No passado dia 13 de janeiro, o Congresso chileno deu um novo passo para a despenalização total do aborto. Esta é mais uma das consequências do levantamento de massas iniciado em outubro de 2019 e que abalou o regime pinochetista e o governo de Sebastián Piñera. A discussão na câmara coube à Comissão de Mulheres e Igualdade e foi encabeçada pelas deputadas que redigiram o projecto-lei. Este projeto-lei, à semelhança do aprovado há não muito tempo na Argentina, prevê que qualquer mulher tenha acesso ao aborto livre, seguro e gratuito até à 14ª semana de gestação.

No mesmo dia, centenas de mulheres concentraram-se nos arredores do Palácio de La Moneda, sede da Presidência da República do Chile, numa manifestação pela legalização total do aborto e em defesa dos direitos reprodutivos das mulheres. Já em Valparaíso, grupos de direita “pró-vida” atacaram as mulheres, trabalhadores e jovens que se manifestavam nas proximidades do edifício do Congresso.

A tensão só poderá agudizar-se nos próximos tempos. Piñera e o seu governo reacionário são veementemente contra a legalização do aborto. A própria Ministra da Mulher e Igualdade de Género, Mónica Zalaquett, afirmou em tempos ser contra a atual lei do aborto em vigor no Chile, e mesmo agora se opõe a qualquer projeto de legalização total. Piñera, que iniciou a sua carreira política como destacado funcionário da ditadura de Pinochet, dirige um governo apoiado nas camadas mais reacionárias e conservadoras da sociedade chilena, e de tudo fará para que o movimento pelo aborto livre, seguro e gratuito seja travado o quanto antes.

Isto não será tarefa fácil para o governo. O movimento de mulheres não arredará o pé, e um enfrentamento da burguesia com a classe trabalhadora, em qualquer frente, pode resultar numa nova explosão generalizada. Num período em que a burguesia não é capaz de encerrar qualquer crise revolucionária, nem mesmo recorrendo à mais selvática repressão, é arriscado apostar num embate frontal.

A luta pelo aborto na América Latina

Neste momento, apenas seis países ou territórios da América do Sul permitem um aborto livre, seguro e gratuito, variando a semana de gestação máxima permitida para a interrupção: Cuba (1965), Porto Rico (1973), Guiana Francesa (1975), Guiana (1995), Uruguai (2012), e, mais recentemente, Argentina (2020). Os restantes países tanto criminalizam totalmente o acesso ao aborto como apenas o permitem em determinadas circunstâncias — casos de malformação dos fetos, riscos de morte para a gestante ou casos de violação.

A América Latina é hoje em dia a região que apresenta o maior índice de gestações não desejadas, e só um em cada quatro abortos aqui realizados ocorrem de forma segura. Para as mulheres mais pobres da classe trabalhadora, isto significa a sujeição ao aborto clandestino e à falta de condições higiénicas durante o procedimento, a inexistência de acompanhamento médico durante e após o mesmo, lesões no sistema reprodutivo, entre outros problemas graves.

Milhares de mulheres morrem anualmente devido às atuais leis restritivas sobre o aborto na América Latina, e continuarão a morrer enquanto o aborto não for tratado como uma questão de saúde pública e como um direito de todas as mulheres. Os limites impostos à nossa autonomia corporal, a exploração e o controlo da nossa capacidade reprodutiva têm como objetivo sujeitar as mulheres pobres e de classe trabalhadora à função social de cuidadoras e dificultar a sua emancipação. Estas políticas, nas quais se inclui a restrição ao aborto, contaram sempre com o apoio dos setores mais reacionários da sociedade e da Igreja católica.

Na América Latina, as mulheres viram os seus direitos reprodutivos mais gravemente atacados nas décadas de 1960/70. Que este seja o período de consolidação de ditaduras militares e governos bonapartistas de extrema-direita em vários países do continente latino-americano, não é coincidência. Os golpes reacionários destas décadas representaram enormes ataques à classe trabalhadora, com brutais políticas neoliberais e de supressão de direitos laborais. Para as mulheres da classe trabalhadora, isto agravou-se ainda mais com o ataque aos direitos reprodutivos, com a escalada de crimes de violência sexual (muitas vezes decorrentes de detenções arbitrárias), sequestros, tortura, abortos forçados, entre tantos outros métodos de repressão.

Ainda hoje, é neste clima de repressão que as mulheres e a classe trabalhadora da América Latina se levantam para lutar.

O movimento pela legalização do aborto no Chile: avanços e recuos

Em 2017, no governo de Michelle Bachelet (Partido Socialista Chileno), foi aprovada a lei que permite a realização do aborto em três circunstâncias específicas — risco de vida para a gestante, malformação fetal e casos de violação. Antes disto, o aborto era totalmente criminalizado no Chile. Isto significa que até há quatro anos atrás, o Chile era um dos países da América Latina com as leis mais restritivas quanto ao aborto, colocando em perigo milhares de mulheres trabalhadoras e camponesas que, sem recursos e sem alternativas seguras, recorrem a procedimentos clandestinos.

