«Todo o sistema entrou num período de decadência, decomposição e putrefação. O capitalismo não só não pode dar aos trabalhadores novas reformas sociais, nem mesmo pequenas migalhas, como, além disso, se vê obrigado a retirar aquelas que antes lhes concedeu. Aquilo que provoca a política de espoliação e asfixia das massas não são os caprichos da reação, mas antes a decomposição do sistema capitalista.»
- Leon Trotsky, Para onde vai a França?, 1934
Os olhos de todo o mundo estão há anos fixados nos acontecimentos explosivos que sacodem a primeira potência mundial, mas quando milhares de manifestantes de extrema-direita, racistas e supremacistas, armados e com evidente formação paramilitar, assaltaram o Capitólio após serem agitados pelo próprio Trump, a comoção alcançou o grau mais superlativo.
As imagens do golpe de 6 de janeiro, com centenas de congressistas e senadores evacuados precipitadamente, após permanecer por minutos no chão ou agachados nos seus assentos, evidenciaram ainda mais a crise da democracia capitalista estado-unidense.
A própria cerimónia de proclamação de Biden como presidente, protegida por 21.000 soldados da Guarda Nacional e com Washington convertida numa cidade sitiada, assinala como o mito de um regime inexpugnável onde o golpismo e o totalitarismo não teriam qualquer cabimento foi totalmente destruído.
O que é o trumpismo?
Trump não compareceu à transferência de poderes e preferiu atirar mais achas à fogueira, avisando que voltará de qualquer forma e que o seu movimento não fez mais que começar o trabalho. Contra isto, enquanto o ex-presidente se prepara para sair, muitos são os analistas que o declaram morto e prevêem que afundará na marginalidade política.
A maioria dos meios de comunicação ficou rouca de tanto implorar que as coisas voltem ao normal e que a Administração Biden se lance imediatamente ao trabalho de fechar as feridas abertas. Também se multiplicaram os avisos para que o Partido Republicano se livre definitivamente de Trump e se reintegre no jogo político tradicional. A mão está estendida para a conciliação. Na aparência, está tudo sob controlo.
Isto no respeitante aos cronistas do regime. Noutros meios, numerosas publicações da esquerda, incluindo muitas que se proclamam marxistas, caracterizaram o ocorrido a 6 de janeiro como uma aventura de uma minoria completamente desligada daquilo que realmente deseja a classe dominante. “Não há fascismo nos EUA! Não foi um golpe!” Repetem uma e outra vez.
Tratando deste foco, cabe-nos colocar as seguintes questões: Trump será realmente um acidente aleatório, sem vínculos com a burguesia estado-unidense? Os seus anos de gestão estiveram ao serviço de que interesses de classe? Seria possível que a CIA, o FBI e o exército desconhecessem o que se preparava?
Como é evidente, não faz qualquer sentido exagerar os factos. Mas quando o "templo" da democracia estado-unidense é tomado por uma multidão de extrema-direita, armada e treinada, previamente agitada por um presidente que conseguiu 74 milhões de votos, as coisas não podem ser tratadas com tanta ligeireza. Trump governou durante quatro anos, é ainda a cabeça do Partido Rebuplicano e o seu programa, em matéria de economia ou em relação à luta que travou contra a China, conta com o apoio indiscutível dos grandes monopólios e do capital financeiro sem qualquer dissonância significativa.
Será verdade que para compreender a natureza do trumpismo e destes acontecimentos não faz sentido analisar seriamente a experiência do fascismo e como este conseguiu avançar nos turbulentos anos 30 do século passado? Nós achamos que faz sentido, sim, não para tirar conclusões mecânicas, mas antes para poder dar uma explicação materialista do que está a acontecer. O importante é analisar o fenómeno na sua ligação com os grandes acontecimentos da luta de classes, interna e ao nível mundial, deixando de lado tanto as formulações grandiloquentes como as engenhosas expressões jornalísticas.
