O golpe organizado pela oligarquia peruana e o imperialismo estado-unidense desencadeou uma insurreição. Enquanto escrevemos estas linhas [18/01/2023], centenas de milhares de jovens, trabalhadores e camponeses marcham para Lima exigindo a renúncia da golpista Boluarte e a dissolução do Parlamento dominado pela direita e extrema-direita que a apoia.
Depois de perpetrar um sangrento massacre com quase 60 trabalhadores e jovens mortos e centenas de feridos pelo exército e pela polícia, o governo usurpador decretou recolher obrigatório na região sul de Puno e o estado de emergência em várias áreas do país, incluindo a capital.
As massas resistem heroicamente
Como explicamos em artigos anteriores, o governo estado-unidense de Joe Biden, que foi decisivo na organização deste golpe, em vez de escolher como face visível do mesmo extremistas de direita como Keiko Fujimori, José Williams (presidente do parlamento) ou o presidente da câmara de Lima, o fascista López Aliaga, usou Boluarte, vice-presidente do próprio Castillo.
Ao colocar esta renegada da esquerda à frente do governo, esperava não repetir fiascos como os da Venezuela e da Bolívia, e disfarçar de “democrático” um governo fantoche ao seu serviço. Apoiando-se na social-democracia internacional, tendo à frente o presidente espanhol Pedro Sánchez e o chileno Gabriel Boric, apresentaram Boluarte como o garante da democracia contra o "golpista de esquerda Castillo". Era um bom plano, mas a revolta popular frustrou-o.
Esta montagem só enganou alguns líderes da nova esquerda reformista internacional (e até do próprio Peru), que responderam pedindo a Boluarte “diálogo” e “medidas sociais”. As massas entenderam imediatamente do que se tratava e saíram às ruas, com marchas e greves de massas, exigindo a saída do governo golpista e do Parlamento e enfrentando heroicamente a brutal repressão.
A 3 de janeiro, a classe dominante, depois de semanas denunciando "as ações de grupos terroristas", organizou mobilizações "pela paz" e "contra a violência" tentando agrupar as bases da contra-revolução. O resultado foi um fracasso terrível. A greve por tempo indeterminado contra o golpe e as manifestações de massas atingiram um nível superior, experimentando um salto qualitativo após o brutal assassinato de 25 pessoas em Juliaca (Puno). A força do levantamento foi tal que a raiva da população materializou-se numa marcha sobre Lima e em manter a greve nacional até a vitória.
Dois caminhos,um objectivo: derrotar a revolução
Os governadores das regiões reuniram-se a 12 de janeiro para exigir que Boluarte convoque imediatamente eleições como única forma de "acalmar a situação". Um dos principais veículos da classe dominante, o jornal La República, depois de ter justificado e apoiado abertamente o golpe, deu uma volta de 180º proclamando nos seus editoriais: “acabem com a matança”, “eleições já” e pedindo “reformas constitucionais”. Este mesmo jornal publicou uma pesquisa do Instituto de Estudos Peruanos (IEP), um think tank privado em cujo financiamento participam diferentes empresas e multinacionais, segundo a qual 69% da população apoia a convocação de uma Assembleia Constituinte já.
Boluarte e o primeiro-ministro Otárola (imposto pela embaixada dos EUA) até agora rejeitaram qualquer proposta que signifique deixar o governo antes de 2024, argumentando que a renúncia levaria o país à "anarquia e ao desgoverno".
Como em outras crises revolucionárias, uma parte da classe dominante teme que ceder à pressão das massas as encoraje a ir ainda mais longe e que a situação fuja completamente de seu controlo. Outra começa a duvidar que tenham força suficiente para apaziguá-las com a repressão e teme que seguir esse caminho terá o efeito oposto e pode acabar na tomada do poder pelas massas em luta. Diante do que aconteceu no Chile e noutros países, este setor propõe-se cada vez mais a convocar eleições e, inclusive, já começou a falar na possibilidade de organizar uma Assembleia Constituinte.
