As mobilizações de dezenas de milhares de jovens exigindo a liberdade de Pablo Hasél provocaram um terramoto político. As imagens de extrema violência policial em Barcelona, Madrid, Valência e outras cidades foram ocultadas após uma estrondosa campanha de criminalização que vem de longe.
A juventude excluída, empobrecida, submetida ao chicote do desemprego e da precariedade, à ausência de futuro, é colocada pelo sistema e pelos seus partidos no centro do alvo. A repressão é a única solução oferecida por Pedro Sánchez, cedendo pela enésima vez perante um aparelho de Estado que permanece alimentado por fascistas.
A brigada mediática lançou uma pilha de comunicados de guerra que fazem lembrar os boletins da Brigada Político-Social1: os antissistema, os independentistas, os terroristas, os violentos, os delinquentes… incendeiam as nossas ruas e acabam com a nossa democracia. Todos os dias e a todas as horas em televisões, rádios e jornais, oferecendo uma imagem completamente manipulada do ocorrido.
Paralelamente, esse mesmo poder mediático, de forma unânime, advertiu Pedro Sánchez para que ponha ordem no seu Governo e corte a cabeça a Pablo Iglesias de uma vez por todas. Fortalecer a governabilidade capitalista reconstruindo o PP e resgatando os restos do “naufrágio laranja”2, parece ser uma opção que ganha a cada dia mais peso entre amplos setores da burguesia.
É a luta de classes
A luta de classes voltou à cena com uma intensidade surpreendente. A 14 de fevereiro a direita espanholista sofria um golpe inesquecível na Catalunha: o colapso do Ciudadanos (Cs) e a sua aniquilação política, e os péssimos resultados de um PP que vive estupefacto perante a ultrapassagem do Vox, não são uma notícia menor. Para o IBEX 35 vai por água abaixo uma das suas operações políticas de maior envergadura, enquanto o partido tradicional da direita é presa de uma conturbação monumental logo quando a estabilidade é mais necessária para impor a agenda de cortes.
A viragem à esquerda fica clara também nas manifestações e concentrações que esta semana encheram as ruas. Os meios de comunicação dos bancos e os poderes instituídos veem nelas a mão pérfida de “agitadores” profissionais de extrema-esquerda, e mostram-se indignados porque a ordem e a lei foram violadas. Que cínicos! Eles sabem muito bem que a violência foi provocada pela polícia, com a sua atitude agressiva e abusiva, sem olhar a meios para atacar os jovens que protestavam de maneira pacífica.
O que afirmamos pode ser corroborado por dezenas de vídeos que enchem as redes sociais. Em Madrid, onde os companheiros da Izquierda Revolucionaria e do Sindicato de Estudiantes tiveram um papel muito ativo na concentração de quarta-feira, dia 17, na Porta do Sol, sentimo-lo na pele. Meia hora antes do início da mobilização, a praça aparecia cercada por um destacamento de viaturas e de polícia de choque que nada tinha que invejar à de um Estado policial. A sua atuação hostil confirmou-se desde o primeiro momento, exigindo de más maneiras a dezenas de pessoas a documentação e revistando mochilas numa atitude intimidatória.
Durante o protesto, que decorreu num ambiente muito combativo e absolutamente pacífico, fomos cercados por cinco cordões policiais que bloquearam os acessos a uma praça onde estavam cerca de 10.000 jovens. Quando tinha apenas passado uma hora, uma barreira de polícia de choque armada até aos dentes começou a carregar quando uma fração dos participantes tratavam de dirigir-se à rua Carretas para continuar o protesto. A partir daí o que sucedeu é conhecido: grupos de polícias envolveram-se à paulada, como nos melhores tempos do final do franquismo, com jovens de 17, 18 e 19 anos, muitos deles mulheres, devido ao único delito de se manifestarem a favor da liberdade de expressão e de um rapper que foi preso por dizer que Juan Carlos I é um ladrão e um corrupto.
Pancadas nas pernas, nas costas, na cabeça, de forma indiscriminada, sem que tivesse havido qualquer provocação, e também a jornalistas e simples transeuntes que se encontravam no lugar. Agentes secretos infiltrados, incitando o enfrentamento e logo puxando dos seus bastões extensíveis para agredir e deter jovens isolados, e recuar cobardemente protegidos pela polícia de choque. Evidentemente que a fúria transbordou e a violência policial provocou uma resposta: queima de alguns contentores e quebra de vitrinas. Por acaso isto é algo de novo?