Vamos a factos. Milhões de pequeno-burgueses que sentem o seu modo de vida e as suas certezas ameaçados numa ordem social que está a ser abalada pela recessão, pelo avanço da esquerda e pelo declínio externo do país, deram um passo em frente. Este imenso pó social, que durante décadas constituiu uma base firme para o establishment, foi convocado pela decomposição do capitalismo estado-unidense e por um líder que, assim como muitos outros ao longo da história, lhe ofereceu uma bandeira de luta à sua medida.
O racismo mais fanático e supremacista; um nacionalismo furioso contra aqueles que ameaçavam a hegemonia mundial da sua "grande" nação; o anti-comunismo carregado de ódio aos trabalhadores e às suas organizações; o machismo mais desprezível e um fundamentalismo religioso de meter medo… Tudo isto, e muito mais, foi oferecido por Trump a estas camadas sociais. No entanto, para chegarmos a este ponto, muitas coisas aconteceram. Um acontecimento desta envergadura resulta de causas sociais profundas, não cai do céu.
As marchas multitudinárias de mulheres no início da administração Trump, os comícios de massas de Bernie Sanders, falando de socialismo e pedindo para acabar com a ditadura do 1%, as manifestações multitudinárias da juventude contra as armas e as alterações climáticas, a bem-sucedida luta que em várias cidades conquistou o salário de 15$ à hora e, acima de tudo, o levantamento histórico contra o racismo, após o assassinato de George Floyd, no qual participaram dezenas de mihões de pessoas… São o outro prato da balança.
A extrema polarização que vive a sociedade estado-unidense e a brusca disrupção do seu equilíbrio interno foram alimentadas por décadas de racismo sistémico e brutalidade policial, cortes sociais e uma desigualdade lacerante que fez cair na exclusão e na pobreza dezenas de milhões de pessoas enquanto uma minoria de oligarcas acumulam um património supermilionário e são os donos absolutos do poder. A ditadura de Wall Street fortaleceu-se e, dialeticamente, abriu alas à histeria destes setores pequeno-burgueses da América profunda e rural, apoiados por uma camada de trabalhadores brancos empobrecidos que a demagogia trumpista foi capaz de mobilizar.
Trump não só encabeçou a irritação da base tradicional do republicanismo, como também a ampliou com uma dose incrível de demagogia anti-establishment e de ação direta. É importante analisar este processo na sua dinâmica: o Trump de hoje não é o mesmo de há quatro anos e a sua base social desenvolveu-se, refletindo alterações na situação objetiva. Estes milhões de pequenos proprietários exploradores e setores intermédios vêem-se intimidados pela recessão: a possibilidade de acabarem arruinados não é brincaeira nenhuma; exigem punho de ferro contra os políticos liberais, a quem acusam de permitir a decadência nacional, e agarram-se com unhas e dentes à recriação do "sonho americano" e da ordem "branca" que lhes permitiu prosperar.
O avanço do populismo de extrema-direita nos EUA, no Brasil, na Alemanha, em Itália… obedece a causas comuns. A crise orgânica do capitalismo, a deslegitimação da democracia burguesa e das suas instituições, a perda de credibilidade da direita conservadora e da social-democracia pelas suas agendas de cortes e austeridades, o fim das reformas sociais e o crescimento da desigualdade e da miséria. Juntamente com tudo isto, outro fator de primeira ordem que favorece o populismo de extrema-direita é a ausência de uma direção revolucionária da classe trabalhadora que ofereça ao conjunto dos oprimidos, e também à pequena-burguesia — que oscila entre a esquerda e a direita e que é politicamente explorada pela burguesia —, uma saída socialista para romper com a catástrofe atual.
Este é o terreno em que se fortaleceram o nacionalismo económico e político, a xenofobia, o racismo e as tendências para o autoritarismo e bonapartismo entre amplos setores da classe dominante e do aparelho de Estado. Porventura não foram semelhantes a estas as condições que fizeram amadurecer os movimentos fascistas nos anos 30 do século XX e lhes deram uma base de massas?
Um outsider à margem da burguesia?
