Um ano após a eleição de Lula da Silva e da tentativa de golpe de Estado bolsonarista a polarização social, os ataques contra a classe trabalhadora, os povos originários e os oprimidos não desapareceram. A política de conciliação de classes do governo Lula-Alckmin longe de ser um antídoto contra a extrema-direita bolsonarista e uma garantia de estabilidade do regime democrático, voltará a abrir-lhe as portas mais cedo ou mais tarde.
Um governo de unidade nacional com a direita e os golpistas para salvar a burguesia
Ainda durante a campanha eleitoral, Lula da Silva mostrou com muita clareza que o seu caminho seria o da conciliação de classes. Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo, de direita e conhecido por reprimir duramente a população mais pobre e racializada, foi apresentado como seu vice. A tentativa de golpe aprofundou ainda mais os pactos com a direita que utilizou este facto para aumentar ainda mais a sua influência. O executivo Lula-Alckmin é composto desde a esquerda reformista até à extrema-direita bolsonarista.
A ministras como Simone Tebet, candidata da direita neoliberal às anteriores eleições, ou Marina Silva, conhecida pela sua posição anti-aborto junta-se José Múcio, amigo de Bolsonaro, como Ministro da Defesa. Diz-nos Lula que faz tudo em defesa da unidade nacional e da democracia. Mas com representantes da alta burguesia como estes no governo, sabemos bem para quem este governo irá governar: para os interesses da oligarquia financeira e dos grandes monopólios. E na Assembleia Nacional e nos parlamentos estaduais, infestados de deputados da extrema-direita, a conciliação com os partidos do “centrão” — na realidade partidos de direita — é permanente.
O programa do governo Lula-Alckmin prevê a limitação do teto de gastos dos ministérios e vai significar um novo corte nos serviços públicos como a Educação e a Saúde — o chamado “arcabouço fiscal” —, o pagamento da dívida, privatizações e a destruição de serviços públicos quer a nível federal quer a nível estadual. E as contra-reformas laborais e das pensões aprovadas pela direita anteriormente serão para manter. O caso do Marco Temporal das terras indígenas é paradigmático na forma como desmascara Lula, que fez um grande alarido sobre os direitos dos povos originários e das minorias, mas o seu próprio partido o PT levou uma nova proposta ao Supremo Tribunal Federal para conseguir aprovar esta lei.
O primeiro ano de governo Lula-Alckmin foi de bons resultados para a classe dominante e de alívio para as camadas mais pobres da população. Segundo o FMI, o Brasil crescerá 3,1% em 2023, à boleia do sector agropecuário e do aumento do consumo interno, potenciado pelos programas assistencialistas, subida do salário mínimo e alívios fiscais por parte do governo. O desemprego diminuiu ligeiramente — mais 1 milhão de brasileiros empregados em comparação com o ano anterior. Estes ganhos e a nova política do governo refletiram-se igualmente no Ibovespa, o principal índice bolsista brasileiro, que registou a maior subida desde 2019.
A recuperação de vários programas sociais financiados com dinheiro público e de medidas como a taxação de offshores já aprovadas entretanto refletem a pressão social que o novo executivo tem vindo a sofrer. Por um lado, da classe trabalhadora e várias camadas intermédias, atiradas para a miséria e para a morte pela gestão criminosa de Bolsonaro especialmente durante a pandemia — o Brasil voltou ao Mapa da Fome da ONU em 2022 —, e por outro lado setores da classe dominante que, perante a contração do mercado interno, a dificuldade em obter mão-de-obra e a corrupção generalizada do anterior governo, fugiram do país como nunca antes.
Nos últimos meses, a diminuição generalizada do preço dos alimentos e a valorização do real face ao dólar também ajudam a explicar o balão de oxigénio sentido por muitas famílias trabalhadoras que viram os seus rendimentos reais aumentarem durante este ano.
Esta política de conciliação de classes permitiu restabelecer alguma paz social e estimular a economia, significando grandes lucros para o grande capital nacional e internacional.
Uma viragem significativa nas relações internacionais
A estratégia seguida por Lula foi a da estabilização do regime democrático-burguês e crescimento económico com vista à recuperação do investimento estrangeiro e da credibilidade internacional.
