Na quinta-feira, dia 22 de Outubro, o Tribunal Constitucional da Polónia, ministrado por juízes ligados ao executivo ultrarreacionário de Jarosław Kaczyński, proferiu uma decisão que considera inconstitucional a interrupção da gravidez em caso de malformação ou doença irreversível do feto. Num país onde essa foi a instância para 98% dos abortos realizados legalmente no ano de 2019 (1074 em 1100), esta decisão representa um bloqueio quase total ao acesso ao aborto legal para as mulheres polacas. Este ataque aos seus direitos reprodutivos é o culminar de anos de agressões, consequência de sucessivos governos de direita conservadora.

Esta segunda-feira (26 de Outubro), dezenas de milhares de manifestantes, em quase cinquenta cidades polacas, bloquearam as ruas com carros, motociclos, bicicletas e cordões humanos. Os protestos estenderam-se às imediações e interior de igrejas, visadas pelos manifestantes como resposta à violenta influência da Igreja Católica na vida política do país.

A pandemia do covid-19 é instrumentalizada pelo Estado burguês como arma contra a classe trabalhadora

Dificilmente se pode considerar este ataque uma surpresa. Não só é a Polónia o país europeu com a mais restritiva lei do aborto — que só é permitido em casos de violação, incesto e risco de vida para a gestante — como ir ainda mais longe na sua limitação tem sido uma bandeira dos sucessivos governos de direita. De cada vez que o executivo procurou efectivar este ataque no parlamento, a classe trabalhadora respondeu nas ruas. Em 2016, Kaczyński declarou que "vamos garantir que, mesmo em casos de gestações que são muito difíceis, quando a criança certamente morrerá, mesmo que fortemente deformada, as mulheres vão dar à luz, de forma a assegurar que a criança possa ser batizada, enterrada e que lhe seja atribuído um nome.” O líder do partido Lei e Justiça (PiS)1 demonstra assim, sem vergonha, que está mais do que disposto a sacrificar a autonomia, dignidade e saúde mental de mulheres, obrigando-as a parir os seus filhos mortos.

No mesmo ano, cerca de 100.000 pessoas, a maioria mulheres, protestaram para bloquear a proposta. A posição da população polaca nesta questão é esmagadora: as sondagens mostram que a clara maioria se opõe a novos limites na lei e cada tentativa foi recebida com manifestações em massa.

No final do ano passado, um grupo de partidos do governo e parlamentares de extrema-direita pediu ao Tribunal Constitucional que revisse a lei, sabotando o processo legislativo comum que implicaria por certo oposição popular. Com as aglomerações públicas restringidas a um máximo de 10 pessoas — imposição que os manifestantes rapidamente desrespeitaram ao longo dos últimos cinco dias de protestos — e tendo a Polónia se tornado, no mês passado, um dos países mais arrasados pela covid-19, o governo do PiS encontrou na crise pandémica o momento perfeito para efectivar a sua ofensiva contra as mulheres trabalhadoras.

Na sexta-feira, um dia depois de os protestos começarem, a Polónia atingiu um novo recorde nos registos de covid-19: 13.600 casos diários. O país encontra-se agora num bloqueio nacional denominado de “red zone”, que inclui o encerramento parcial de escolas primárias e restaurantes. Quase cinco mil pessoas morreram na Polónia desde que a pandemia começou. A classe trabalhadora é, como sempre, quem paga o preço mais alto: o sistema nacional de saúde polaco, perpetuamente subfinanciado, está a rebentar pelas costuras.

A luta pelo direito ao aborto é uma luta da classe trabalhadora

Nada disto é novo. O partido de Kaczyński, que tomou o poder em 2015, representa os interesses da oligarquia católica. As mesmas forças que, em 1989 e em 1993, impulsionaram a legislação que roubava às mulheres o direito ao aborto livre, encabeçadas por membros da oposição anticomunista e fortemente apoiadas pela hierarquia da Igreja Católica, entram agora em cena através da figura do Bispo de Varsóvia, do Arcebispo Stanislaw Gadecki e de toda a instituição católica polaca.

É sob este legado de ofensivas que este governo se apresenta, como defensor dos valores tradicionais e atacando os seus opositores como anti-polacos e anti-cristãos: mulheres, imigrantes e pessoas LGBT são particularmente visadas por esta narrativa patriarcal e xenófoba. Os movimentos sindicais e as organizações feministas são descritos como parte da “perigosa propaganda comunista” que afasta as mulheres do seu divino propósito: o casamento e a maternidade.

