É preciso romper com a conciliação de classes e construir a esquerda combativa!

A burguesia brasileira procura uma solução para salvar os seus lucros e privilégios ante o sério perigo de uma sublevação de massas e num contexto de enormes convulsões nas relações internacionais.

Inácio Lula da Silva posicionou-se para ser essa solução, e apontou Geraldo Alckmin como seu candidato à vice-presidência. Ante isto, a direção do Partido do Socialismo e Liberdade (PSOL), maior partido à esquerda do Partido dos Trabalhadores (PT), anunciou o apoio incondicional à campanha, juntando-se a uma repetição lamentável da política que abriu as portas ao bolsonarismo.

A hecatombe social capitalista

O Brasil é o terceiro país mais afetado pela pandemia em todo o mundo — com mais de 30,2 milhões de casos e 662.000 mortes por covid-19 registadas. Este é o resultado da política de guerra contra os pobres do governo, com uma gestão criminosa da pandemia.

O número oficial do desemprego, em fevereiro deste ano, foi 11,2%. São 12 milhões de desempregados oficiais, aos quais se juntam, ainda em números oficiais, os 4,7 milhões de “desalentados” — quem já não procura emprego —, os 27,3 milhões de trabalhadores subempregados e os 38,5 milhões de trabalhadores informais. E estar empregado tampouco significa escapar à pobreza. No mesmo período, o salário médio caiu de 2.752 reais (520 euros), para 2.511 reais (475 euros), com o salário mínimo fixado nos 1.100 reais (217 euros).

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O Brasil vive uma verdadeira hecatombe social, com mais de 662.000 mortes por covid-19 e 19 milhões de pessoas a passar fome. São estes os resultados do governo criminoso de Bolsonaro.

Segundo dados da UNICEF, antes da pandemia, 12% das crianças e adolescentes no Brasil viviam em pobreza extrema (menos de 1,75 euros por dia) e 40% em pobreza monetária (menos de 5 euros por dia). Entretanto, a miséria e a fome cresceram visivelmente. A Rede Penssan, num estudo publicado em dezembro do ano passado, apresentou números assombrosos: 116 milhões de pessoas, mais de metade da população, vivem em insegurança alimentar e 19 milhões, ou 9% da população, passam fome. A guerra na Ucrânia veio agravar ainda mais esta crise social, com um encarecimento avassalador dos bens essenciais e combustíveis — a inflação interanual chegou aos 11,3% em março deste ano.

As consequências na vida quotidiana dos trabalhadores e camponeses pobres do Brasil são incontáveis. Uma delas é a luta das famílias que, incapazes de comprar bilhas de gás para cozinhar, recorrem a alternativas como o álcool etílico. Isto provocou uma subida gigantesca do número de acidentes que já mataram ou cobriram de queimaduras milhares de pobres no país, especialmente mulheres e crianças.

São estes os resultados que apresenta o governo criminoso de Bolsonaro.

Crise do bolsonarismo e aposta da burguesia em Lula

Esta barbárie social não é vivida com passividade. Além de greves, entre as quais se destacam as dos motoboys (entregadores de comida) e dos trabalhadores do metro, houve sucessivas manifestações de massas contra o governo de Bolsonaro no último período. As maiores de 2021 foram as de 29 de maio, 19 de junho, 3 de julho, 24 de julho e 2 de outubro, ocorrendo em centenas de cidades e com centenas de milhares de manifestantes, ultrapassando em muitos casos as do movimento Ele Não! que tomou as ruas após as eleições. E ao descontentamento massivo dentro de fronteiras junta-se a multitude de sublevações de massas e crises revolucionárias na América Latina.

Assim, o governo existe em permanente crise. Até março deste ano, houve 28 trocas de ministros, mais de metade das quais foram demissões resultantes de conflitos internos ou escândalos de corrupção. O ministério da educação, por exemplo, espera o anúncio do seu quinto ministro. O da saúde está agora no quarto. A descredibilização das instituições do Estado é cada vez maior.

