Em todos os pontos cardeais do globo, a gestão da crise económica e sanitária pelos governos capitalistas – motivados, unicamente, pela manutenção os enormes lucros das empresas – está a gerar uma acumulação ameaçadora de tensões sociais. As manifestações nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Alemanha e na Colômbia são um sinal em relação ao período que se aproxima. A América Latina não é excepção. Chove no molhado e os motivos que provocaram explosões revolucionárias e revoltas no último período só foram agravados.

A pandemia afunda o Chile e o Equador na miséria e aumenta a polarização social

O colapso da saúde no Chile é profundo: às privatizações e cortes que se iniciaram durante a ditadura de Pinochet e que continuaram com os governos democráticos posteriores, há que somar o completo menosprezo por parte da administração de Piñera em relação à doença. A sua principal preocupação foi manter a actividade produtiva a todo o custo. Imitando a dinâmica seguida por outros governos reaccionários como os de Trump e de Bolsonaro, Piñera recusou-se categoricamente a aplicar a “quarentena total”, aconselhada pelos especialistas de modo a evitar milhares de mortes. Em finais de Maio já existiam cerca de 100.000 infectados e mais de 1.000 mortos.

Segundo alguns relatórios, esta gestão criminosa da pandemia pode evoluir de forma dramática. O Institute for Health Metrics and Evaluation da Universidade de Washington afirma que o Chile, um país com 19 milhões de habitantes, pode ter cerca de 12.000 mortos por Covid-19 em menos de 3 meses. A taxa de mortalidade, de acordo com estas projecções, seria de 65,78 por cada 100 mil habitantes: o índice mais alto dos países da América Latina.

Esta postura é um traço em comum com o homólogo equatoriano de Piñera, Lenin Moreno. As imagens macabras das pilhas de corpos nas ruas de Guayaquil no início da pandemia abalaram o mundo. Apesar dos dados que o governo publica serem manipulados, as estimativas de mortes prováveis por Covid-19 superam a barreira dos 6.000. Os infectados roçam os 40.000. Fora das cidades principais, a rede de saúde pública é quase inexistente, o que faz com que a dimensão do impacto desta epidemia seja perigosamente subestimada.

A estratégia para o distanciamento social por parte de Moreno e do seu gabinete seguiu a linha de salvaguardar a manutenção das cadeias de produção e o comércio. Apesar do sério impacto que a pandemia tem tido no Equador, a quarentena decretada foi muito circunscrita, insignificante e breve. O novo sistema de prevenção de contágio baseia-se numa regulamentação por zonas extremamente desleixada, que está a expor milhões ao contágio, especialmente nos sectores mais atingidos e desprotegidos a nível económico e sanitário.

Coronavírus, fome e desemprego: a combinação explosiva que reaviva a chama da revolução chilena

A paralisação de uma parte importante dos sectores produtivos deu lugar a uma autêntica tragédia para as pessoas cujos rendimentos dependem do trabalho diário informal, que representa 60% da população pobre do Chile. A pandemia fez disparar o desemprego para um milhão e meio de desempregados, aos quais temos de acrescentar 460.000 assalariados sob suspensão temporária dos seus contratos, fruto do facto de mais de 80 mil empresas terem recorrido à Lei de “Protecção do Emprego”. Perante este desastre social, o governo anunciou um suposto desembolso de apoios do Estado. No entanto, como ocorreu em muitos outros países, estas subvenções foram parar aos bolsos de banqueiros e de grandes empresários sob a forma de resgate, chegando a ser Piñera um dos seus beneficiários.

Esta situação insustentável chegou a meio da maior crise revolucionária na história recente do país. A 18 de Outubro do ano passado iniciou-se uma onda de manifestações e greves, com milhões de pessoas a saírem às ruas, que estiveram próximas de derrubar o governo de Piñera. O apoio dado pelos dirigentes sindicais e pela esquerda reformista, os quais estenderam a mão ao presidente para aceitar a proposta de referendo constitucional lançada pelo executivo, é a única razão pela qual Sebastián Piñera ainda ocupa o Palácio de La Moneda.

Perante este panorama, a resposta da população não tardou a chegar. Os cacelorazos, as manifestações espontâneas e inclusive as barricadas voltaram a ser a norma, principalmente em Santiago, onde foram brutalmente reprimidas. Um dos locais onde estes protestos chegaram mais longe foi na ilha de Chiloé, situada na região central de Los Lagos. Devido à recusa institucional de paralisar por completo a actividade produtiva da zona, os trabalhadores passaram à ofensiva, fechando os acessos à ilha, cortando estradas e declarando greve em várias empresas salmoneiras, que têm um grande peso económico na região. Uma vez mais, a resposta do governo foi enviar as forças armadas de forma a acabar com os protestos, procedendo à detenção de activistas e de dirigentes sindicais.