Neste momento, as reivindicações para fechar o odiado Parlamento, para que saiam todos os corruptos e assassinos, e para elaborar uma nova constituição para substituir a elaborada durante a ditadura de Fujimori, têm um apoio maciço. Mas devemos entender que o que permitiu as massivas privatizações, a destruição dos serviços públicos e o saque das riquezas do país, a propagação da miséria, a opressão e a repressão que o povo peruano sofreu durante décadas, é a existência do regime capitalista: a ordem social que garante o poder dos grandes bancos, das multinacionais, da oligarquia fundiária e da casta militar.
A ideia de que uma Assembleia Constituinte, ou seja, outro Parlamento burguês, possa resolver os problemas que esta insurreição colocou sobre a mesa, como propõem os dirigentes das organizações políticas e sindicais de esquerda, é um beco sem saída.
A Assembleia Constituinte é uma estratégia à qual as classes dominantes latino-americanas recorreram em diferentes momentos para ganhar tempo e conter o impulso revolucionário das massas. Não é mais do que uma forma eficaz de neutralizar a possibilidade de transformação da sociedade por meio de eleições parlamentares novamente controladas pelas mesmas instituições corruptas e ao serviço dos capitalistas.
Como aconteceu no Chile, eles usam os debates na constituinte enquanto a propriedade da terra, das fábricas, dos recursos minerais, do petróleo e do gás, bem como o controlo do Estado, permanecem firmemente nas mãos dos mesmos de sempre: os capitalistas e as multinacionais. Um jogo habilidoso para deter, dividir e desmoralizar os oprimidos e, simultaneamente, preparar uma nova ofensiva contra-revolucionária quando as melhores circunstâncias ocorrerem.
Por uma Assembleia Revolucionária para tomar o poder, expropriando a oligarquia! Pelo Socialismo!
A situação no Peru está a chegar a um ponto crítico. A insurreição encostou às cordas o governo assassino de Boluarte. A derrota do golpe e a tomada do poder pelas massas trabalhadoras é uma possibilidade real. Para isso, é fundamental unificar todos os comités, assembleias populares e organizações de luta que surgiram através da eleição de delegados ao nível local, regional e nacional, formando uma Assembleia Nacional Revolucionária dos trabalhadores e oprimidos.
A eleição desta assembleia pelos métodos da democracia dos trabalhadores, permitiria erguer um poder alternativo ao representado pelo governo golpista e o Parlamento, ou a qualquer outro governo capitalista ou Parlamento burguês que tente substituí-lo, como a Assembleia Constituinte. Uma tarefa urgente e inevitável das organizações de luta que as massas estão a criar em cada cidade é organizar a autodefesa armada e convocar as tropas — formadas por filhos de famílias trabalhadoras e camponesas — para romper com os oficiais corruptos e assassinos ao serviço da oligarquia e aderir à insurreição.
Outra tarefa fundamental dos comités e assembleias é estender a greve geral por tempo indeterminado e ocupar as principais empresas e latifúndios. Só a expropriação das principais alavancas económicas, dos bancos, das empresas, das minas e das explorações de gás e petróleo, sob o controlo democrático dos trabalhadores, pode garantir condições dignas de vida ao povo e fazer face à actual catástrofe.
Uma Assembleia Revolucionária com este programa e plano de luta é a única forma de estabelecer um governo dos trabalhadores e desmantelar o aparelho de Estado forjado pela classe capitalista que massacra o povo.
As massas latino-americanas demonstraram, país após outro, a sua força e vontade de ir até o fim. Uma vitória num país espalhar-se-ia como fogo para os restantes. Mas alcançar a vitória requer um partido revolucionário com influência e armado com o programa do socialismo internacionalista. Construir este partido no Peru e no mundo é a tarefa chave do momento.