda, o PCP gastará muita energia na batalha pela unicidade sindical, buscando impor, por via estatal, a organização dos trabalhadores apenas em sindicatos.

A burguesia, cada vez mais impaciente e desconfiada da via traçada pela social-democracia para acabar com a Revolução, inicia vários golpes. Os dois primeiros, o golpe palaciano de Palma Carlos a 7 de julho de 1974 e o golpe de 28 de setembro de 1974 da “maioria silenciosa” que buscava provocar confrontos violentos que justificassem um Estado de Sítio, pretendiam fazer de Spínola o Presidente. No golpe seguinte, a 11 de março de 1975, Spínola já procura mobilizar o exército contra um imaginário golpe preparado pelo PCP sob ordens de Moscovo — a “Matança de Páscoa”. A única coisa que a burguesia conseguiu foi a radicalização da classe trabalhadora e do MFA, que, empurrado por esta, começava agora a falar da necessidade do socialismo. Avançou com a nacionalização da banca e dos seguros, o que significava que mais de 70% da economia ficava agora nas mãos do Estado — mas de um Estado que não era controlado pela classe trabalhadora.

A radicalização da classe trabalhadora cresce durante o “Verão Quente”, culminando em novembro com o cerco de dois dias à Assembleia Constituinte por milhares de operários da construção civil ou com o juramento de bandeira “revolucionário” do Regimento de Artilharia Ligeira de Lisboa em que juravam “estar sempre, sempre ao lado do povo, ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador.” Uma radicalização que fugia ao controlo tanto do PS quanto do PCP, o que leva a reação a apostar num golpe final para parar o seu avanço. A 25 de novembro um golpe militar da direita, liderado por Ramalho Eanes e apoiado pelo PS, partidos de direita, a ala direita do MFA, Igreja e NATO, prende mais de uma centena de oficiais de esquerda, pondo fim à dualidade de poderes que ameaçava espalhar-se pelo exército.

A direção do PCP dá ordens de desmobilização das acções civis conduzidas pela Intersindical, impede a saída dos fuzileiros por si dirigidos e recusa distribuir armas a milhares de militantes e simpatizantes que as pediam junto às sedes e unidades militares. A nível internacional o PCP era fiel à URSS, e portanto, também aos acordos de Ialta e Potsdam, negociados entre o Reino Unido, Estados Unidos e União Soviética no final da II Guerra Mundial, que dividiram o mundo por zonas de influência, ficando Portugal na esfera de domínio do imperialismo ocidental. Uma das razões pelas quais o PCP não resistiu ao golpe de 25 de novembro foi porque, segundo assumiu a sua direção, a atuação da esquerda militar punha em causa precisamente estes acordos internacionais de coexistência pacífica.

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As lições da Revolução Portuguesa continuam a ser fundamentais hoje. A construção do partido revolucionário é tão necessária hoje como então para defender o programa da transformação socialista da sociedade.

Órfã de uma direção, desorientada e cansada, a classe trabalhadora não consegue resistir a este último golpe. Esta é a principal lição da Revolução Portuguesa: a existência de um partido revolucionário dotado de um programa marxista e de uma autoridade política entre os setores mais avançados da classe é uma condição essencial para garantir o sucesso de uma revolução proletária.

A Revolução Portuguesa é também mais um exemplo da pertinência da Teoria da Revolução Permanente desenvolvida por Trotsky, em oposição à “teoria das etapas” defendida por partidos estalinistas. A luta por direitos democráticos não será feita nunca pela classe trabalhadora em aliança com uma burguesia “democrática”. Estas duas classes têm interesses diametralmente opostos. O proletariado não pode conquistar o poder sem destruir as instituições burguesas, sem expropriar a propriedade privada dos meios de produção e da terra, sem planificar a economia para servir os seus interesses. Nenhuma burguesia vai compactuar com a sua extinção enquanto classe, por mais “democrática” ou “progressista” que possa parecer. Nos séculos XX e XXI a luta por direitos democráticos não pode ser, portanto, impulsionada por qualquer burguesia nacional, como nas revoluções liberais europeias do séc. XIX, mas apenas pela classe trabalhadora e massas oprimidas contra a burguesia.