Afirmar que Trump está só e isolado é ridículo. O trumpismo adquiriu uma enorme projeção e apoio social, como deixaram claro os mais de 74 milhões de votos que conseguiu nas eleições de novembro. Segundo as sondagens, praticamente metade destes eleitores aprovam o assalto ao Capitólio. Também é evidente que a sua tentativa golpista, preparada aos olhos de todo o mundo após deslegitimar agressiva e repetidamente a vitória de Biden, nunca teria sido possível se não tivesse contado com a simpatia e colaboração ativa de muitos dirigentes proeminentes do Partido Republicano — estreitamente ligados à classe dominante — e de inúmeros médios e altos funcionários do aparelho do Estado, no exército, na polícia, na Guarda Nacional e na CIA.
As declarações que os secretários da defesa de administrações anteriores realizaram a condenar Trump e a jurar lealdade à constituição e à democracia devem ser interpretadas não como garantias, mas, pelo contrário, precisamente como um movimento de resposta ao ambiente que se vive em numerosos quartéis e entre a oficialidade do exército. Esses militares que assistiram ao declínio da influência dos EUA no mundo e sentem agora o seu orgulho ferido, não são porventura parte da base eleitoral e social do trumpismo?
É um fenómeno que se reproduz em muitos países. No Brasil com Bolsonaro, na Alemanha com o AfD, no Estado espanhol com o Vox, para não falar da Europa de Leste. Os órgãos repressivos estão a nutrir a extrema-direita com eleitores e militantes, desde a alta oficialidade e dos quadros do exército até dezenas de milhares de polícias que são quotidianamente treinados para atormentar imigrantes, manifestações de esquerda e greves operárias. Toda esta gente forma um substrato social que se enche de racismo e de ódio à revolução.
Evidentemente, o capital financeiro estado-unidense, Wall Street e os donos das grandes empresas tecnológicas não querem impor uma ditadura fascista neste momento. Não é a sua opção para agora. Querem, contudo, varrer a esquerda das ruas e acabar com qualquer tipo de resistência proletária, ainda que isto seja à custa de cortes nos direitos democráticos e de conceder poderes especiais aos órgãos do Estado que se escondem atrás da mecânica parlamentar. As tendências bonapartistas são parte do fascismo, e há sempre elementos de fascismo no bonapartismo.
A experiência dos anos 30 é clara. A burguesia italiana e alemã resistiram durante muito tempo a adotar uma saída fascista, ainda que tenha havido setores que desde o início financiaram e apoiaram Mussolini e Hitler. Somente quando as manobras parlamentares se demonstraram definitivamente impotentes perante o curso da revolução é que o capital financeiro decidiu entregar o poder aos fascistas. Recorrendo aos métodos de golpe de Estado e da violência de classe, esmagaram o movimento operário e as suas organizações, e liquidaram a democracia burguesa.
Nos EUA não existe, todavia, uma situação abertamente revolucionária, mas há rasgos revolucionários na luta de classes que atravessa o país há anos. Trump não foi derrotado nas urnas graças ao entusiasmo que despertou o programa de Biden, mas antes graças à determinação de milhões de pessoas que querem acabar com este pesadelo e que combateram energeticamente nas ruas. A experiência destes anos traduziu-se numa viragem à esquerda na consciência de amplos setores da classe trabalhadora e da juventude. O movimento anti-racista de massas — que unificou em linhas de classe todos os oprimidos com um desafiante potencial anticapitalista — é o resultado deste processo e foi fundamental para derrotar Trump. Mas a reação contra-revolucionária também mobilizou um exército poderoso e setores nada insignificantes da burguesia estiveram envolvidos nesta empreitada desde o início.
Evidentemente, Trump não é Hitler em 1933 e o Partido Republicano não é o Partido Nazi. Não podemos, contudo, ignorar que quem orquestrou o assalto ao Capitólio não foi outro senão o presidente da nação mais poderosa do mundo. Fê-lo, além do mais, à cabeça de um partido capitalista que durante quatro anos assumiu o seu programa em todos os pontos fundamentais.
Quando se tenciona analisar um processo social e político vivo e em transformação, é fundamental ter em conta as tendências contraditórias que o alimentam, sublinhar aquelas que são dominantes e entender qual é o sentido em que apontam. Fechar os olhos ao facto de que a profunda crise que vivemos lançará milhões de vítimas à sarjeta, agudizando a polarização política e minando as bases da democracia burguesa, é dar as costas às lições da história. Confiar na classe dominante para se encarregar de ajustar as contas com o trumpismo, tendo em conta a situação objetiva do capitalismo mundial e estado-unidense, é um grave erro político.