Ao nível das exportações, 2023 foi o melhor ano desde que há registo. O Brasil nunca exportou tanto, totalizando $310 mil milhões, registando um saldo positivo da balança comercial de $90 mil milhões. Para isto contribuiu novamente o sector agropecuário com culturas como a soja e o milho em destaque, mas também o petróleo e seus derivados. O principal destino destas exportações é a China que representa 30% dos produtos vendidos ao exterior, mais do dobro do volume de negócios feito com os EUA, que são o segundo parceiro comercial.
Na frente externa, Lula da Silva rompeu decididamente com o governo anterior. A sua orientação ao bloco sino-russo representa uma alteração significativa nas relações internacionais e tendo em conta o peso da economia brasileira é um acontecimento de transcendência mundial.
Como dissemos, a China é o principal parceiro comercial do Brasil e lidera a disputa pela hegemonia mundial frente aos EUA. A China e o bloco liderado por esta apresenta-se cada vez mais como confiável e estável frente a um Ocidente em decadência, fonte de instabilidade e belicismo, como mostra a guerra na Ucrânia e o genocídio na Palestina.
O Brasil, pela mão de Lula, recusou-se a fornecer armas para a Ucrânia, a impôr sanções à Rússia, tem se multiplicado em iniciativas internacionais de promoção e alargamento dos BRICS — cujo banco é presidido pela ex-Presidente Dilma Rousseff, do mesmo partido de Lula —, de lançamento de novas parcerias comerciais contrárias aos interesses do imperialismo estado-unidense e defendendo inclusive um sistema internacional de pagamentos alternativo ao dólar.
A classe dominante é acima de tudo pragmática e a brasileira não é excepção. Este ano Lula já participou na Cimeira dos BRICS, na África do Sul, visitou a China — onde defendeu a política de anexação de Taiwan —, mas manteve igualmente várias reuniões com governantes europeus, entre eles o chanceler Olaf Scholz, Emmanuel Macron ou Giorgia Meloni e, claro está, com Joe Biden.
Embora mantendo muitos e variados contactos não há dúvida que a política internacional brasileira se está a orientar ao imperialismo chinês, em ascensão, o que tem feito soar os alarmes em Washington cujas ligações históricas com alguns sectores da burguesia e das Forças Armadas não devem ser ignoradas. A estratégia do imperialismo estado-unidense neste momento, à semelhança do que sucedeu no Peru, não será chocar de frente com o governo Lula-Alckmin mas antes esperar que se desgaste antes de tentar algo.
A luta de classes não parou
Apesar da ligeira melhoria socioeconómica já explicada, as lutas dos trabalhadores brasileiros não pararam. Ainda no primeiro semestre houve greves de professores e luta dos estudantes contra o modelo neoliberal no Ensino Médio e no último período foram os trabalhadores das universidades, dos aeroportos e da empresa aeronáutica Embraer a realizarem greves.
No estado de São Paulo, o governador bolsonarista e militar na reserva, Tarcísio de Freitas, está a levar a cabo um plano de privatizações brutal nos serviços públicos: metro, comboios, água, saneamento e professores. Este plano de privatizações está a ser combatido de forma determinada pela classe trabalhadora com destaque para os trabalhadores do Metro, que foram alvo de uma campanha de difamação e os principais líderes da greve despedidos. A unificação destas lutas é um passo necessário para travar as privatizações e a recente greve dos vários sectores mostra que há vontade para lutar entre os trabalhadores brasileiros e as populações.
A nível ambiental, apesar do desmatamento da Amazónia ter diminuído 30% este ano, o agronegócio continua a ter carta branca para expoliar os vastos recursos ambientais da floresta e do pantanal brasileiros com graves consequências para os povos originários e o meio ambiente. No pantanal 1 milhão de hectares arderam só este ano, o maior valor em décadas, e no sul do país as inundações mataram 32 pessoas e deixaram muitos milhares de desalojados.
Mas o caso mais gráfico de exploração desenfreada do meio ambiente e desrespeito total pelas populações foi o colapso de uma mina de sal-gema em Maceió (Nordeste), que levou à evacuação forçada de mais de 60 mil pessoas. Parte da vila onde se localizava a mina colapsou e uma lagoa foi contaminada por sal com impactos devastadores para o ecossistema e para a população local.