Visto o ocorrido em Madrid, em Barcelona, em Valência… temos de perguntar-nos: quem decidiu que mobilizações pacíficas tivessem de acabar assim? A resposta é clara: as forças policiais e os responsáveis políticos que traçaram esta estratégia repressiva.
“Numa democracia plena como é Espanha, a violência é inadmissível”
Pedro Sánchez encerrou muito explicitamente o seu balanço sobre estes acontecimentos: “Numa democracia plena como é Espanha, a violência é inadmissível”. Palavras importantes, carregadas de mentiras. Numa democracia capitalista como a que temos, ao serviço dos grandes poderes económicos e vigiada por um aparelho de Estado herdado do franquismo, a violência é claramente admissível e é praticada sistematicamente para defender os interesses da classe dominante.
Quando a 1 de outubro de 2017 mais de dois milhões de catalães exerceram o seu direito a decidir e votaram a favor da república, o Governo do PP, apoiado pelo PSOE, Cs e Vox, deslocou milhares de guardas civis e polícias para empregarem a máxima violência contra cidadãos pacíficos que queriam pôr um papel numa urna. Entraram a partir tudo nas mesas de voto, intoxicando e lançando balas de borracha, disparando contra famílias, idosos, homens, mulheres e adolescentes. Aquela violência motivou uma greve geral dois dias depois, a 3 de outubro. No mesmo dia, Felipe VI compareceu publicamente para deixar claro que não iam tolerar que o povo da Catalunha se expressasse democraticamente e em liberdade.
Imediatamente vieram os julgamentos e o encarceramento dos dirigentes independentistas. Nestes anos, as violências policial e judicial não deram tréguas. Os oito jovens de Altsasu condenados a penas de prisão monstruosas por uma briga de bar, iniciada por dois guardas civis à paisana, deixou mais do que claro como funciona o aparelho de Estado. Assim como as sentenças escandalosas relativas à violação coletiva de La Manada, que desencadearam mobilizações massivas, e o rasto de julgamentos e condenações contra rappers, tweeters, cantores e artistas, que fizeram do Estado espanhol o país com mais condenados por delitos de opinião nas “democracias ocidentais”. A perseguição de sindicalistas e de ativistas de esquerda, como Alfon, que foram multados e sentenciados a penas de prisão por exercerem os seus direitos de expressão e de manifestação, não deixaram de acontecer.
Simultaneamente, a completa impunidade gozada pelos fascistas é um facto indiscutível. Pedro Sánchez fala-nos de que numa democracia plena como é Espanha a violência é inadmissível. Mas oculta cuidadosamente que mais de 200 militares, entre os quais se encontram generais e altos oficiais, assinaram um manifesto apelando a um golpe de Estado para defender a monarquia, que muitos destes militares se pronunciam publicamente sobre fuzilar entre 24 a 26 milhões de espanhóis para “solucionar o problema”, que na polícia as declarações de caráter fascista se multiplicam, proclamadas pelo principal sindicato policial, Jupol, próximo ao Vox, e que o representante do Governo de Madrid (PSOE), sem ir mais longe, legalizou uma manifestação de nazis para exaltar o holocausto.
A crise do capitalismo espanhol está a expressar-se com severidade. A violência sistémica exercida contra milhões de pessoas não importa minimamente a Pedro Sánchez e aos dirigentes do PSOE. Que o desemprego supere os cinco milhões, que as filas de fome encham as nossas cidades, que os imigrantes morram a tentar alcançar a fronteira, que a juventude espanhola sofra da taxa de desemprego e de insucesso escolar mais elevadas da Europa, que lhe seja negada a possibilidade de se tornar independente, de aceder a um emprego e a uma habitação digna, tudo isso, são pormenores. Isso não é violência, chama-se democracia.
E todos estes eventos, conjuntamente com outros escândalos como a fuga do rei emérito, esse Borbón corrupto que desfruta de um refúgio dourado com o seu saque em segurança, provocam que a tensão entre os parceiros de Governo se transforme numa crise aberta. Que Pablo Iglesias denuncie que não vivemos uma normalidade democrática, o que não só é certo como em todo o caso fica muito aquém, é visto como uma afronta intolerável. Que Pablo Echenique ponha um tweet a solidarizar-se com os jovens antifascistas, ou que Rafa Mayoral questione a versão da violência dada pelos meios de comunicação, é o sinal para voltar a puxar da faca e exigir a Pedro Sánchez que corte a cabeça de Pablo Iglesias e a coloque numa bandeja de prata.