A inação dos democratas
A atitude do Partido Democrata perante o assalto ao Capitólio também merece uma análise aprofundada. Como é possível que após esta tentativa de golpe, o instigador do acto não tenha sido detido e ainda se dêem ao luxo de organizar tranquilamente a sua saída da Casa Branca, concedendo indultos aos seus aliados? Biden, Pelosi e o resto do establishment democrata estão a protagonizar uma farsa monumental. Cobrem-se com a bandeira estado-unidense e falam da força da democracia, do Congresso e da justiça, mas não têm qualquer intenção de investigar seriamente o ocorrido.
A sua intenção é fechar as feridas e tratar de estabilizar a relação com os republicanos, ainda que isso suponha deixar sem castigo a ação de Trump e dos seus gangues fascistas. Biden foge da questão de tal maneira que chegou ao ponto de recusar-se a tomar uma posição a respeito do início do processo de impeachment: “aquilo que decide o Congresso só diz respeito ao Congresso”.
O que explica este comportamento é o facto de temerem que uma ação contundente contra Trump desencadeie uma resposta de grande magnitude entre os setores que o assalto ao Capitólio inflamou e encheu de confiança. O próprio Trump advertiu sobre isto numa das suas últimas declarações públicas no Texas, junto ao famoso muro na fronteira com o México. Entre louvores aos agentes do ICE (a polícia fronteiriça ultra-reacionária) insinuava: “Cuidado, o impeachment só gera mais raiva e perigos para o nosso país”.
Como pudemos ver em muitas ocasiões na história, por vezes a contra-revolução é o chicote da revolução. Os democratas querem evitar a todo custo a reação do trumpismo, mas, sobretudo, querem evitar a resposta dos milhões de trabalhadores, ativistas afro-americanos e jovens que tomaram as ruas e desafiaram a ordem estabelecida após o assassinato de George Floyd — que não vão permanecer de braços cruzados ante a ofensiva da extrema-direita.
Logicamente, Biden, Harris e o conjunto do sistema têm de encobrir a sua falta de determinação contra Trump. Que os mentores da tentativa de golpe fiquem impunes é provavelmente o que vai acontecer, mas não há mal em agarrar uns quantos dos fascistas mais ousados e metê-los na prisão. Esta sempre foi a forma de funcionamento do Estado capitalista em casos semelhantes de vários países. Por este motivo iniciaram detenções pontuais e abriu-se uma limitada comissão de investigação que deu luz verde a um futuro julgamento contra Trump. Mas não está claro nem mesmo se o impeachment vai avançar. Ainda que a pressão sobre os políticos republicanos aumente, é necessário o voto de dois terços dos senadores, o que implica o apoio de 17 senadores republicanos. Já no Congresso só se conseguiram arrancar 10 votos aos 211 deputados republicanos.
O Partido Republicano enfrenta uma crise profunda, que não tem solução fácil e com um desfecho que dependerá também de como vai atuar Trump. O líder republicano no Senado, Mitch McConnell, parece querer abandonar Trump, apontando-o como o responsável pelo assalto ao Capitólio. No entanto, ao mesmo tempo, não esclarece a sua intenção de voto. Mesmo no caso de o impeachment avançar, será necessário ver qual é a reação das bases republicanas: de momento, 82% continua a apoiar firmemente Trump, com 70% a considerar que houve uma fraude eleitoral e que Biden é um presidente ilegítimo. O desfecho desta crise ainda está em aberto: poderá aprofundar a viragem do Partido Republicano à extrema-direita ou poderá levar a uma cisão da ala trumpista do partido, com consequências incertas.
Acordos e discordâncias entre a classe dominante
Para lá da propaganda pró-Biden bombeada durante as últimas semanas, não devemos esquecer que os dois partidos da burguesia — democratas e republicanos — conviveram razoavelmente bem nestes quatro anos de legislatura. Estiveram de acordo nas questões centrais e no saque à classe trabalhadora. Trump representou lealmente os interesses da oligarquia, enchendo-lhes os bolsos na sua passagem pela Casa Branca.