Pouco a pouco, o capital foi restabelecendo o seu domínio e apagando as conquistas da Revolução Portuguesa. O Estado burguês devolveu as empresas e campos sob controlo operário aos patrões e avançou com medidas para aumentar a taxa de lucro da burguesia, como a precarização do trabalho. A derrota, na década de 80, dos operários da Lisnave, a ponta de lança do proletariado português, numa luta defensiva contra o avanço desta precarização, e em que a burguesia conseguiu um acordo em que impunha o fim das greves — uma cláusula de “paz social” — foi um duro golpe para toda a classe trabalhadora, à semelhança da dos mineiros na Grã-Bretanha às mãos de Thatcher. Nunca nestas últimas décadas fez o PCP uso da CGTP para convocar greves solidárias ou greves gerais consequentes que pudessem travar o avanço da burguesia.

Hoje não há mais democracia no trabalho, nos bairros, nos campos, nas escolas. Sob a ditadura do capital a classe trabalhadora voltou a trabalhar muito, a receber pouco e a não decidir nada. Não temos casas para viver porque o capital usa-as para especular. A educação e a saúde públicas, conquistas da Revolução, são propositadamente desmanteladas para darem lugar a privados que não temos como pagar.

Em especial os últimos dois anos foram de grande empobrecimento da classe trabalhadora, com uma inflação e uma crise da habitação que não pararam de aumentar, e que empurraram cada vez mais gente para situação de sem abrigo e de dependência das filas da fome. A rejeição do sistema capitalista e da democracia burguesa está no auge desde a Revolução.

Escrevemos este prefácio no rescaldo das eleições legislativas de março de 2024. Não foi por acaso que o PS perdeu quase 500 mil votos e a extrema-direita, que se apresenta como “anti-sistema”, apesar de ser a sua mais acérrima defensora, ganhou quase 750 mil votos.

A maioria absoluta que a classe trabalhadora deu ao PS em 2022 não foi um cheque em branco, mas um mandato para melhorar a sua condição de vida e travar a extrema-direita. Pelo contrário, a sua grande preocupação foi apresentar “contas certas” e deixar a dívida pública abaixo dos 100% do PIB, o que conseguiu em grande parte à custa de uma diminuição do investimento nos serviços públicos. Dois anos de braço de ferro com professores, médicos, enfermeiros e outros funcionários públicos porque “não havia dinheiro para lhes pagar”, para agora apresentar o maior excedente orçamental de sempre, mais de 3 mil milhões de euros. Traiu a confiança da classe trabalhadora, governando despudoradamente e unicamente para o capital.

O Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda continuam a fetichização pelo parlamentarismo burguês e pela constituição, e a desmobilização das lutas nas ruas, e por isso mesmo também foram penalizados nas eleições. Buscam a conciliação de classes e a “estabilidade” do sistema, ou seja, a estabilidade para a burguesia continuar a explorar a classe trabalhadora. Não surpreende que o voto de camadas politicamente mais atrasadas da classe trabalhadora se tenha assim concentrado não à esquerda, mas no Chega.

Mas este foi também um período de empobrecimento para uma camada da pequena-burguesia que vê os seus negócios e privilégios em perigo e olha com horror para a radicalização da juventude e dos trabalhadores, para os enormes avanços do movimento feminista e anti-racista. Em Portugal é brutal a dependência da superexploração de trabalhadores migrantes, muitos deles em condições de quase escravatura, na hotelaria, no turismo, na agricultura, nas entregas de comida, na limpeza e na construção civil. Quanto mais a crise capitalista se agrava, mais os pequenos patrões, latifundiários, senhorios e toda a escória que depende da violência contra a classe trabalhadora e, em particular, dos imigrantes, para manter os seus negócios e estilo de vida. Estas camadas sociais voltam-se furiosamente para a extrema-direita e compõem boa parte do voto no Chega.

A publicação deste livro, no 50º Aniversário da Revolução Portuguesa, não podia ser mais oportuna. O próximo período será marcado pela ascenção da reação, mas também pela radicalização de vastas camadas da classe trabalhadora e juventude. Não conseguimos prever quando, mas sabemos que a classe trabalhadora voltar-se-à a erguer com mobilizações de massas contra os ataques da burguesia. As lições da Revolução Portuguesa continuam a ser fundamentais hoje. A construção do partido revolucionário é tão necessária hoje como então para defender o programa da transformação socialista da sociedade.

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