Que programa deve defender a esquerda revolucionária?

A situação política na Venezuela está marcada neste momento por uma convocatória de eleições legislativas para 6 de Dezembro por parte do governo de Nicolás Maduro, um aprofundamento das políticas capitalistas desse mesmo governo e um agravamento ainda mais dramático do colapso económico que o país sofre desde há 6 anos.

Uma economia paralisada, o aumento exponencial do desemprego e da pobreza, a hiperinflação descontrolada, claros elementos de descomposição social... Este é o cenário, e a pandemia e a crise económica em que vive o sistema capitalista a nível mundial estão a gravá-lo. A tudo isto se junta o criminoso bloqueio económico e as sanções impostas pelo imperialismo estado-unidense com o objectivo de asfixiar as finanças públicas e, em particular, a empresa petrolífera estatal PVDSA, que é responsável por 97% das exportações.

Segundo a Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL, um organismo regional da ONU), o conjunto das economias da América Latina cairá 9,3% em 2020, o que aumentará o número de pobres de 185 para 231 milhões de pessoas, um aumento de mais de 80%. A pobreza extrema passará de 68 para 96 milhões, afectando 15,5% da população total. Trata-se de um desastre económico e social cujos efeitos marcarão toda a década. O país que experimentará o maior colapso, segundo todas as previsões, será a Venezuela, podendo oscilar entre os -13%, estimativa do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG) em Abril — no início da pandemia —, e os -26%, calculados mais recentemente tanto pelo FMI como pelo CEPAL. Este retrocesso somar-se-ia à contracção do PIB que, segundo os últimos dados oferecidos pelo Banco Central da Venezuela em 2017, era já nesse momento de 52%.

Benefícios para os empresários, cortes e fome para os trabalhadores e o povo

Esta depressão prolongada aumentou vertiginosamente a desigualdade e a pobreza. Ambas foram reduzidas de forma muito significativa sob os governos de Hugo Chávez, mas, segundo dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 2005, os 20% mais ricos da população Venezuelana acumulavam 45,1% do rendimento nacional, enquanto os 20% mais pobres só recebiam 5,7%. O governo deixou de publicar estatísticas, mas é evidente que ambos os indicadores pioraram escandalosamente nos anos seguintes.

A política do governo de Nicolás Maduro consiste em liquidar as medidas progressivas de aumento do investimento público, redistribuição de rendimentos e reformas sociais aplicadas pelos governos de Chávez, apostando em medidas capitalistas de ajuste. Ainda que continue a falar publicamente em “socialismo” e “revolução”, isso são palavras vazias. O seu objectivo é estabilizar um modelo de capitalismo de Estado. Para isso está a dar passos cada vez mais decididos para o estabelecimento de um regime bonapartista burguês por intermédio da cúpula militar, cujo poder político e económico não pára de crescer — neste momento, esta cúpula controla directamente dezenas de empresas.

Enquanto as condições de vida do povo se afundam, a nova burguesia, surgida do próprio aparelho estatal (a chamada “boliburguesia”), a velha oligarquia e as multinacionais estão a encher os bolsos com ajudas governamentais, isenção de impostos e de pagamentos à segurança social, pagamento das despesas de empresas privadas pelo estado para supostamente “fazer frente à crise”, despedimentos massivos, entrega de empresas públicas a empresários privados...

A dolarização impulsionada pelo governo como parte da estratégia de estabilização capitalista está a significar um fiasco para o povo. Inundou o mercado de dólares, mas isso apenas está a aumentar as desigualdades sociais. Medidas de curto prazo, tais como reduzir a liquidez monetária para supostamente controlar a inflação, deterioraram ainda mais as condições de vida das massas. Os preços dos alimentos aumentaram impiedosamente, agora dentro de uma concorrência entre o preço do dólar oficial, oferecido pelo Banco Central venezuelano, e o paralelo. Entretanto, nós, os trabalhadores, continuamos a receber um salário de fome: um a dois dólares mensais, mais um subsídio do Estado de quatro dólares. Este salário representa 2,5% do gasto médio mensal (200 dólares) que diferentes estudos consideram ser o necessário para pagar um cabaz básico.