Vendo isto, a classe dominante que esteve unida atrás de Bolsonaro depois do impeachment de Dilma e do encarceramento de Lula está hoje dividida em facções que discordam sobre o rumo a seguir. Um sector crescente vê no atual presidente um perigoso pirómano social capaz de inflamar um movimento de massas com consequências imprevisíveis e possivelmente revolucionárias.1

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A classe dominante está dividida em facções que discordam sobre o rumo a seguir. Um sector crescente teme que Bolsonaro inflame um movimento de massas com consequências imprevisíveis e possivelmente revolucionárias.

Simultaneamente, existe uma divisão perante os blocos imperialistas que disputam o domínio do mercado mundial cada vez mais violentamente.

Uma demonstração disto é o volte-face do governo com a guerra na Ucrânia. Bolsonaro iniciou o seu mandato como fiel cão do imperialismo estado-unidense. Um dos seus primeiros atos na presidência foi viajar a Washington e saudar a bandeira yankee. Volvidos 3 anos, o mesmo Bolsonaro nega-se a condenar a “operação militar” de Putin, rejeita sanções à Rússia e junta o Brasil ao numeroso grupo de Estados latino-americanos, africanos e asiáticos que mantêm uma posição “neutra” no conflito.

Este é o resultado da influência da China na economia do Brasil e de toda a América Latina. A China é atualmente o maior parceiro comercial do Brasil, tendo sido o receptor de 31,7% das suas exportações em 2020, ou 67,9 mil milhões USD. A potência asiática ultrapassou os EUA como principal parceiro comercial do Brasil em 2009, imediatamente após o estalar da Grande Recessão, quando desempenhou o papel de motor do capitalismo mundial, absorvendo uma grande quantidade de matérias-primas do Brasil na sua indústria. Hoje, os EUA continuam a ser o segundo parceiro comercial da maior economia latino-americana, mas tem menos de metade da importância da China — as potências participam em 13,25% e 28,11% de todo o comércio externo brasileiro, respetivamente.

Cada vez mais, Xi-Jinping apresenta à oligarquia brasileira um futuro melhor do que o balbuciar de Biden, e cada vez mais as exigências dos EUA chocam com os interesses de um sector decisivo do capital brasileiro. As pesadas derrotas estado-unidenses dos últimos anos — o falhanço dos golpes na Venezuela e na Bolívia, a humilhação no Afeganistão, etc. — vieram acelerar esta viragem. A posição de Bolsonaro perante a guerra na Europa mostra um salto qualitativo na influência da China sobre o Brasil… E expõe novamente a desorientação e a crise do bolsonarismo, as graves contradições que atravessam o aparelho de Estado.

Sem dúvida, Bolsonaro e o seu executivo têm fortes laços materiais com Washington, tal como um importante sector da burguesia nacional. Seria ingénuo pensar que os EUA abdicarão da sua influência sobre o Brasil com mais facilidade do que no caso da Europa, onde não recuaram nem perante uma guerra de consequências imprevisíveis. A fractura na burguesia brasileira está longe de ser ultrapassada e provocará mais convulsões.

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Bolsonaro nega-se a condenar a “operação militar” de Putin. Este é o resultado da influência da China, maior parceiro comercial do Brasil. Cada vez mais as exigências dos EUA chocam com os interesses de um sector decisivo do capital brasileiro.

Neste contexto, a célere libertação de Lula, em 2019, deve ser entendida justamente como uma manobra para criar uma alternativa de regime. Uma parte decisiva da burguesia aposta hoje na social-democracia para gerir a crise do seu sistema, garantir paz social e encontrar um caminho entre a tempestade das relações internacionais. Lula surge com todas as chaves. Histórico dirigente sindical, figura com maior autoridade entre trabalhadores e camponeses pobres, é ainda um dos fundadores da aliança dos BRICS. Por isso mesmo, desde que saiu da cadeia, Lula vive num frenesim de contactos com os maiores empresários e figuras da direita — reuniões com os capitalistas do agronegócio, o encontro com Fernando Henrique Cardoso, etc. A nomeação de Alckmin como companheiro de campanha é o culminar de um longo processo de negociações com a oligarquia brasileira e a última reafirmação da sua política de conciliação de classes.

Quem é Alckmin?