O bolsonarismo não foi derrotado
Há um ano escrevíamos que “Se algo fica claro nesta intentona golpista é que tem o apoio de sectores decisivos do poder financeiro e industrial e do aparelho de Estado, a começar pelos oficiais do exército e da polícia”.
O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito à tentativa de golpe de Estado do dia 8 de janeiro de 2023 confirma em absoluto esta análise. Além do próprio Jair Bolsonaro, cinco ex-ministros e seis ex-auxiliares estão indiciados. O relatório indicia igualmente ex-comandantes da Marinha, do Exército e um conjunto alargado de dirigentes da Polícia Militar do Distrito Federal, além de numerosos empresários que financiaram os acampamentos bolsonaristas durante meses.
Além de indiciado por ações golpistas, Bolsonaro foi ainda condenado por crimes eleitorais, estando impedido de se candidatar a cargos públicos durante 8 anos. Mas estes reveses não significam o seu fim nem muito menos do seu movimento. Ao contrário do que afirmou há um ano o governo Lula de que o golpe seriam os “últimos estertores do bolsonarismo”, uma sondagem recente do Instituto Datafolha de setembro indicava que 25% dos inquiridos se consideravam “bolsonaristas raíz”, ou seja, apoiantes acérrimos do ex-presidente, enquanto de acordo com outra sondagem 38% consideravam o governo Lula pior do que o de Bolsonaro.
As condenações e penas efetivas de políticos participantes e apoiantes do golpe ou não existem ou foram irrisórias. O governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha (MDB, direita), inicialmente afastado do cargo, já foi reinstituído e Anderson Torres, ex-ministro da Defesa, esteve preso apenas 4 meses e não foi condenado. Também as Forças Armadas, implicadas a vários níveis até à medula e onde o apoio à extrema-direita continua maioritário, até agora não sofreram praticamente nenhuma condenação. A confiança cega dos reformistas no poder judicial ou a política de conciliação com estes golpistas seguida por Lula servirão apenas para lhes dar mais força no futuro.
A ascensão da extrema-direita um pouco por todo o Mundo, mas em particular nos EUA e mais recentemente na Argentina e a contínua polarização social alimentada pela crise do capitalismo significam que o programa e o movimento bolsonarista continuam a ter terreno fértil por onde se desenvolver. Contrariamente à ideia que o regime brasileiro se irá reequilibrar com o atual governo Lula-Alckmin, nós enquanto marxistas, sabemos que será exatamente o contrário.
As contradições que levaram ao aparecimento e triunfo de Bolsonaro e da extrema-direita continuam. A sua base social composta por latifundiários, máfias, pelo exército e a polícia, por vários sectores da pequena-burguesia e até alguns trabalhadores mais desesperados também não desapareceu. Os seus partidários continuam colocados em posições de poder, controlando a maioria da Assembleia Nacional e vários estados, em particular o estado de São Paulo, o mais rico e populoso do país. Os militares golpistas não foram afastados e permanecem em posições de chefia e influência.
Ainda que relegado temporariamente para segundo plano, o bolsonarismo continua vivo e aguarda apenas o melhor momento para passar novamente à ofensiva.
Mobilizar a classe trabalhadora com um programa socialista
O governo Lula-Alckmin conseguiu restituir alguma estabilidade temporária ao regime brasileiro depois da tentativa de golpe de Estado de há um ano. Mas como mostram as últimas lutas, a burguesia brasileira não tardará a exigir mais lucros e cortes às custas da classe trabalhadora.
Enfrentar os planos de privatizações e cortes requer uma política de frente única com um programa que una os vários movimentos sociais que protagonizaram lutas nos últimos anos contra Bolsonaro, em defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos originários, o movimento feminista e anti-racista e o movimento sindical. Este programa deve exigir a expropriação dos grandes latifundiários e capitalistas e a nacionalização sob controlo democrático dos sectores-chave da economia brasileira que garantam as necessidades básicas da população de habitação, alimentação, saúde, educação e transporte.
Os trabalhadores já compreenderam que apenas a sua organização e mobilização mais contundente será capaz de melhorar os seus salários, defender o meio-ambiente ou lutar contra a ameaça latente da extrema-direita. A tarefa da esquerda combativa e de classe dentro dos sindicatos, em particular dentro da CUT, e dos movimentos sociais é impulsionar essa organização e mobilização.