Contra as manobras da burguesia! Lutar por um governo dos trabalhadores com um programa socialista!
Após vários dias de protestos de massas aos quais a classe dominante respondeu com uma repressão feroz que causou 2 mortos e centenas de feridos e detidos, no domingo, 15 de Novembro, o governo ilegítimo de Manuel Merino — nomeado apenas cinco dias antes pelo parlamento — viu-se obrigado a apresentar a sua demissão.
Merino tinha sido designado presidente após uma moção de censura do seu predecessor, Martín Vizcarra, acusado de corrupção durante o seu mandato enquanto governador. A moção de censura foi apoiada por 105 deputados — 99 pertencentes a 6 dos 8 partidos burgueses representados no parlamento, e também 6 dos 8 deputados da coligação de esquerda Frente Amplio por Justicia, Vida y Libertad (FA). Contra a moção votaram 17 deputados pertencentes às forças burguesas que apoiavam Vizcarra — o Partido Morado e parte da bancada de Somos Perú — assim como os restantes deputados do FA, contabilizando-se ainda 4 abstenções.
Após a sua nomeação, Merino incluiu no seu governo vários políticos burgueses que as massas identificam como responsáveis diretos pela corrupção e pelas políticas neoliberais que têm marcado o país durante as últimas décadas. Esta foi a última gota que fez transbordar a indignação popular. Imediatamente, centenas de milhares de pessoas inundaram as ruas mostrando a sua rejeição à manobra grosseira e exigindo a demissão do novo governo.
Animados pelo exemplo da insurreição no vizinho Chile, a juventude tem sido o motor do movimento. À medida que os dias passavam, crescia o clamor exigindo “que saiam todos” e questionando não só o governo de Merino como todo o regime político responsável pela corrupção galopante e pelas políticas neoliberais de privatizações massivas, cortes e incremento da desigualdade social.
Se alguma coisa ficou clara nestes dias é precisamente a rejeição massiva deste regime — forjado no golpe de Estado impulsionado por Alberto Fujimori em 1992 e legalizado na Constituição aprovada durante o seu mandato e que ainda hoje está vigente.1 O choque entre os partidos burgueses que apoiaram Vizcarra e os que promoveram a sua destituição nada mais é do que o último episódio de uma crise política de longa data2 e reflete a própria decomposição deste regime contra o qual as massas se levantam agora. Os últimos seis presidentes foram condenados ou estão a ser processados por corrupção e pelo menos três deles abandonaram o cargo perante mobilizações massivas exigindo a sua demissão.
O “milagre económico peruano” construído sobre a exploração e a pobreza
Durante os últimos anos, a propaganda dos meios de comunicação burgueses tem apresentado países como o Peru, o Chile e a Colômbia — governados por regimes de direita caracterizados pela sua subserviência ao imperialismo estado-unidense — como modelos económicos de sucesso. O “milagre económico peruano” tem sido uma das manchetes mais repetidas. Mas a verdade é que as bases sobre as quais se levantou este suposto “milagre” são boa parte da explicação para o esgotamento e a degradação das condições de vida que, por sua vez, têm servido de combustível às mobilizações que assolaram o governo de Merino.
Entre 1999 e 2019, a economia peruana cresceu em média 5%, face a um valor regional de 2,7%, com picos de 8,9% e 9,7% em 2007 e 2008. Este crescimento baseou-se na subida dos preços das matérias-primas na época, assim como em investimentos que chegaram ao país para explorar os recursos naturais e minerais. Após o colapso no início da crise mundial (0,9% de crescimento em 2009), voltou aos 8,9% em 2010 e, favorecido pelas suas exportações para a China, manteve números acima de 4% até 2016, desacelerando desde então. Segundo os dados oficiais, entre 2005 e 2018 a pobreza reduziu-se de 52% a 21%. Embora os critérios para a obtenção destes números sejam questionáveis por diversos especialistas, o certo é que o “milagre económico” só o foi para a classe dominante e para sectores das camadas médias que temporariamente beneficiaram.
A realidade foi muito diferente para a classe trabalhadora, que apenas experienciou um aumento da exploração e da precariedade. Segundo um relatório do Instituto Nacional de Estatística e Informática (INEI) publicado este mês, o trabalho informal atinge 75,2% da população activa, um dos maiores níveis do continente. Outro relatório, intitulado “Lacunas latentes: índice de progresso contra a desigualdade no Peru 2017-2018”, da Oxfam, denuncia que o Peru está “muito abaixo dos padrões da OCDE” em todos os aspetos que medem a lacuna entre ricos e pobres. Esse mesmo relatório fornece dados como o de que “doze milhões de peruanos (40% da população total do país) estão em risco de voltar a ser considerados pobres” ou que 43,5% das crianças menores de 3 anos sofre de anemia, “o que afecta o desenvolvimento cognitivo”, enquanto “12,2% das crianças menores de 5 anos sofre de subnutrição crónica infantil”.