Racista, misógino e católico conservador, Alckmin juntou-se recentemente ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), partido usado como plataforma de lançamento para todo o tipo de charlatães políticos. Fez toda a sua carreira no Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o maior partido da direita conservadora no país. Foi como membro dirigente do PSDB que iniciou a sua governação do estado de São Paulo, de 2011 a 2018, e apoiou o impeachment de Dilma, em 2015-16.

A identidade de Alckmin com a política seguida mais tarde por Bolsonaro é explícita numa das suas primeiras frases como governador: “Em São Paulo, bandido tem dois destinos: prisão ou caixão”. A criminalização da pobreza foi a marca do seu governo. Assim, lançou um tsunami de privatizações, fez uma gestão criminosa da maior crise hídrica da história de São Paulo — batendo-se pela privatização da empresa pública de abastecimento de água —, encerrou 700 escolas públicas, esmagou uma greve histórica de professores e cortou os seus salários, reprimiu à bastonada o movimento estudantil e deu carta branca à polícia para reprimir trabalhadores e pobres a tiro (as mortes por violência policial duplicaram), ordenando massacres como o Massacre do Pinheirinho.2

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Racista, misógino e católico conservador, o reacionário Alckmin governou São Paulo com privatizações e uma brutal repressão. Agora, as direções do PT e da CUT passeiam-no por conferências e encontros sindicais como um amigo dos trabalhadores.

Que tem Lula a dizer sobre isto? O seguinte: “Tenho uma extraordinária relação de respeito com Alckmin, (...) conversamos muito. Não há nada que aconteceu entre eu e Alckmin que não possa ser reconciliado”. Eis o fundamental do lulismo: a subordinação e o servilismo perante a oligarquia.

Agora, as direções do PT e da CUT, a maior central sindical do país, passeiam Alckmin por conferências e encontros sindicais onde o reacionário se apresenta como amigo dos operários e dos pobres a gritos de “Viva Lula! Vivam os trabalhadores do Brasil!” — o cinismo é de dar a volta aos estômago.

A bancarrota do PSOL

Sob os golpes da crise, o PSOL vira cada vez mais à direita. Nos momentos mais críticos do governo de Bolsonaro, estes reformistas compactuaram com as manobras do PT para desviar o movimento para as águas institucionais, recusando-se a apelar à greve geral para, em vez disso, levantar o impeachment como palavra de ordem.

Opuseram-se desde o início à candidatura presidencial própria do PSOL, defendendo antes a participação na campanha de Lula. Um processo idêntico deu-se no estado de São Paulo, onde Guilherme Boulos abdicou da candidatura para apoiar Fernando Haddad (PT). Simultaneamente, a cúpula do partido prepara uma federação com a REDE (ou “Rede Sustentabilidade”), o partido ecocapitalista da conservadora Marina Silva, que se opõe à legalização do aborto. A coligação é feita com o objetivo de aumentar o financiamento público do partido. O anúncio da aliança de Lula com Alckmin — que gerou comoção até entre as bases do PT — só veio aumentar a crise interna do PSOL.

A “conferência eleitoral” onde tudo isto se discutirá está marcada para 30 de abril, em São Paulo, mas materiais de apoio à campanha do Lula já são distribuídos dentro do PSOL e a federação com a REDE foi anunciada na comunicação social juntamente com o apoio a Lula. As capitulações serão apresentadas às bases, na “conferência eleitoral”, como factos consumados e irreversíveis.

Este rumo de seguidismo da social-democracia é traçado à revelia dos milhares de militantes e ativistas que compõem a base da organização, e a direção utiliza todos os métodos burocráticos para asfixiar o debate e impedir a articulação de uma oposição politicamente consequente.

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A direção do PSOL vira cada vez mais à direita e o seguidismo da social-democracia é feito à revelia das bases. Ao aliar-se a Marina Silva e ao apoiar a aliança Lula-Alckmin, está a repetir a política que abriu as portas ao bolsonarismo.

Boulos, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que foi candidato à presidência pelo PSOL nas eleições de 2018, está reduzido a um apologista das alianças com a direita. Nas suas palavras, “está em jogo hoje (...) romper com a tragédia do bolsonarismo e ser capaz de apontar para um caminho de futuro para o país, (...) um país em ruínas, um país devastado!”