A sua reforma fiscal de 2017 foi um jorro de 205.000 milhões de dólares diretos aos bolsos dos 20% mais ricos da população, e combinou-se com um corte de 2 biliões de dólares em programas sociais. Em 2019, de acordo com dados da Reserva Federal dos EUA, a fortuna das 50 pessoas mais ricas do país já era equivalente à dos 165 milhões mais pobres. Perante a explosão da pandemia, Trump aprovou um resgate de dimensões nunca vistas: 2,3 biliões de dólares — o triplo do da administração Obama em 2009 — que também foi diretamente para os mesmos bolsos.
Outro grande consenso entre a classe dominante, desta vez no terreno político, foi evitar a todo custo o ascenso de Sanders, um candidato que, como revelaram as sondagens, poderia ter vencido Trump nas presidenciais. Esta decisão foi reafirmada pela burguesia em duas ocasiões, pelo temor de que uma viragem da sociedade à esquerda adquirisse uma dimensão ainda mais ameaçadora para os seus interesses de classe. Ao fim e ao cabo, o movimento massivo que impulsionou o senador de Vermont tinha no seu ADN a luta pelos 15$ por hora, a vitória dos professores de West Virginia, o movimento Black Lives Matter, a denúncia do poder desse 1% que domina a nação com punho de ferro… A questão é que, por unanimidade, a classe dominante decidiu que impedir o avanço da esquerda era o mais importante: antes Trump que Sanders!
A temperatura da luta de classes subiu muito nestes quatro anos, de forma paralela à queda que tem visto a primeira potência mundial. A batalha que o imperialismo estado-unidense trava contra a China está a resultar num saldo cada vez mais negativo para Washington. Apesar da política de sanções tarifárias decretadas por Trump — e apoiadas pelos democratas com entusiasmo —, o ocorrido neste ano de pandemia é esclarecedor. Enquanto o número de falecidos chega aos 500.000, superando os mortos estado-unidenses na Segunda Guerra Mundial e no Vietnam, a China tornou-se o mais importante fornecedor de material de saúde para os EUA, conseguiu conter o covid-19 e tem a sua atividade económica a recompor-se rapidamente.
Vencer o gigante asiático nesta batalha e "fazer a América grande outra vez" é um objetivo crucial para manter os grandes negócios da burguesia estado-unidense. Isto passa, no atual contexto de recessão, por espezinhar a classe trabalhadora e ganhar competitividade num mercado mundial cada vez mais limitado. Também nisto há consenso no seio da classe dominante e, obviamente, entre democratas e republicanos.
A diferença essencial que mantêm estes dois setores é outra. Trump defende que é necessário esmagar o quanto antes a classe trabalhadora, recorrendo para isto a uma legislação de exceção, a dar carta branca à polícia e a restringir ao máximo os direitos democráticos. A outra parte, alinhada com o Partido Democrata, não duvida de que seja necessário dar um passo em frente nesse sentido, mas recusa-se a renunciar às formas externas da "democracia" porque teme as consequências de um enfrentamento aberto com a classe trabalhadora, teme que isso possa levar a uma explosão revolucionária de resultado incerto — julga que podem conter a polarização apoiando-se em Biden. Sabem, no fim das contas, que a ficção da democracia burguesa já foi incrivelmente útil para a dominação da oligarquia financeira, e durante muito tempo.
Perspectivas para a administração Biden-Harris
A ameaça do trumpismo não desaparece com a saída do magnata da Casa Branca. Como é que Biden vai enfrentar uma crise económica sem precedentes e uma pandemia que já deixa quase 500.000 falecidos? Os planos do novo governo — que herda um déficit comercial recorde de mais de 824.000 milhões de euros e uma gigantesca dívida pública de 21,51 biliões — não mudarão em nenhum aspecto essencial as condições que provocaram uma desigualdade e uma polarização extremas. Pelo contrário, vão alimentá-las.