Esta situação tem-se vindo a agravar bastante nos últimos dois anos — coincidindo com a queda do crescimento económico, que foi o menor da década: 2,2%. A pandemia apenas acelerou e exacerbou este processo de empobrecimento das massas. Segundo pesquisa elaborada em agosto pelo Banco Mundial, “cerca de 30% dos entrevistados mencionou ter perdido o seu emprego em Maio, e cerca de 15% declarou o mesmo em Julho deste ano. 80% dos domicílios entrevistados reportaram uma diminuição do rendimento familiar. Destes, metade voltou a mencionar uma queda do rendimento em Julho. Um em cada cinco domicílios entrevistados teve um adulto a saltar uma refeição devido a falta de recursos ao longo deste mês; um em cada quatro teve um membro a não poder realizar uma consulta médica”.
O levantamento social dos últimos dias, provocado pelas manobras antidemocráticas e corruptas da classe dominante, tem as suas raízes nesta situação dramática. Este mal-estar crescente vai continuar. A questão é como organizar toda esta fúria com o plano de acção e o programa que os oprimidos necessitam para vencer.
O governo de transição: uma manobra da classe dominante para ganhar tempo e para que tudo se mantenha igual
A classe dominante tem sido capaz de ver claramente a razão deste levantamento das massas. O medo de que isto se transforme numa insurreição fez com que parte dos próprios representantes da burguesia que elevaram Merino tenham decidido sacrificá-lo em poucos dias. Pactuando com os seus adversários — também burgueses — que apoiavam Vizcarra, criaram um governo de transição “plural” que prepara novas eleições presidenciais para Abril de 2021.
Este governo de transição é presidido por Francisco Sagasti — um ex-economista do Banco Mundial e dirigente do Partido Morado (principal fonte de apoio parlamentar de Vizcarra nos últimos meses). Sagasti prometeu um governo com representação de “todas as sensibilidades” e criticou a corrupção e a casta política pelas políticas “aplicadas durante anos”, tentando estabelecer uma ligação com as massas. Chegou mesmo a convidar à sua tomada de posse familiares dos dois jovens manifestantes que foram vítimas mortais da repressão. Para dar uma maior credibilidade às suas palavras, o Ministério Público abriu uma investigação contra Merino, o seu chefe de gabinete e o Ministro da Defesa pela repressão contra as manifestações.
Inicialmente, Sagasti e o seu partido pareciam dispostos a aceitar a vice-presidência de um governo liderado por uma das 2 deputadas do Frente Amplio (FA) que rejeitaram a moção de censura. No fim, esta proposta não foi suficientemente consensual entre os sectores decisivos da classe dominante, que preferem que seja um dos seus representantes directos a liderar o governo de transição, usando as dirigentes do FA como ponto de apoio. Sagasti foi nomeado presidente com 96 votos a favor (muitos deles de deputados que apoiaram Merino), 26 contra e 0 abstenções. Como parte da sua fórmula, a deputada do FA Mirtha Vásquez foi designada Presidente do Parlamento.
Todas estas manobras procuram usar os dirigentes do FA para passar um verniz progressista sobre o novo governo e conter a agitação social enquanto se ganha tempo para tentar encerrar a crise política que manteve os principais partidos da classe dominante em desacordo desde a queda do último presidente eleito, o empresário Pedro Pablo Kuczinsky, em 2018.
Chega de pactos e colaboração com a burguesia! Por uma frente unida da esquerda com um programa socialista para vencer
Um dos aspectos mais significativos das mobilizações recentes é que a grande maioria daqueles que têm estado na rua não o tem feito apoiando Vizcarra e exigindo o seu regresso à presidência, mas sim para expulsar Merino e protestar, de um modo cada vez mais claro, contra toda a casta política burguesa, corrupta e desprestigiada. Mesmo aqueles que exigem a revogação da Constituição de 1993 não o fazem por ter ilusões numa nova constituição, mas porque identificam correctamente a actual constituição como uma estrutura jurídica que facilita as políticas capitalistas de cortes e ataques aos seus direitos e querem acabar com essas políticas capitalistas já.
Este instinto de classe das massas e a sua determinação em transformar a realidade enfrentando os responsáveis pela sua miséria contrasta com a actuação dos dirigentes reformistas da esquerda política e sindical. O seguidismo e a colaboração de classes com diferentes forças burguesas que tem sido levado a cabo pelos dirigentes do FA tiveram resultados nefastos, provocando diferentes deslocamentos e cisões e reduzindo o seu apoio de 18% e 2,9 milhões de votos em 2016 a pouco mais de 900,000 votos e 6% de apoio nas legislativas de Janeiro deste ano.
Já a segunda força de esquerda — a frente Juntos por Perú — teve 4,6% em Janeiro, ficando fora do parlamento por uma norma antidemocrática que exige um patamar mínimo de 5% para obter representação. Embora esta frente inclua parte da esquerda crítica do FA, os dirigentes do Juntos por Perú tampouco defendem na prática um programa qualitativamente diferente, nem têm intervindo decididamente no levantamento de massas dos últimos dias com uma política de independência de classe.