Para estes dirigentes, a tragédia justifica tudo e a única via para travar o bolsonarismo é a institucional, em alianças com a direita e a “burguesia democrática” — não têm nenhuma confiança na força dos trabalhadores. Mas os capitalistas da laia de Alckmin jamais se negaram ou negarão a usar a repressão e os métodos mais autoritários, inclusive durante governos do PT. Apoiam Lula não por terem sentimentos “democráticos”, mas sim para tentar estancar a luta das massas, justamente porque é a luta que aponta “um caminho de futuro” para a classe trabalhadora! A política de conciliação de classes que a direção do PSOL segue agora foi a mesma que abriu as portas ao bolsonarismo e que, a ser repetida, vai preparar o terreno para ataques ainda mais monstruosos.

Socialismo ou barbárie!

As sondagens apontam para a vitória de Lula, de momento com 45%, 20 pontos acima de Bolsonaro — o que por si só demonstra a oposição massiva ao atual governo. A concretizar-se, isto será uma vitória contra o bando de reacionários instalado no Planalto. Mas o lulismo não tem como resolver as contradições que o capitalismo enfrenta e melhorar a vida da esmagadora maioria da população. A política do PT de 2003 assentou no crescimento económico anterior à Grande Recessão e, até 2012, como explicámos, no crescimento da China.

É uma evidência que a burguesia chinesa dirige um músculo económico poderoso, tem um plano claro e está a jogar as suas cartas da melhor maneira, mas não pode escapar às tendências fundamentais de decadência orgânica deste sistema e voltar a ter um crescimento de dois dígitos. Um período de prosperidade para todas as classes do Brasil à boleia do crescimento chinês é uma fantasia reacionária.

Assim, o esforço dos dirigentes do PT e do PSOL para manter e fortalecer as ilusões no lulismo está fadado ao fracasso. Até porque a frustração gerada por sucessivos anos de conciliação de classes e o sofrimento da crise social e sanitária não passaram em branco. As lutas dos últimos anos, com movimentos massivos da classe trabalhadora, do campesinato e da juventude, e os exemplos brilhantes da classe trabalhadora da restante América Latina têm tremendos efeitos na consciência das massas no Brasil.

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Avizinham-se titânicos choques entre as classes e o potencial para a construção de uma alternativa revolucionária existe. Há que levantar o programa da independência de classe e da transformação socialista da sociedade.

Avizinham-se titânicos choques entre as classes e o potencial para a construção de uma alternativa revolucionária é um facto comprovado. Para que esta alternativa se concretize, há que levantar o programa da independência de classe e da transformação socialista da sociedade, e tirar às direções reformistas e predominantes no movimento operário a influência que mantêm sobre amplas camadas da classe trabalhadora. Isto só é possível rejeitando o sectarismo. É necessário que a crítica rigorosa da política destas direções seja acompanhada de um apelo, dirigido aos setores mais combativos do PT, do PSOL, da CUT, do MST e mais importantes organizações de trabalhadores, para uma frente unida na luta por reivindicações imediatas, que abordem a crise social e tenham um real impacto na vida das massas.

A via para combater a miséria e a extrema-direita não é a das instituições e eleições, mas sim a da luta nas ruas, nos locais de trabalho e estudo. A alternativa a esta luta, como está já demonstrado, não é nenhum retorno a 2003, mas antes uma continuação da brutalidade capitalista desenfreada. É socialismo ou barbárie!


Notas:

1. Em março de 2021, 1.500 empresários — entre eles o ex-presidente do Banco Central, membros do Conselho de Administração do Banco Itaú, o maior do país, e ex-ministros de variados governos — publicaram uma “carta aberta” exigindo um plano de vacinação, medidas de controlo da pandemia e o fim da campanha de negacionismo do vírus organizada pelo governo. Trata-se da clara tentativa, por parte de um sector da burguesia, de disciplinar o governo de Bolsonaro.

2. O Massacre do Pinheirinho, em janeiro de 2012, foi a expulsão violenta, com espancamentos e assassinatos, de cerca de 9.000 pessoas que viviam há anos num terreno abandonado no estado de São Paulo. As suas casas foram demolidas e o terreno entregue ao multimilionário Naji Nahas.

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