Nas vésperas da intentona golpista, Biden apresentava uma equipa de governo cheia de representantes de Wall Street. Por detrás do verniz de multiculturalidade e dos restantes gestos propagandísticos, diversos ex-membros do governo de Obama e entusiásticos colaboradores de Hilary Clinton, como Antony Blinken, Jake Sullivan, John Kerry ou Pete Buttigieg, ocupam as posições fundamentais. O que podemos esperar de uma equipa com estas características?
Num momento em que a pandemia faz estragos e mais de 40 milhões de cidadãos não têm seguro de saúde, é importante lembrar que Biden foi um firme opositor do Medicare for All (saúde pública, gratuita e universal). Isto não é de estranhar, tendo em conta os generosos apoios das grandes farmacêuticas à sua campanha. O novo inquilino da Casa Branca continuará a proteger o negócio multimilionário da saúde privada à custa da saúde pública.
No respeitante ao racismo e à política migratória, Biden promete reformas legislativas, apoio aos direitos civis e investigações sobre as separações de famílias de imigrantes quando as suas crianças são internadas nos campos de detenção. Biden sabe que esta é uma questão que desperta fortes emoções, mas os seus antecedentes não lhe dão muita credibilidade. Foi Biden quem disse publicamente, em pleno levantamento contra a violência policial racista, que “os oficiais deveriam ser treinados para disparar para as pernas ao invés de disparar para o coração”. O seu longo histórico racista é conhecido. Como mão direita da administração Obama, sob o seu mandato conjunto, alcançou-se o recorde de deportações de imigrantes: 1.242.286 entre 2009 e 2016; isto para além dos assassinatos na fronteira, que alcançaram um total arrepiante de 1.507.220. Também foi um entusiasta do endurecimento das leis migratórias. Uma delas foi a primeira versão do "muro de Trump", ainda sob o mandato de Bush, e que contou com o voto favorável de Biden. A outra, em 1996, sob Clinton, criava novas penas de prisão para a imigração ilegal, além das deportações “express”.
Outros problemas fundamentais para a população, como uma dívida estudantil que já supera 1.7 bilhões de dólares (mais que o PIB de alguns Estados europeus como, por exemplo, o Estado espanhol), levam inscrito, em letras maiúsculas, o nome de Biden. Foi ele um dos promotores de uma reforma que, em 2005, teve como resultados triplicar esta dívida em 10 anos e fazer com que hoje 31% dos adultos nos EUA arrastem algum tipo de dívida estudantil. Biden já reconheceu que, neste campo, as coisas continuarão iguais.
A crise da habitação cresceu de forma abrupta durante a pandemia. Se a precária moratória que existe atualmente para os despejos fosse cancelada, calcula-se que mais de 6.5 milhões de pessoas seriam imediatamente expulsas das suas casas sem nenhuma alternativa. Este número, segundo informes recentes, aumenta para 40 milhões se incluirmos as pessoas que entram em risco de despejo durante os próximos meses. Nenhuma das menções de Biden sobre este assunto coloca soluções concretas para as famílias afetadas e, claro, não há quaisquer planos de habitação pública. Apenas se falou de créditos para ajudar na compra (!) da primeira casa. Uma piada de mau gosto para milhões de famílias sem um teto seguro sob o qual viver.
Outro assunto fundamental é o enfrentamento com a China pela liderança mundial. A campanha para apresentar o novo presidente como estandarte da calma e do sossego não pode ocultar que o seu slogan, "Made in America", em nada difere do "America first" de Trump. O próprio deixava isto claro na apresentação pública dos cargos do seu governo, afirmando que “os Estados Unidos voltaram e estão prontos para liderar o mundo”. Após a intentona golpista, voltava a insistir no mesmo ponto, apresentando o seu plano de resgate de 1,9 milhões de dólares para restaurar uma "economia instável", da seguinte maneira: “Imaginem o futuro: ‘feito na América’; ‘inteiramente fabricado na América e por [trabalhadores] americanos’…”. “Compraremos produtos americanos, sustentando milhões de empregos na indústria dos EUA”.
