Escrevemos noutra ocasião que com o desenvolver da crise testemunharíamos ataques cada vez mais violentos contra a mulher trabalhadora, incluindo tentativas de legalização do proxenetismo.

Lamentavelmente, é a direção da Juventude Socialista (JS) quem está agora a fazer o jogo dos proxenetas. No último Congresso do Partido Socialista, que decorreu a 28 e 29 de agosto deste ano, foi apresentada uma moção da JS a defender a “regulamentação da prostituição”, ou seja, a legalização do proxenetismo.

Na moção, a JS considera que a prostituição é uma “profissão” com numerosos “condicionamentos” que tem também situações de exploração, tal como outras profissões. E mesmo admitindo que essa exploração tem implicações mais “gravosas”, a moção defende que seja regulamentada como qualquer outro trabalho.

Algo que não se diz em qualquer parte do documento é que nesta “profissão” tão normal a esmagadora maioria das pessoas exploradas são mulheres.

Pelo contrário, a prostituição é completamente retirada do seu contexto — de pobreza, violência machista, pedofilia e tráfico humano — e caraterizada como uma forma de sexualidade expressada individualmente. Desta forma, faz-se uma equivalência entre os opositores do proxenetismo e preconceituosos ou conservadores que pretendem controlar a sexualidade alheia. É um truque velho e bem conhecido.

A verdade é que a submissão das mulheres à violação sistemática é uma indústria que tem lucros de milhões — estimam-se 186 mil milhões de dólares por ano1 — e está longe de ser uma forma de sexualidade. A prostituição não é uma forma de sexo, é uma forma de violência e dominação à qual são sujeitas mulheres pobres e uma grande parte das pessoas LGBTI+. Uma realidade que fica clara quando sabemos, por exemplo, que das 2.982 pessoas trans assassinadas entre 2008 e 2018 no mundo, 62% eram pessoas prostituídas 2, ou que de 45% até 75% das pessoas prostituídas globalmente podem ser vítimas de violência sexual3.

Mas o que propõe a JS como solução para a extrema violência vivida pelas mulheres prostituídas? Uma simples lei. Segundo a JS, para haver verdadeira segurança e dignidade na profissão, o lenocínio (proxenetismo) simples deve ser legalizado com a criação de cooperativas e sociedades mútuas. Isto permitiria, segundo a JS, uma troca de “recursos, instalações e infraestruturas”. Este modelo teria por base a “gestão societária ou cooperativa que assente no pressuposto que só poderão ser partes integrantes destes modelos profissionais que exerçam no momento a atividade e na paridade de poder de voto nas deliberações.” Por outras palavras, a JS pretende que a o sistema da prostituição — uma indústria multimilionária de escravização de mulheres pobres e traficadas — passe a ser um sistema democrático e igualitário por ordem do Estado. Isto é absurdo. A prostituição não pode ser reformada com uma lei.

Apesar de a moção da JS dizer que este modelo é único no mundo, existem modelos similares noutros países, como é o caso da Inglaterra, Austrália, Argentina e Holanda. Mas o que resultou desta regulamentação está longe da democracia e do igualitarismo. Tudo o que este sistema faz é permitir aos proxenetas montar uma fachada legal e higienizada para os seus negócios através exatamente dos mesmos meios de coação de que já dispõem: a violência física, as dívidas impagáveis, a dependência das drogas, a ameaça de deportação, etc. Em todos os países onde o modelo foi aplicado, os resultados foram os mesmos: o tráfico de mulhres e crianças aumentou e o sistema da prostituição cresceu tanto na sua vertente legal como na ilegal4.

Para este problema, a solução da JS é vigiar e registar os prostíbulos, aplicar normas contratuais e criar formas — que não são especificadas em lugar algum — de as pessoas poderem denunciar quem as violenta. É esta a solução da esquerda social-democrata para a prostituição: manda-se a prostituição deixar de ser opressiva e violenta com uma lei e depois garante-se o cumprimento da lei com fiscalização.

Que fiscalização vai ser esta, senão a mesma que se mostra incapaz de pôr fim ao trabalho escravo na agricultura e a mesma que é incapaz de travar a violação de todas as leis laborais em numerosos setores como o do turismo e restauração, limpeza industrial, construção civil e tantos outros? É a este Estado burguês que devemos confiar a proteção de mulheres e crianças que não têm nenhuma forma de fazer valer os seus interesses? O mesmo Estado que não só permite como compactua com todo o tipo de atropelos à sua própria lei por parte dos patrões dos mais variados setores? De maneira nenhuma! A proposta da JS é uma armadilha para as mulheres pobres e para toda a classe trabalhadora.