Por sua vez, os dirigentes dos partidos comunistas — PCP-Unidad e PCP-Patria Roja — mantêm uma influência sindical importante na principal central sindical, a CGTP, e num dos sindicatos com maior tradição de luta, o sindicato dos professores SUTEP, respectivamente. Mas nenhum deles tem utilizado a sua força para impulsionar a unificação de todo o mal-estar num apelo à greve geral por parte da CGTP e do SUTEP. Uma convocatória com estas características — que chamasse também a CUT (central sindical que participa na FA) a unir-se à luta — poderia ter tido um papel central na situação.
Com um programa que vinculasse o repúdio às manobras dos políticos burgueses corruptos com as reivindicações sociais — um plano massivo de investimento na saúde pública para combater a pandemia, a defesa da educação pública, pelo emprego, por habitação e salários dignos, etc. — as massas poderiam ter dado um grande passo em frente na luta pelas suas reivindicações. Se esta greve geral também tivesse sido levantada sobre a formação de assembleias operárias e populares, comités de acção nos bairros, centros de trabalho e de estudo para organizar, unificar e estender a luta, dar-lhe continuidade, um programa e objectivos claros — isto teria sido uma grande muralha para travar o passo e as intenções da classe dominante de descarrilar a luta contra a repressão e fazer as suas manobras desde cima — como vemos agora com o governo de transição.
Essa é a tarefa central de hoje: organizar e mobilizar nas ruas a indignação social massiva e oferecer-lhe um programa e um plano de acção concreto para vencer. Mas em vez disso, o slogan da CGTP é “Por uma Assembleia Constituinte e um governo de transição com participação popular”. Além de ser um escândalo, isto é um presente em bandeja de prata para burguesia! Significa agitar por um governo de colaboração de classes em que a presença da esquerda será utilizada para tirar as massas da rua e tentar enganá-las e desmoralizá-las com promessas, enquanto a classe dominante aplica as políticas de austeridade e os cortes que tem na sua agenda.
Mesmo no caso de a burguesia convocar qualquer tipo de Assembleia ou Convenção Constituinte — na qual a esquerda deveria participar massivamente como forma de atacar o regime — a tarefa das organizações e partidos da esquerda não deveria ser a de fomentar ilusões sobre os direitos democráticos e sociais se poderem resolver por meio de uma forma de parlamentarismo burguês como a Assembleia Constituinte. A experiência demonstrou o contrário incontáveis vezes! A tarefa da esquerda teria de ser a de participar energeticamente e usar esta campanha como megafone para os slogans que permitem ao movimento ir mais longe na sua luta para derrubar um sistema que nos esmaga: expondo a natureza de classe da democracia burguesa, das suas leis, constituições e parlamentos, denunciando os planos da classe dominante, defendendo um programa socialista e impulsionando a formação de comités de acção e assembleias para organizar a luta por um governo dos trabalhadores e do povo.
Hoje mais do que nunca os dirigentes dos partidos de esquerda que participam tanto na FA como no Juntos por Perú, na CGTP, CUT, SUTEP e nos demais sindicatos, as organizações feministas e os movimentos sociais devem romper com todas as armadilhas da colaboração de classes que lhes prepara a classe dominante e criar uma frente unida de esquerda. O objectivo não é procurar acordos ou pactos com formações burguesas — como fizeram confluências anteriores, com resultados nefastos — mas antes lutar por um programa socialista que unifique todas as reivindicações democráticas e sociais das massas e defenda a nacionalização dos bancos, das grandes empresas e da terra para as colocar sob a gestão direta dos trabalhadores e do povo e planificar diretamente a economia para satisfazer as necessidades sociais.
A tarefa central para os militantes e activistas revolucionários é intervir dentro do movimento de massas propondo este programa e construindo uma organização revolucionária que possa ganhar a liderança do movimento e levá-lo à vitória.
Notas:
1. Esta Constituição, que ainda hoje perdura, foi ditada pela oligarquia e pelo imperialismo, eliminando uma série de garantias democráticas e sociais que continha a constituição de 1979, aprovada sob a influência da luta de classes que o Peru viveu nessa década. Vários artigos que estabeleciam restrições ao despedimento, à privatização de sectores estratégicos ou aos investimentos estrangeiros foram eliminados, concedendo liberdade de acção à burguesia nacional e internacional.
2. A rejeição, por parte das massas trabalhadoras e populares, da repressão, do saque aos recursos nacionais, da corrupção e ataques aos direitos democráticos e sociais que caracterizaram o fujimorismo, e o desagrado com a continuação dessas mesmas políticas — com pequenas modificações pelos governos posteriores — expressou-se em diferentes focos sociais nos últimos vinte anos: por exemplo, na vitória de Ollanta Humala em 2011, que prometeu profundas mudanças políticas e sociais e acabou por trair as expectativas populares, ou com os 2,9 milhões de votos obtidos pelo FA na primeira volta das presidenciais de 2016.
A ausência de um programa socialista por parte dos dirigentes do FA que unificasse as reivindicações democráticas e sociais mais sentidas pelos trabalhadores, vinculando-as à luta pela transformação da sociedade, possibilitou que parte da rejeição social do fujimorismo e do descontentamento com os partidos burgueses tradicionais fosse capitalizada pela candidatura populista PPK (Peruanos por el Kambio) da qual Vizcarra fazia parte.