A magnitude da crise reflecte-se dramaticamente na principal indústria nacional. A produção petrolífera caiu ao nível mais baixo desde 1945. Diferentes estudos situam actualmente essa produção nos 374.000 barris diários, menos 57% do que o previsto, que já representava uma queda considerável em relação aos anos anteriores. Foram encerrados poços e paralisou-se uma boa parte da produção, em especial a refinação. Isto levou a que a Venezuela, um dos principais exportadores mundiais de petróleo, sofra carências no abastecimento de gasolina, vendo-se obrigada a importar do Irão e de outros países.

A crise da PDVSA, que resulta em parte do bloqueio das suas finanças pelos EUA, mas resulta também da corrupção e do abandono de investimentos durante anos às mãos da burocracia, está a significar cortes sem precedentes nos rendimentos e direitos de dezenas de milhares de trabalhadores do sector petrolífero. Este retrocesso junta-se aos que já arrastam os restantes sectores da classe operária, intensificando ainda mais a crise económica e o descontentamento.

Outros exemplos da política governamental de acordos com os empresários e cortes para os trabalhadores são os créditos bonificados fraudulentos a empresários agropecuários e os despedimentos e flexibilização laboral impostos em diferentes empresas como o beneplácito do governo. Um exemplo gritante são os horários intermináveis, os baixos salários e a ausência de sindicatos nas cadeias de supermercados HiperLider ou Megassi. A Megassi, uma nova cadeia impulsionada por empresários iranianos com o apoio do governo, beneficiou da privatização por parte deste dos estabelecimentos emblemáticos da Rede de Abastecimentos Bicentenário (RABSA) nacionalizada em 2010 por Chávez.

O fracasso da estratégica de Trump e as divisões da direita

O descontentamento com a crise e as políticas governamentais tende a reproduzir condições potencialmente favoráveis para a estratégia de assédio e derrube do governo pela oposição de direita. Ao mesmo tempo, os partidos que integram essa oposição são tão corruptos e parasitários, os seus dirigentes aparecem tão integrados com o imperialismo estado-unidense, que até agora têm perdido todas as suas oportunidades. Mas isto não quer dizer que não continuem a tentar.

O golpista de extrema-direita, Juan Guaidó (apoiado pelo imperialismo estado-unidense e os governos capitalistas mais reaccionários do continente) continua a proclamar-se “presidente interino” da Venezuela e conta com o reconhecimento oficial de 60 países (entre eles os governos da União Europeia (UE), incluindo aqueles que se proclamam de esquerda, como o espanhol e o português). Contudo, o desprestígio de Guaidó na Venezuela é tal que não conseguiu organizar uma única mobilização desde há mais de um ano.

As suas declarações apoiando o bloqueio económico ou pedindo a Trump que intervenha militarmente na Venezuela e a implicação de vários dos seus colaboradores em casos de corrupção ou no fiasco da “Operação Gedeón” (a tentativa fracassada de invasão militar organizada em Maio por opositores vinculados a Guaidó com mercenários e agentes estado-unidenses) fez estalar publicamente as divisões que já se arrastavam na direita venezuelana.

Reflectindo o fracasso da estratégia golpista de Washington, Henrique Capriles Radonski, um dos principais líderes da oposição, declarou publicamente que a referida estratégia está esgotada e exigiu uma mudança. Capriles registou uma lista com vista a uma possível participação nas eleições parlamentares e tem defendido a negociação das condições dessa participação com o governo, tendo a UE como mediadora e garante.

Radonski é um oligarca igualmente reaccionário e submisso ao imperialismo, tal como Guaidó ou como o mentor político deste: o fascista Leopoldo López. Nem sequer coloca a sua participação nas legislativas como algo certo. O seu objectivo a curto prazo é reanimar a base opositora (decepcionada depois de ver fracasso após fracasso das tentativas golpistas de Guaidó e López) e, inclusive, penetrar em sectores desmoralizados das massas que, durante anos, votaram Chávez. Para isso, publicamente, marca distância de Trump e Guaidó e pede apoio à UE para exigir a Maduro toda uma série de concessões e contrapartidas. O seu objectivo final é que isso sirva para, quando tiver a oportunidade, por via eleitoral ou qualquer outra, organizar um novo assalto ao poder.

A negociação, as contradições interimperialistas e o declínio estado-unidense

Com a convocatória de eleições legislativas, Maduro pretende aproveitar a debilidade e divisão da oposição para recuperar o controlo da Assembleia Nacional, ganha pela direita nas eleições legislativas de Dezembro de 2015. Ao mesmo tempo espera que um acordo com sectores da burguesia e do próprio imperialismo em relação às eleições possa facilitar o levantamento ou flexibilização das sanções e dar oxigénio à economia.