A fome tem sido outro incentivo dos protestos, tal como se viu nas comunas pobres do Sul de Santiago, mais concretamente na Comuna de El Bosque. O aumento da virulência nos protestos reflectiu-se nos confrontos entre a população e as forças especiais do exército, enviadas para os bairros. Por agora, o balanço da repressão é de mais de uma dezena de feridos e de 8 detidos.

Para tentar travar as manifestações, Piñera viu-se obrigado a anunciar a entrega de cestas de alimentos a 2,5 milhões de pessoas. Uma esmola que – tentando ser um gesto populista – lhe valeu de muito pouco. Os cacelorazos e as demonstrações de solidariedade para com a insurreição de El Bosque não pararam nas últimas semanas e foram manchetes a nível internacional.

A unidade nacional de Piñera: a estratégia da burguesia para paralisar a classe trabalhadora

A pandemia deu a Piñera o pretexto ideal para tentar consolidar um bloco de concentração nacional ao lado da oposição. Perante a tensão crescente, o presidente tem feito apelos constantes para se assinar um “grande acordo nacional”, insistindo com todas as forças políticas e sindicais para que abandonem as críticas à sua governança e para que remem todos unidos na mesma direção – isto é – fazer todos os possíveis para proteger a estabilidade da ordem capitalista. Uma autêntica chantagem que, lamentavelmente, foi aceite pelo Partido Socialista do Chile (PSCh) e pela Frente Ampla (FA), presentes na negociação deste pacto no passado dia 29 de Maio.

A posição do Partido Comunista Chileno (PCCh), no fundo, não foi muito diferente. Embora se tenham negado a participar nas negociações com Piñera, deixaram a porta aberta para que se chegasse a um acordo no futuro caso o presidente apresentasse “algum projecto que realmente favorecesse a maioria do país, os trabalhadores e trabalhadoras, idosos, jovens, mulheres e povos indígenas”. Sentar-se a negociar com o maior responsável pelo assassinato de 30 manifestantes e de 22.000 detidos? Com o comando superior do exército e da polícia que torturam e violam nos quartéis? É uma afronta total a todos aqueles que arriscaram as suas vidas durante meses nas ruas!

A alternativa proposta pelo Partido Comunista para uma das maiores crises económicas e humanitárias da história do país foi exigir um imposto correspondente a 2.5% do património das pessoas mais ricas. Mas aquilo que foi colocado sobre a mesa no Chile durante o último período foi a necessidade de transformar a sociedade em linhas socialistas, para acabar com a miséria, e a enorme força que há para que isto se torne realidade. Lutar por um programa que rompa com o capitalismo é o que a direção do PCCh deveria defender se realmente quer contribuir para a luta e alcançar as reivindicações do movimento, em vez de apresentar este tipo de medidas completamente conservadoras e insuficientes, que não resolvem os problemas da população.

Lenin Moreno volta à ofensiva: “Paquetazo 2.0”

Por outro lado, e numa demonstração sincera da sua baixeza política e do seu consequente compromisso com o establishment equatoriano, o presidente Lenin Moreno aproveitou o impasse da pandemia para lançar uma nova ofensiva económica que nada tem que invejar ao “paquetazo” apresentado no último trimestre do ano passado, obedecendo ao mandato do FMI. Esse conjunto de medidas foi abandonado depois de dez dias de protestos e de manifestações incendiárias, nas quais dezenas de milhares de indígenas, apoiados pela juventude e pelo movimento operário local, ocuparam a cidade de Quito e obrigaram o executivo fugir da capital.

Tomando nota das lições aprendidas, os novos ajustes escondem-se debaixo de fórmulas imprecisas e pouco concretas. Por um lado, sob a designação falaciosa de Lei Humanitária, esconde-se uma contra-reforma laboral sem precedentes, cujos aspectos mais lesivos consistem em baixar as contribuições até 55%, a redução das horas de trabalho e do salário de todos os funcionários públicos e a desregulação das férias. Continuando com os cortes, a despesa pública vai baixar 4.000 milhões de dólares, acompanhada pelo encerramento de empresas nacionais como a companhia aérea TAME. Ainda que Moreno não elimine o subsídio do combustível – uma das principais reivindicações do movimento em Outubro de 2019 – numa artimanha descarada dá uma reviravolta muito maior: o plano consiste em vincular o preço dos combustíveis ao preço do barril de petróleo, que já está abaixo dos níveis mínimos. Contudo, no momento em que os valores subirem e – tendo em conta que os combustíveis podem até duplicar o seu preço – isso terá o efeito de encarecer consideravelmente os bens essenciais. Se a isto adicionarmos que, actualmente, a inflação não deixa de subir, as previsões destas medidas para a economia doméstica são simplesmente aterrorizadoras.