Os médicos na Polónia podem recusar-se a realizar um aborto legal ou até mesmo a prescrever conctraceptivos na base de objecção de consciência por motivos religiosos. É altíssima a violência psicológica associada ao estigma e aos maus tratos por parte dos profissionais de saúde a que as mulheres na Polónia estão sujeitas, mesmo nos 2% dos casos em que têm acesso a um aborto legal.

E, mais uma vez, são as mulheres da classe trabalhadora que carregam o fardo mais pesado. Menos de 2.000 abortos legais são realizados por ano na Polónia, mas organizações feministas estimam que mais de 200.000 mulheres abortam ou na clandestinidade ou no estrangeiro, todos os anos. Sabemos que, ao passo que as mulheres burguesas podem viajar para a Alemanha ou para a França e pagar pela realização de um procedimento seguro, as mulheres pobres estão sujeitas aos abortos clandestinos, realizados em casas ilícitas de bairros precários nas periferias das grandes cidades. Quando sobrevivem, pagam um preço altíssimo numa combinação de trauma psicológico e frequentes lesões no sistema reprodutivo, que muitas vezes acarretam infertilidade, ciclos menstruais irregulares e dores crónicas. Para nós, não há apoios ou escolhas.

Como jovens e mulheres trabalhadoras, defendemos um feminismo revolucionário e anticapitalista. Sabemos que a luta contra a opressão machista é uma questão central na luta de classes e que, por isso, é uma luta de toda a classe trabalhadora: os protestos que se espalharam pelas cidades, vilas e aldeias polacas nos últimos dias, compostos sobretudo por mulheres, contaram com a participação entusiástica de taxistas, mineiros de carvão e camponeses. No domingo, os agricultores da pequena cidade de Nowy Dwór Gdański, no norte do país, formaram um bloqueio com tractores. Na segunda-feira, um sindicato de mineiros saiu em defesa das suas companheiras de classe, alertando para o cariz fascista e totalitário do governo.

É a juventude a cara desta insurreição

Os levantamentos dos últimos dias e noites, que incluem grafittis em paredes de igrejas, interrupções de missas, manifestações em frente à residência de Jarosław Kaczyński e bloqueios de centenas de ruas em dezenas de cidades demonstram a força das mulheres, da juventude e da classe trabalhadora. A repressão violenta das forças policiais parece não ter qualquer efeito dissuasor sobre os manifestantes, que marcaram para a próxima quinta-feira, dia 29 de Outubro, uma greve geral. E mais: muitos deles não só exigem que o governo dê um passo atrás na última investida contra o direito à interrupção segura da gravidez, como colocam ainda em causa todo o executivo, exigindo uma nova lei que regularize o acesso de todas as mulheres ao aborto. É desta maneira que uma luta defensiva se torna uma luta ofensiva, e no processo da luta não apenas se revela como se constrói a correlação de forças a favor da classe trabalhadora.

Exige-se o direito ao aborto até às 24 semanas, livre, seguro e gratuito. Serviços de planificação familiar públicos e gratuitos, assim como contraceptivos e artigos de higiene feminina gratuitos nas farmácias e centros de saúde. E isto num sistema nacional de saúde público, gratuito e de qualidade para todos!

A situação é explosiva e não dá sinais de abrandar. A unidade da classe trabalhadora é a única força capaz de fazer frente a este e a todos os outros ataques do governo reacionário polaco. A solução passa pela construção de uma organização revolucionária, que canalize todo o potencial de insurgência que se vê nas ruas e as ligações que o movimento de mulheres tem estabelecido com os restantes sectores da classe trabalhadora, para uma transformação socialista da sociedade.


Notas:

1. O partido Lei e Justiça — em polaco, Prawo i Sprawiedliwość — é um partido de extrema-direita que, no parlamento europeu, constitui a maior força numérica no grupo político Reformistas e Conservadores Europeus. Como parte dos RCE, o Lei e Justiça articula-se, por exemplo, com o Vox, do Estado espanhol, e o Solução Grega, o partido que procura ocupar o espaço da organização fascista Aurora Dourada na Grécia.

 
 
 
 
 
 

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