Como parte desta táctica, libertou 100 presos ligados à oposição de direita e fez novas concessões aos capitalistas. Não obstante, ainda que a ofensiva golpista desencadeada em Janeiro de 2018 por Trump, apoiando-se em Guaidó, tenha fracassado, ainda que existam vozes dentro da direita defendendo uma viragem táctica e sectores da burguesia nacional e internacional (começando pelos imperialistas chineses e russos, principal apoio de Maduro) tão pouco vejam com maus olhos algum tipo de acordo para baixar as tensões, o principal factor que empurrou o imperialismo estado-unidense a adoptar a estratégia golpista mantém-se.

A ofensiva para derrubar o governo venezuelano e substituí-lo por um fantoche de Washington não obedece ao carácter ou desejo pessoal de Trump. Faz parte da estratégia global do imperialismo estado-unidense para fazer frente ao seu declínio, travar o avanço chinês na América Latina e retomar o controlo directo da Venezuela que, apesar do colapso actual da sua produção, continua a ter uma das maiores reservas comprovadas de petróleo do planeta.

Num contexto de crise profunda do capitalismo mundial e de luta interimperialista por cada palmo do planeta, a pressão para que Washington aumente a sua agressividade na América Latina e na Venezuela tenderá a aumentar, como já está a mostrar a imposição dos seus peões (vinculados aos sectores que defendem uma política externa mais agressiva) em instituições regionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA) ou o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Mesmo que Biden arrebata a presidência a Trump, os interesses estratégicos da burguesia estado-unidense (que os dirigentes do Partido Democrata defendem com tanto afinco como os Republicanos) empurram ainda mais para uma intensificação de todas estas contradições.

A única coisa que pode derrotar a exploração imperialista (venha de Washington, Pequim ou Moscovo) e a ofensiva capitalista contra o povo é a mobilização nas ruas e a rejeição massiva dos seus planos. E isto tanto na América Latina como nos próprios Estados Unidos da América, onde a mobilização das massas e o questionamento do sistema está a crescer espectacularmente, como mostra o recente levantamento social contra o racismo e a violência policial e outros movimentos de massas nos últimos anos.

Descontentamento na esquerda e surgimento da Aliança Popular Revolucionária

A profundidade do colapso económico criou um ambiente de dispersão, desmoralização e luta pela sobrevivência entre as massas. Isso debilitou o movimento operário e popular. Este enfraquecimento tem vindo a agudizar-se devido às políticas repressivas do governo. A resposta de Maduro e dos dirigentes do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV) ao crescente descontentamento da esquerda face às suas políticas está a ser aumentar a repressão e criminalizar os protestos sociais. Durante os últimos meses temos visto o encarceramento de vários dirigentes sindicais e líderes sociais cujo “delito” é lutar pela defesa das conquistas alcançadas pelos trabalhadores e pelo povo antes e durante os governos de Hugo Chávez, temos ainda visto agressões políticas e institucionais contra camponeses e operários em luta, ameaças, censura mediática, expulsões arbitrárias de militantes de base do PSUV que são críticos dos seus dirigentes...

A repressão combina-se com medidas clientelares como a utilização das caixas de alimentos — CLAP [Comité Local de Abastecimento e Produção] —, que o governo fornece a preços baratos, ou de subsídios para complementar os rendimentos. Todos estes factores, a que agora se junta o temor de contágio pela extensão da pandemia, são muito reais e dificultam objectivamente o desenvolvimento da mobilização operária e popular e a construção de uma esquerda revolucionária de massas. O único modo de os enfrentar é com um programa e um plano de luta que reconheça claramente estes factores, explique as suas causas e apresente uma política verdadeiramente socialista e um programa revolucionário para lhes fazer frente.

O mal-estar com as políticas governamentais encontrou expressão política à esquerda durante os meses de Julho e Agosto deste ano com a criação da Aliança Popular Revolucionária (APR), uma frente criada por várias forças políticas que apoiaram, desde o seu início, a revolução bolivariana: Partido Comunista da Venezuela (PCV), Pátria para Todos (PPT), Unidade Popular Venezuelana (UPV), Partido Revolucionário do Trabalho (PRT), entre outros.

