No dia 14 de abril, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) abriu um canal para envio de denúncias de assédio e abusos por parte do corpo docente. Ao fim de 11 dias, 70 denúncias tinham sido recebidas, apontando o dedo a 10% do corpo docente e rapidamente chamando a atenção mediática.

Contabilizavam-se 29 casos de assédio moral, 22 casos de assédio sexual, 8 práticas discriminatórias de sexismo, 5 de xenofobia e racismo, e um caso de homofobia. Mas é certo que estes números representarão apenas uma fração do total de assédios e discriminação que terão sofrido as estudantes da FDUL.

Encorajadas, estudantes de outras faculdades portuguesas chamaram atenção aos casos de assédio que tinham ficado por reportar. No Instituto Superior Técnico (IST), reemergiu um inquérito no qual mais de 300 estudantes afirmaram ser vítimas de assédio moral, a isto juntam-se quase 100 acusações de assédio sexual, representando 5% da população estudantil inquirida1.

Ao assédio generalizado é preciso adicionar uma crise de saúde mental na universidade, com muitos estudantes em estado de saúde mental crítico. E os serviços de apoio psicológico existentes nas faculdades são completamente insuficientes, com lista de espera a rondar os 7 meses para uma consulta de psicologia no IST.

Este panorama é transversal a todas as faculdades e muito está certamente ainda por denunciar.

Hipocrisia e represálias

Assim que os casos de assédio chegaram à comunicação social, as administrações académicas correram a fazer o controlo de danos das suas instituições. Condolências dadas, investigações iniciadas, gabinetes propostos. Todas estas medidas, além de se limitarem a uma perspetiva individual e rejeitarem à partida qualquer possibilidade de o problema ser sistémico, mostram-se cada vez mais ocas.

Na FDUL, o primeiro inquérito a ser aberto contra um docente não foi contra qualquer um dos professores acusados, foi antes contra o professor que propôs a criação do canal de denúncias!

Várias denunciantes que falaram com canais televisivos, com vozes digitalmente distorcidas para sua segurança, veem-se agora expostas, tendo as suas vozes sido desencriptadas e partilhadas em redes sociais, com o intuito de relevar as suas identidades e colocá-las em risco de represálias por parte dos agressores.

Por detrás da imagem que as administrações universitárias procuram projetar, o que realmente está a acontecer é um cerrar de fileiras dos agressores e seus defensores, que olham para o movimento de denúncias e protestos como uma ameaça aos seus privilégios.

O assédio é uma prática corrente nas universidades

Entre a juventude, a reação foi de indignação, mas não de surpresa. Esta violência é comum nas universidades e foi protegida pelas administrações durante décadas. Estamos a ver apenas “a ponta do icebergue”. Entrevistada pela Sábado, uma aluna da FDUL referiu-se ao assédio moral como “o pão nosso de cada dia”, denunciando o assédio universitário não como um mero problema pessoal e casual, mas uma agressão sistémica contra as estudantes.

Gerações de antigas estudantes poderão testemunhar ter sofrido de tratamento semelhante, e como sentiram muitas vezes que tinham de sofrer em silêncio, com medo das consequências de fazer uma denúncia. A nova geração de estudantes, com as conquistas do movimento de libertação da mulher, tem agora mais meios para não ter de tolerar o assédio sofrido, está pronta e disposta a defender-se, e tem a solidariedade da maioria da juventude e da classe trabalhadora.

A última década está cheia de exemplos de mobilizações internacionais pelos direitos reprodutivos, contra a justiça machista, contra as políticas de ataques às mulheres e pessoas LGBTI. Este movimento mundial das trabalhadoras e jovens está apenas a começar, mas toda a experiência dos últimos anos significou um gigantesco salto na consciência da nossa classe.

E este movimento, longe de nos dizer respeito ou de nos afetar apenas a nós, mulheres, é algo que faz avançar a luta de todos os explorados e oprimidos. Esta luta nas faculdades, em particular, mostra em primeiro lugar a violência machista sistémica no sistema de ensino, mas toca, a partir daí, imediatamente na falta de democracia nas faculdades, e lança luz sobre o caráter racista e anti-trabalhadores de todo o sistema de ensino.

Uma questão de classe

Tal como acontece com a brutalidade policial, uma série de vozes já se levantam para garantir que se trata de um problema de “maçãs podres”, de maus professores, de um grande número de casos individuais. Se for este o caso, tudo o que é necessário é montar um sistema de denúncias, investigações e punições. 

Sem dúvida alguma, abusadores e violadores têm de ser expulsos das nossas escolas e faculdades, mas é preciso ir muito além disso se queremos acabar com a violência machista nos locais de estudo.