Importa dizer que nem sempre o aborto foi uma totalmente ilegal no Chile. O Código Sanitário chileno de 1931 foi o primeiro texto legislativo do século XX a regular o aborto no país, permitindo a interrupção da gravidez por motivos médicos. Nas décadas seguintes outros tipos de serviços foram criados para garantir um maior acesso a cuidados de saúde reprodutiva, como o Programa de Planificação Familiar que, entre outras medidas, promovia o uso de contracetivos e conhecimentos sobre saúde sexual e reprodutiva.
A luta pelos direitos reprodutivos das mulheres no Chile foi parte integrante da Revolução Chilena de 1973. Mas o golpe militar que depôs o governo de Salvador Allende e afogou a Revolução em sangue foi o início de uma onda feroz de ataques contra as mulheres da classe trabalhadora.

As políticas neoliberais de Augusto Pinochet procuraram arrasar completamente com todas as conquistas dos trabalhadores, fazendo disparar o desemprego e a pobreza, cortando o acesso a serviços essenciais. No que à questão do aborto diz respeito, os cortes ao financiamento do Serviço Nacional de Saúde chileno significaram para as mulheres da classe trabalhadora o fim de programas de educação para a sua saúde sexual e reprodutiva, a par de uma crescente censura sobre a mesma. Este crescente controlo reprodutivo culminaria na criminalização total do aborto em 1989, já em finais do regime de Pinochet.

De 1990 para cá, a direita tem feito sucessivas tentativas de dificultar ainda mais o acesso ao aborto, como projetos-lei que pediam um aumento das penas para mulheres que abortassem ou mesmo outros que pretendiam criar obstáculos legais à despenalização total do aborto. Só vinte e sete anos depois do fim da ditadura militar de Pinochet é que o aborto foi parcialmente descriminalizado no Chile. Com o levantamento dos trabalhadores e da juventude iniciado em 2019, a luta pelos direitos reprodutivos deu também um salto, demonstrando que a libertação das mulheres é inseparável da luta da classe trabalhadora.

Nenhuma confiança nas instituições do Estado e da democracia pinochetista!

Após a discussão da Câmara de Deputados no último dia 13, ficou acordado que se realizarão sete audiências a partir de março nas quais se convidarão trinta e quatro “especialistas” que darão os seus argumentos a favor e contra a descriminalização do aborto. O processo terminará a 21 de abril, e após esta data submeter-se-á uma proposta de lei para votação parlamentar. Este contorcido processo burocrático, que decorre dentro de órgãos onde a burguesia tem as maiores vantagens, é a forma como o Estado burguês procura desviar para as tranquilas águas do parlamentarismo toda a luta dos oprimidos. O movimento não pode ter nenhuma confiança no Estado, na democracia pinochetista e no governo de Piñera.

A direita e a Igreja, que tanto influencia ainda o debate sobre o aborto, utilizarão os meios à sua disposição para organizar uma campanha na tentativa de inflamar contra os direitos reprodutivos das mulheres toda a sua base social, os estratos mais reacionários da sociedade. Foi o próprio Piñera quem declarou que o seu governo “é a favor da defesa da vida, especialmente daqueles que estão por nascer pois são os mais inocentes, os mais vulneráveis ​​e os que mais precisam que defendamos o direito essencial a nascer”. Assim se define o governo que há meses organizava a repressão mais cruel, ordenando aos polícias e soldados que cegassem os manifestantes a tiros de borracha e dando-lhes carta branca para torturar, violar, raptar e assassinar mulheres. A hipocrisia da classe dominante não conhece limites.

Como se não bastasse este, um dos grandes obstáculos à interrupção da gravidez no Chile parte dos próprios médicos, que muitas vezes se recusam a realizar o procedimento por “objeção de consciência”. Muitos países da América Latina permitem que os médicos de direita usem este mecanismo para que as mulheres não possam, na prática, aceder aos poucos direitos reprodutivos que têm no papel. Outro fator que este ano se agravou devido à pandemia é a falta de stock de medicamentos que permitem a interrupção da gravidez. Várias organizações chilenas alertaram para a distribuição desigual de medicamentos em unidades de saúde públicas ao longo do último ano, o que condiciona o acesso ao aborto.

A luta, por isso mesmo, não se fica pelo papel da lei. O movimento das mulheres trabalhadoras pelo aborto implica incontornavelmente serviços de saúde públicos e de qualidade que acompanhem as mulheres antes e após o aborto, serviços de planificação familiar, educação sexual e reprodutiva, e a oferta de contracetivos e artigos de higiene feminina. Na luta pelos direitos reprodutivos está a luta por um sistema económico e social completamente novo, a luta pelo socialismo! Apenas pela organização da nossa classe, apoiada num programa revolucionário e socialista, se pode de uma vez por todas conquistar estes direitos.

Longe de esperar qualquer tipo de “regalias” dadas pelos de cima, o que temos de fazer é usar a luta de massas, a força e união da nossa classe. O levantamento revolucionário protagonizado sobretudo pelas e pelos jovens de classe trabalhadora encostou o governo de Piñera contra a parede, não dando tréguas e tão pouco calando-se perante os ecos de uma sociedade patriarcal e machista que nos quer submissas. Milhares de mulheres chilenas lutam e lutarão para que mais nenhuma de nós tenha de morrer vítima de um aborto clandestino, sem condições de segurança e higiene.

Nem uma a menos!

Aborto livre, seguro e gratuito já!

 

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