Esta alternativa surge no contexto das inscrições de candidatos a deputados para as legislativas de 6 de Dezembro. A APR propôs-se apresentar candidaturas separadas do PSUV, definindo-se como uma alternativa que rejeita as políticas anti-operárias, coercivas e capitalistas do governo, ao mesmo tempo que define uma posição de rejeição absoluta às sanções e agressões do imperialismo e da direita.

O governo recorreu ao Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) para intervir judicialmente em vários dos partidos que integram a APR, incapacitando eleitoralmente os seus dirigentes e impondo outros, a fim de manter o controlo das listas eleitorais a seu favor. Em vários casos utilizou a polícia política para amedrontar estes dirigentes e as bases que os apoiam.

O mais provável é que, se a APR continuar, estes ataques antidemocráticos se intensifiquem. A burocracia do PSUV e do Estado fará de tudo para debilitar, desprestigiar e esmagar a APR. Para responder a essa repressão a APR deve organizar-se não como uma ligação meramente eleitoral entre as cúpulas partidárias (tal como estão a defender os dirigentes dos partidos que a integram) mas como uma frente unida de luta, impulsionando comités e assembleias de jovens, trabalhadores, camponeses, nos locais de trabalho e nos bairros que tomem todas as decisões e apresentem um programa, um plano de acção que faça confluir todas as reivindicações operárias e populares.

Todos os dirigentes e candidatos da APR devem ser eleitos e destituídos pelas bases e estar submetidos ao seu controlo a todo o momento. Só assim evitaremos os desvios, a burocratização e a corrupção que vimos desenvolver-se no PSUV e noutras organizações de esquerda durante anos.

Só um programa genuinamente socialista, anti-capitalista e anti-burucrata pode acabar com o sofrimento do povo.

A Izquierda Revolucionaria tem muito claro em que lado da barricada se deve estar. Por isso, participaremos na primeira linha na construção da APR, defendendo este programa e plano de luta:

1. Organizar assembleias e reuniões em todos os locais de trabalho e bairros com os trabalhadores e comunidades para denunciar as manobras demagógicas de Guaidó, Capriles e demais dirigentes da direita, assim como o criminoso bloqueio e ofensiva do imperialismo, ao mesmo tempo que organizamos a luta contra a burocracia corrupta que fala de socialismo, mas aplica medidas capitalistas. Estas assembleias devem servir para recolher as reivindicações dos diferentes sectores da classe operária e do povo e unificá-las num programa que sirva de base para reconstruir o movimento operário e popular e organizar a luta baseando-nos nas nossas próprias forças.

2. Formar comités de acção e auto-defesa independentes do governo, em cada local de trabalho e bairro para lutar contra qualquer tentativa de golpe de estado, ofensiva da direita ou da extrema-direita nas ruas, mas também para mobilizar contra qualquer detenção arbitrária ou repressão por parte da burocracia.

3. Coordenação local, regional e nacional dos ditos comités e que a unificação dos mesmos sirva de base para construir a APR com os métodos da democracia operária.

4. Este programa deve defender claramente a nacionalização de todos os bancos, da terra e das grandes empresas sob administração directa dos trabalhadores e do povo, mediante delegados elegíveis e revogáveis a todo o momento, que recebam o salário de um operário qualificado e estarem unificados a nível local, regional e nacional. Esta é a única maneira de destinar os recursos, que geramos com o nosso esforço, ao povo trabalhador, à saúde, para combater eficazmente a pandemia, à educação, a garantir os salários, pensões e condições laborais dignas.

5. Também permitirá desenvolver uma verdadeira reactivação produtiva, arrancando a gestão das empresas, tanto privadas como públicas, actualmente em crise, paralisadas ou encerradas pela corrupção e o parasitismo dos capitalistas e burocratas, para colocá-las sob a administração directa dos trabalhadores e do povo e planificar democraticamente a economia.

Um plano com estas características, unido a um apelo de solidariedade internacionalista aos trabalhadores e movimentos de esquerda de todo o mundo contra a agressão imperialista e também contra qualquer coerção ou repressão anti-democrática do aparelho estatal e do governo é o único caminho para derrotar definitivamente Guaidó e o resto dos oligarcas venezuelanos (da velha e da nova oligarquia), o imperialismo e a burocracia.

Só assim podemos recuperar a moral das massas, reconstruir o movimento sindical e popular e a esquerda sob bases firmes, impedir a vitória da reacção venha de onde vier e evitar um resultado trágico. Hoje mais do que nunca: só o povo pode salvar o povo!

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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