As tendências para o nacionalismo económico e para a guerra comercial só serão fortalecidas sob o seu mandato, e a exploração a que submeterá a classe trabalhadora estado-unidense para lograr "competitividade" vai incrementar-se paralelamente. Quando Biden fala dos interesses da América, sabemos que se refere apenas aos da burguesia estado-unidense.
A demagogia populista de extrema-direita encontrará um altifalante potente sob o governo de Biden. Com o programa democrata, 100% capitalista, é completamente impossível deter o trumpismo. Impedir o seu avanço e vencê-lo somente será possível se a classe trabalhadora e a juventude forem capazes de levantar uma alternativa revolucionária que ofereça soluções reais aos problemas das massas.
Construir um partido dos trabalhadores para lutar pelo socialismo!
Uma ação como a do Capitólio demonstra até onde está disposto chegar o führer nova-iorquino. Apesar de não ter existido um plano acabado para a fazer culminar, é uma advertência de que setores da burguesia se estão a preparar para o futuro. É também uma forma de apelo ao alistamento no exército reacionário que Trump foi capaz de reunir.
A classe trabalhadora está a pensar profundamente e a tirar conclusões de tudo o que acontece. Existe uma ameaça muito real. Aquilo que parecia impossível é, afinal, possível. Os golpes de Estado e as opções autoritárias não estão descartadas nas "democracias avançadas": há setores da classe dominante que apostam nestas vias e estão mais do que dispostos a experimentá-las — e à medida que a luta de classes se tornar mais encarniçada e puderem ver o sério perigo que correm os seus privilégios, o apoio a tais opções crescerá. É o período de revolução e contra-revolução que muito rapidamente se aprofunda.
A correlação de forças, de momento, é claramente favorável à classe trabalhadora. Vale a pena lembrar que quando Trump convocou a Guarda Nacional para disparar sobre os manifestantes e mobilizou as suas milícias supremacistas e fascistas para um choque armado nas ruas, não pôde conter as mobilizações multitudinárias do Black Lives Matter, mobilizações que, ainda para mais, se espalharam por todo o mundo. Trump colheu um monumental fracasso. Tal é a capacidade e a força da juventude e da classe trabalhadora quando levanta os punhos.
Está claro que o Partido Democrata está nos antípodas daquilo que é necessário para vencer o trumpismo. As suas palavras vazias sobre a proteção da democracia dos ricos são completamente inúteis nesta batalha. Imaginar que no interior do Partido Democrata é possível acumular as forças necessárias para erguer um partido de trabalhadores constitui grave erro. As lições da candidatura de Bernie Sanders foram conclusivas a este respeito.
A experiência histórica é muito rica em exemplos que demonstram como os dirigentes reformistas, perante a ameaça do fascismo, se agarram às saias da ordem burguesa, defendem as suas constituições, o "Estado de direito", a unidade nacional, os pactos e todo o tipo de cordões sanitários com políticos burgueses que se dizem democratas. Pedem a calma, apelam a que não se "provoque" a reação. Recusam-se a combater o fascismo e dedicam-se a conter impetuosamente a mobilização, a organização e a ação direta da classe trabalhadora. É também assim que são entregues aos braços da reação os setores desesperados das camadas médias e os trabalhadores desmoralizados e atrasados.
É importante atentar a esta experiência pelas suas valiosas lições, ver o mundo através deste prisma para ser capaz de determinar o papel de Sanders ou de Alexandra Ocasio-Cortez atualmente, e péssimo serviço que prestam àqueles que acreditam na luta para pôr fim à ditadura do “1%”. Depois de claudicar a favor do establishment democrata, Sanders presta-se ainda a dar cobertura ao flanco esquerdo do partido. São muito significativas as declarações que fazia Joe Biden poucos dias antes da intentona golpista: num vídeo, explicava como tinha ponderado seriamente incluir "o seu amigo Bernie" no novo governo, dando-lhe a pasta do Trabalho, mas que ambos tinham decidido que o melhor seria não o fazer para não perturbar o equilíbrio de assentos no Senado (onde Sanders ocupa um assento por Vermont). Pouco depois, era o próprio Bernie Sanders quem aparecia publicamente a branquear Biden e a sua agenda económica sem fazer uma única menção da necessária resposta da esquerda contra as hordas trumpistas.