Como assinalamos em vários materiais, a burguesia não queria um Governo de coligação PSOE-Unidas Podemos. Não era a sua opção. Mas uma vez que as suas manobras para tramar uma aliança entre o PSOE e o Cs fracassaram, e não há que esquecer que Pedro Sánchez as apoiou, puseram ao mau tempo boa cara. No Governo que se formou em janeiro de 2020, o grande capital colocou os seus peões em cargos estratégicos, começando pelo Ministério de Economia dirigido por Nadia Calviño, e empreenderam novamente a colaboração com o partido que sempre lhes prestou grandes serviços.
Após o estalido da pandemia, as decisões estratégicas deste Governo foram aplaudidas pelo IBEX 35, pela CEOE (Confederação Espanhola de Organizações Empresariais), pela grande banca e pela UE. Não era para menos. Mais de 200.000 milhões de euros foram mobilizados para salvaguardar os monopólios e multinacionais espanholas, enquanto que ao “escudo social” dedicaram migalhas irrisórias que não resolvem nada. A contra-reforma laboral mantém-se e não será derrogada. A lei Mordaça continua viva e de boa saúde. E novas contra-reformas, como as das pensões, estão na ordem do dia.
Manter o Podemos no Governo é útil para a burguesia sempre que e quando serve para impor a paz social e dar um revestimento de “progressismo” às políticas capitalistas do PSOE. A classe dominante quer Pablo Iglesias a desempenhar um papel de comparsa, cobrindo a ala esquerda da social-democracia tradicional para ao mesmo tempo desgastá-lo, desacreditá-lo e arrastá-lo na lama.
Há quem interprete os últimos discursos de Pablo Iglesias e as declarações de Echenique ou Mayoral como oportunismo. Porém, é inegável que reflitam a pressão da luta de classes e a certeza que abre caminho entre não poucos dirigentes do Podemos, de que a hora da verdade se aproxima.
Se o Podemos legitima estas políticas anti-sociais, pró-capitalistas e repressivas, se apoia os ajustes e cortes que andam de mão dada com as ajudas europeias, se deixa o PSOE fazer, como tem acontecido nestes meses com a gestão infame da pandemia, sem meter a mão nos ricos, nos banqueiros, na saúde privada… o seu destino está traçado. É o momento do Podemos, e de Pablo Iglesias, não só de responderem com firmeza nos discursos, mas também de darem um passo em frente e romperem com esta situação insustentável passando a uma oposição contundente de esquerda.
Não são poucos os dirigentes do UP que verão esta proposta com horror. Alguns ligados ao aparato do PCE e do IU, como Enrique Santiago, desempenharam um papelão esta semana defendendo a polícia e criticando a mobilização juvenil. Estão muito confortáveis nos seus assentos parlamentares e como ministros, no entanto, equivocam-se se pensam que passaram à história pelas suas conquistas neste Executivo. Quanto mais tardarem em romper, quanto mais cederem, mais se verão arrastados para a direita sob pressão do PSOE.
A crise sanitária descontrolada, os cerca de cem mil mortos que já acumula o Estado espanhol, a arrogância com que se move a direita em numerosas comunidades autónomas como em Madrid, a repressão e o clima de Estado policial que vivemos nos bairros e cidades operárias — que se expressou agudamente há uns dias em Linares —, a fúria, o profundo descontentamento e a desafeição para com um sistema e um regime apodrecidos… formam um cocktail molotov que explodirá mais cedo do que tarde.
Preparamo-nos para acontecimentos de uma envergadura apenas comparáveis aos que se produziram nos anos 30 do século passado e não há tempo a perder. Temos de construir uma esquerda combativa à altura do momento, que se apoie nas lições da história e que volte a olhar para o potencial do programa do marxismo revolucionário para transformar a sociedade.
[1] A Brigada Político-Social foi a polícia secreta durante o franquismo. Equivalente à PIDE-DGS.
[2] O naufrágio laranja é uma referência à cor do partido Ciudadanos, que se eclipsou nas últimas eleições catalãs e cujas intenções de voto por todo o Estado espanhol estão em queda.