Um horizonte de aprofundamento da luta de classes no Equador

As condições de vida da imensa maioria da população equatoriana estão no limite. A própria Organização Internacional do Trabalho estima que 65% do trabalho seja informal, ou seja, a meio da pandemia, mais de metade da força de trabalho do país deixou de receber rendimentos. Para a população activa na economia formal a situação não é muito melhor: 14% recebe menos de 80 dólares mensais e 3% estão abaixo do limiar de pobreza extrema.

Não é de estranhar que, apesar da ressaca das lutas do ano passado e do choque causado pela pandemia do Covid-19, na passada segunda-feira dia 25 de Maio, milhares de pessoas marcharam em Quito e em Guayaquil, convocadas pela Central Unitária dos Trabalhadores (CUT). Exigiam a revogação do novo pacote de medidas neoliberais de Moreno, anunciando os confrontos que se avizinhavam. Entretanto, o correísmo, através do Movimento Força e Compromisso Social, que foi completamente irrelevante na explosão social de 2019, declarou simplesmente que recorrerá ao novo pacote. Por outro lado, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) não se juntou às manifestações por causa das indicações sanitárias e contraditórias do governo, que assinala a viabilidade de ir trabalhar, mas não a de aderir às manifestações. Contudo, [a CONAIE] já anunciou que está a preparar mobilizações, como resposta ao terremoto provocado pela agitação nas suas bases.

Só a luta revolucionária pode acabar com a miséria

O acordo com que terminaram as manifestações de Outubro no Equador baseou-se na promessa frouxa de revogar o “Paquetazo” de um Lenin Moreno completamente encurralado, debilitado e isolado. Ainda que com um balanço de forças extraordinariamente favorável, até ao ponto da questão do poder ter sido posta em cima da mesa, a CONAIE assinou o dito pacto, desmobilizando o movimento na totalidade, sem sequer exigir a demissão de Moreno, o julgamento dos polícias assassinos de manifestantes ou um plano de investimento público. Repetindo a frente unida das recentes lutas passadas, a CONAIE, a CUT e a Frente Unitária de Trabalhadores têm a força para impulsionar um novo plano de mobilizações. A força demonstrada e a traição de Moreno são argumentos de sobra para chegar a centenas de milhares de equatorianos e equatorianas ansiosos por lutar contra o governo do FMI.

Coincidindo com Moreno, para Sebastian Piñera os acordos com as forças reformistas e parlamentares, por mais limitados que sejam, convertem-se automaticamente em letra-morta. Aproveitando a confusão causada pela crise de saúde pública, o referendo constitucional foi adiado indefinidamente no Chile. Isto enquanto o governo da direita aproveita para tomar posições, plenamente consciente da fase que estamos a entrar. Os dirigentes do Partido Comunista do Chile, da Mesa de Unidade Social e dos sindicatos como a Central Unitária de Trabalhadores do Chile (CUT) deviam estar a fazer apelos à luta, à greve geral e à ocupação de fábricas para exigir a queda do Governo de Piñera.

Nestes meses tornou-se mais claro que nunca o quão criminoso é este sistema e a necessidade urgente de acabar com ele. As classes populares na América Latina, sem qualquer sombra de dúvida, demonstraram estar à altura do momento histórico. De Norte a Sul em todo o continente, o nível de consciência de milhões de pessoas está a dar passos gigantes, ao mesmo tempo que se dá um salto em frente na organização das massas e nas revoltas contra as forças repressivas, a nível quantitativo e qualitativo. As massas do Chile e do Equador têm nas suas mãos a força para impor o fim da actividade produtiva enquanto existir risco para a saúde. Além disso, têm a força para impor a nacionalização de todo o sector da saúde, farmacêutico, e de todas as alavancas da economia. Porém, estas conquistas são completamente inviáveis na mão dos que oprimem e servem exclusivamente os interesses dos capitalistas: não há qualquer saída na política de unidade nacional nem na de pactos com a oligarquia. A luta por uma vida digna de ser vivida passa, inevitavelmente, pela luta pelo socialismo.

Abaixo Piñera!
Fora Lenin Moreno!
Pela Federação de Repúblicas Socialistas da América Latina!

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