Estamos a assistir a um autêntico complô contra os oprimidos, no qual os dirigentes dos sindicatos e das organizações reformistas, em lugar de organizar mobilizações massivas e greves para combater o golpismo de Trump — algo que granjearia um extraordinário apoio das massas —, se limitam a condenar o ocorrido, a reivindicar a "democracia" e a apelar ao apoio a Biden e ao seu governo na senda da "reconciliação". Até dirigentes de organizações como o DSA menorizam a importância do assalto ao Capitólio para justificar a sua inação.
Mas os factos são teimosos e não há como ignorá-los. Levantar uma alternativa política e um plano de ação para derrotar a ameaça que representa o populismo de extrema-direita e fascista é uma questão de enorme urgência. Há que organizar mobilizações multitudinárias pelo julgamento e pelo castigo exemplar a Trump e de todos os seus colaboradores envolvidos nos planos golpistas; há que impulsionar comités de ação antifascista nas empresas, locais de estudo e bairros para lançar ações contundentes em todas as cidades; há que convocar a formação de comités de autodefesa para repelir os bandos fascistas e a brutalidade policial; há que levantar um programa socialista que lute por expropriar a oligarquia financeira, nacionalizar toda a riqueza do país e colocá-la sob controlo democrático dos trabalhadores e das suas organizações — começando pela saúde privada — para defender a saúde e a vida das famílias trabalhadoras.
Sanders renunciou a construir um partido de classe independente, mas a esquerda organizada pode dar consistentes passos em frente no sentido de unir milhões de trabalhadores e jovens. Existem hoje condições extraordinárias para fazê-lo. Milhões de pessoas se declaram socialistas — as mesmas que, há quatro anos, responderam a Trump com mobilizações multitudinárias que causaram comoção por todo o mundo, as mesmas que durante todo este tempo lutaram sem descanso. As marchas de mulheres; a maré vermelha que foi de estado em estado colocando em pé de guerra não só os professores, mas também os pais e os estudantes; a conquista, através da militância, de um importante número de vereadores independentes de esquerda; o movimento que enfrentou Jeff Bezos; o movimento que conquistou os 15$ à hora e inspirou tantas cidades com o seu exemplo; a greve da General Motors; a ameaça de greve geral que foi colocada perante Trump e foi capaz de acabar com o encerramento do governo em 2019; as importantes manifestações em solidariedade com irmãos de classe imigrantes perante o tratamento desumano na fronteira com o México; as ocupações de aeroportos para impedir as deportações; o levantamento social anti-racista de milhões de pessoas, em junho de 2020, e o duro golpe desferido em Trump pelas urnas no passado 3 de novembro. Tudo isto mostra como somos uma força imparável que leva a luta inscrita na sua bandeira. Demonstrámos pelos nossos feitos que a vitória é possível.
A tarefa é urgente: há que organizar toda esta força para construir um partido dos trabalhadores, armado com o programa do marxismo e do internacionalismo. Não se trata de organizar uma máquina eleitoral que se dissolve nos interstícios da política burguesa, mas antes uma organização com raízes na luta de classes, nos locais de trabalho, nos sindicatos, nas comunidades, nos movimentos sociais... e que se sirva das instituições, das câmaras e do parlamento para unificar milhões de trabalhadores e jovens.
Com um programa revolucionário e uma ação decidida, um massivo partido de trabalhadores não só indicaria aos trabalhadores qual é o caminho para fazer frente à catástrofe atual, como também ganharia para as suas fileiras muitos elementos pequeno-burgueses que, desesperados e desorientados, seguem Trump porque se sentem repelidos pela política oficial de Washington. Tal partido enviaria uma mensagem à classe trabalhadora de todo o mundo: Sob o capitalismo não há saída. Mas existe verdadeiramente uma alternativa a esta barbárie, e a nossa classe é perfeitamente capaz de torná-la realidade! Reorganizar a sociedade sobre bases de justiça, igualdade e de uma autêntica democracia é possível, mas a única forma de consegui-lo é lutando pelo socialismo.