Por fim, o último argumento expressado na moção é uma rendição. A JS diz-nos que se esta atividade já existe há centenas de anos sem que ninguém a conseguisse travar, só nos resta fazer um esforço para a aceitar. Este raciocínio é do mais reacionário que existe e pode ser usado para justificar todas as formas de exploração e opressão. Não, a prostituição não existe desde sempre nem existirá para sempre. Como toda a exploração e opressão, deve ser combatida, e ser realmente socialista é travar esse combate!

É preciso uma política contra as causas da prostituição

Em oposição à legalização do proxenetismo defendida pela direção da JS, outra ala da social-democracia defende o “modelo nórdico”, ou seja, um modelo de regulação da prostituição que criminaliza não só os proxenetas como igualmente os clientes.

Este modelo, sendo sem dúvida mais progressista do que a lei atual em Portugal, não é de forma alguma uma solução para os problemas das mulheres prostituídas porque não toca em nenhuma das causas da prostituição.

Aquilo que precisamos são medidas concretas que, por um lado, previnam a entrada e, por outro, facilitem a saída de mulheres do sistema prostitucional. Estas medidas nunca serão simplesmente uma combinação de proibições e permissões ou uma receita de regulamentação de um sistema que é, por natureza, violento, machista e em grande parte organizado de forma análoga à escravatura.

Antes de mais, é necessário o aumento do Salário Mínimo Nacional, um subsídio de desemprego digno, o fim da precariedade e a criação de leis laborais que realmente tornem impossível que as mulheres trabalhadoras caiam numa situação de miséria na qual a prostituição é a única alternativa de sobrevivência. Da mesma forma, é fundamental estar garantido o acesso à habitação. A relação entre pobreza e ainda entre maus-tratos na infância e a prostituição é conhecida5. Uma política contra a prostituição — i.e., contra a venda e a violação sistemática de mulheres e crianças — tem de ser uma política contra a pobreza e a violência doméstica e de género.

Da mesma forma, uma política consequente contra a prostituição tem de atacar o tráfico de mulheres e crianças. Em primeiro lugar, é necessário pôr um fim a toda a perseguição e repressão de imigrantes e pessoas sem documentação. Uma lei da nacionalidade que garanta o acesso à nacionalidade a todas as pessoas que vivam em Portugal é fundamental para permitir que um grande número de mulheres traficadas e imigrantes possam sair do sistema prostitucional.

Em conjunto com estas medidas, a criação de uma rede pública de abrigos e casas de acolhimento para vítimas de violência doméstica e de género — o que inclui mulheres que fogem da prostituição — é uma necessidade óbvia. Esta rede só pode ter a dimensão necessária e um funcionamento eficaz se for parte do Serviço Nacional de Saúde (SNS), e se este for completamente gratuito e acessível a todos. Tudo isto implica um investimento muitas vezes superior ao financiamento atual, que tem mantido o SNS num estado de subfinanciamento e degradação.

Só a revolução socialista pode pôr fim à compra e venda de mulheres!

As medidas necessárias para pôr fim à prostituição significam um choque frontal e profundo com os grandes capitalistas e o seu sistema económico. É por isso que a social-democracia e todos os reformistas se recusam a tratar as causas do problema e a apresentar um programa consequente para combater esta catástrofe social.

Os reformistas que adotam uma posição contra a prostituição com o modelo nórdico e defendem uma série de reformas graduais até à abolição da prostituição estão completamente equivocados. Em primeiro lugar, porque quaisquer medidas progressistas em capitalismo podem ser destruídas. É isso que acontece a cada nova crise económica — vemos a burguesia a atacar os direitos da mulher trabalhadora e de toda a nossa classe, mesmo os que conseguimos conquistar com maiores sacrifícios.

Para construir um mundo onde nenhuma mulher seja empurrada para a prostituição, é necessário transformar radicalmente a economia, é necessária uma revolução socialista que coloque nas mãos da classe trabalhadora — a esmagadora maioria da população — os meios de produção e o poder político, ou seja, um sistema onde temos tudo o que é necessário para que possamos ser nós próprios a tomar as decisões que afetam as nossas vidas, de acordo com as necessidades e o bem-estar da imensa maioria, e não com o lucro de meia dúzia de grandes capitalistas.

1. https://havocscope.com/prostitution-revenue-by-country/

2. https://transrespect.org/en/tmm-update-tdor-2018/

3. https://swp.urbanjustice.org/wp-content/uploads/sites/14/2020/08/Fact-Sheet-Sexual-Violence-Against-Sex-Workers-1-1-1.pdf

4. Ler Contra a petição pela legalização do proxenetismo! Os nossos corpos não estão à venda.

5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2254224/

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