As universidades estão organizadas de maneira a concentrar todo o poder nas mãos das administrações e das suas camarilhas de burocratas e professores catedráticos. Os estudantes e todos os trabalhadores que são indispensáveis para o funcionamento quotidiano das faculdades não têm nenhum poder de decisão sobre o funcionamento dos seus locais de estudo e trabalho.

É esta ausência de qualquer democracia que cria as condições para a violência machista e para todo o tipo de abusos e assédio serem feitos com impunidade. A isto junta-se a burocratização das associações de estudantes (AE), que são de muitas maneiras transformadas em antros de corrupção — muitas das vezes controlados pelas juventudes do PS e do PSD —, dóceis perante as administrações universitárias e cada vez mais desligados dos estudantes.

O resultado disto é uma situação de enorme vulnerabilidade para os e as estudantes, que não têm nenhum órgão democrático. Mas esta vulnerabilidade é muito diferente entre estudantes de “boas famílias” e estudantes da classe trabalhadora, pobres e de grupos oprimidos. Estas e estes últimos encontram um sistema de ensino cada vez mais inacessível, com uma série de obstáculos — as propinas, os custos dos materiais de estudo, dos transportes e do alojamento, a educação de má qualidade que tivemos nas escolas públicas das periferias das cidades ou do interior do país, etc. — a aumentar e a excluir cada vez mais das universidades as filhas e os filhos de trabalhadores.

Aquelas e aqueles de entre nós que conseguem chegar à universidade têm muito mais a perder do que os filhos da burguesia e da pequena-burguesia endinheirada, que recebem um respeito muito diferente da administração e da elite docente.

O poder de nos fazer arbitrariamente chumbar a uma cadeira, de atrasar os nossos estudos, de baixar as nossas médias ou até de destruir todo o nosso percurso escolar e académico é aquilo que é usado para nos forçar a aceitar o machismo, as humilhações, o assédio e os abusos de todos os tipos. Para as estudantes da nossa classe, enfrentar um professor pode significar abandonar por completo o sistema educativo.

A cultura reacionária que se respira nas universidades, a cultura da “meritocracia”, do individualismo e da “resiliência” ignora a brutal desigualdade de classe em capitalismo e só serve para justificar e legitimar todas as formas de manter fora das universidades as filhas e os filhos das famílias trabalhadoras. Nós, que muitas vezes temos de trabalhar para pagar as propinas, prejudicando imenso o nosso aproveitamento, somos quem mais vulnerável está à violência machista, ao racismo e a todas as formas de abuso e assédio nas universidades.

A violência sobre estudantes — e as suas consequências na nossa saúde mental — não é um erro ou uma falha no sistema, é uma parte fundamental do sistema de educação capitalista que é inerentemente anti-trabalhadores, machista, racista, LGBTIfóbico, enfim, de defesa da classe dominante, da sua propriedade e privilégios.

Qualquer solução passa pela organização das estudantes!

Como dissemos, mesmo se fossem honestas, as soluções que apresentam as administrações académicas não iam servir de muito. Na raiz deste problema não estão “maçãs podres”, está o próprio sistema, e qualquer solução tem de derrubar este sistema de educação e substituí-lo por um completamente diferente. É preciso uma luta revolucionária!

Antes de mais, toda a educação tem de ser pública e é urgente um aumento substancial do investimento na educação. Mas não basta nacionalizar todo o sector, há que colocá-lo sob o nosso controlo democrático. A gestão do orçamento escolar, da contratação de docentes e da sua supervisão tem de estar nas mãos de assembleias democráticas de alunos, trabalhadores e funcionários — de todos os que fazem a universidade funcionar dia-após-dia. 

Da mesma forma, as propinas têm de ser abolidas e todas e todos os estudantes têm de ter alimentação, alojamento e materiais de estudo garantidos gratuitamente.

Só com as necessidades básicas supridas e com a participação real e democrática na vida e no rumo das escolas e universidades, ou seja, com um ensino plenamente público, gratuito e controlado democraticamente por estudantes e trabalhadores, é que poderemos erradicar o assédio e a violência machista. Não se trata de corrigir ou castigar indivíduos simplesmente, mas de acabar por completo com as condições que agora existem para os abusos por parte das administrações e das suas camarilhas.

Para alcançar isto, não podemos contar com as “investigações” que essas mesmas administrações fazem agora — depois de protegerem os agressores e até violadores durante décadas! — nem com a boa vontade de nenhum governo. Só podemos contar com a força da nossa classe. Um movimento estudantil combativo e anti-capitalista, ligado à luta de libertação das mulheres e à luta de toda a classe trabalhadora, e que tenha como métodos e referência as mesmas formas de luta — a greve, o protesto de rua, a ocupação, etc. — é o único caminho para combater eficazmente a violência machista nas universidades!


Notas

1.  Técnico: inquérito sinaliza mais de 400 casos de assédio, 10% das alunas citam assédio sexual

JORNAL DA ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA

JORNAL DA LIVRES E COMBATIVAS

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