Milhares de migrantes aglomeram-se desde o mês de Agosto no cais de Arguineguín, situado na localidade com o mesmo nome, pertencente ao município de Mogán (Las Palmas de Gran Canaria). Este cais, como explica José Javier Sánchez, subdirector de Migrações da Cruz Vermelha, foi concebido como um ponto de desembarque de pessoas migrantes para lhes oferecer cuidados primários, encaminhando-os de seguida para centros de acolhimento. O facto é que se tornou num “acampamento” massificado e insalubre, onde já chegaram a concentrar-se mais de 2.300 homens, mulheres e crianças, sem as mínimas condições de salubridade e higiene.

Num dique de apenas 3.600 metros quadrados vivem em más condições, a dormir no chão dentro de tendas miseráveis, quase tantas pessoas como as que vivem na localidade de Arguineguín.

Esta infâmia atingiu o seu ponto mais alto no passado dia 17 de Novembro. Nesse dia, ao início da tarde, entre 200 e 250 destes migrantes foram expulsos do cais pela polícia e, posteriormente, tratados como uma encomenda a devolver, foram transportados em autocarros fretados pela Câmara Municipal de Mogán até à porta da sede da Delegação do Governo nas Canárias, sem comida nem bebida, e sem que lhes oferecessem um lugar para pernoitar.

Este episódio pôs a descoberto o drama humano que milhares de pessoas migrantes têm sofrido nas Canárias, ao mesmo tempo que demonstrou, uma vez mais, que o governo PSOE-UP não mudou uma única vírgula da política migratória vergonhosa que os anteriores executivos aplicam há já muitos anos.

As Canárias estão a tornar-se uma prisão a céu aberto

Várias organizações humanitárias, como a Human Rights Watch, denunciam estas penosas condições há meses sem que o governo tenha tomado medidas sérias para acabar com esta situação.

Quando a notícia da expulsão dos imigrantes do Porto chegou às manchetes, Fernando Grande-Marlaska, Ministro do Interior, justificou cinicamente esta medida com o argumento de que “nenhuma pessoa pode ser retida legalmente por mais de 72 horas, excepto por causa justificada”.

A realidade desmente estas palavras, como demonstrou, entre outros, o Juíz Arcadio Díaz, titular do Tribunal de Instrução 8 de Las Palmas, que supervisiona os Centros de Internamento de Estrangeiros (CIE) de Grã-Canária. O magistrado declarou contundentemente que foram encontrados inúmeros migrantes que estavam há mais de 24 dias no cais.

Agora que este escândalo humanitário abriu os telejornais no Estado espanhol e esteve nas capas da imprensa, o executivo viu-se obrigado a mostrar a sua “preocupação” e a actuar. A questão é: em que sentido actuou?

Na passada quarta-feira à noite foram transferidos os primeiros 200 migrantes do cais de Arguineguín para o Centro de Cuidados Temporários para Estrangeiros (CATE) de Barranco Seco, um antigo paiol de pólvora a cerca de 8km de Las Palmas de Gran Canaria, convertido num acampamento de tendas militares com capacidade para 800 pessoas.

Com esta medida o governo não põe fim à vergonhosa situação, tudo o que faz é voltar a confinar centenas de pessoas que fogem da guerra, da pobreza e da repressão, mantendo-as sem nenhum direito e em condições desumanas. Por isso mesmo, o Juíz Díaz descreveu este novo acampamento como uma prisão a céu aberto.

Desagradado por ter de passar por esta humilhação que contradiz todo o discurso governamental sobre os direitos humanos, na passada quarta-feira dia 18 de Novembro, José Luís Escrivá, Ministro da Inclusão Social, Segurança Social e Migrações, declarou à imprensa sem nenhuma vergonha na cara: “Claro que poderíamos ter chegado antes e claro que poderíamos ter tido maior capacidade de antecipação, mas o mais importante é olhar para a frente.”

Da forma mais hipócrita e leviana, o ministro Escrivá desembaraça-se do drama que sofrem milhares de pessoas que chegam às fronteiras da Europa arriscando a vida para encontrar um futuro para si e para suas famílias. Não existe aqui nenhuma diferença com a prática e o discurso dos governos anteriores. Uma vergonha que não se pode disfarçar.

O capitalismo e os governos do sistema são responsáveis por este crime

Este ano já chegaram mais de 16.760 pessoas migrantes às Canárias, com picos de 2.000 em apenas um fim de semana.

A razão pela qual se vêem estas chegadas massivas de migrantes são claras e conhecidas. Centenas de milhares de pessoas arriscam a sua vida a cruzar desertos e o mar Mediterrâneo, sofrendo todo o tipo de calamidades, violações, escravidão, sujeitando-se a grupos mafiosos com óbvios vinculos com os Estados de origem — como é o caso de Marrocos —, contraindo com esses mafiosos dívidas quase vitalícias, e tudo para fugir da miséria, da guerra, da barbárie, da falta de futuro.

Os migrantes que estão a chegar às Canárias nesta onda são na sua maioria de nacionalidade marroquina e senegalesa, mais concretamente.

Nestes países, onde imperam regimes ditatoriais e corruptos há décadas, a actual crise económica está a ter um efeito demolidor para a grande maioria da população, e especialmente para a abandonada juventude.

Desemprego crónico, decomposição social, perda das fontes de rendimento tradicionais — como se vê no sector das pescas, um dos modos de sustento mais importantes para a grande parte da população.

No Senegal, a título de exemplo, os pescadores têm de “competir” com os grandes barcos pesqueiros de grandes empresas chinesas, turcas ou da UE que exploram zonas de pesca já praticamente esgotadas pela sobrepesca a que são submetidas. Na última década, duplicou a presença de barcos industriais. O mesmo acontece nas costas do Sahara Ocidental — dominado por Marrocos —, que são duramente atingidas pela crise do sector e pelo poder de máfias que contam com a ostensiva protecção da polícia e do aparelho de Estado.

Nos últimos dias, a actividade diplomática do governo PSOE-UP teve grande intensidade. A ministra de Política Territorial, Carolina Darias, viajou para as Canárias e ali anunciou que o executivo irá multiplicar as gestões diplomáticas para aumentar as devoluções e parar na origem a saída de canoas e barcos.

Para esse fim, a Ministra dos Negócios Estrangeiros, Arancha González, irá partir para o Senegal, como já fez o Ministro Marlaska ao visitar o seu homólogo marroquino.

Quando o governo espanhol ou qualquer outro fala de tomar medidas para travar a imigração na sua origem, não se refere a incentivar iniciativas para garantir condições de vida dignas para a população, nem a adoptar decisões para acabar com a exploração de recursos que as multinacionais dos países mais desenvolvidos têm levado a cabo nas nações de onde milhares de pessoas se vêem obrigadas a fugir.

Nada disso. No caso do governo PSOE-UP, a maneira como abordaram a situação é exactamente igual à do governo Grego ou Turco, cumprindo a legislação xenófoba e racista da UE, de forma muito semelhante à da administração Trump na fronteira com o México.

Sem ir mais longe, a política de expulsões fulminantes de imigrantes — as chamadas “devoluções a quente” — não deixaram de ser um dos eixos centrais da actuação do executivo de Pedro Sánchez; política que, aliás, recebeu o significativo aval da “justiça” espanhola e europeia. O Tribunal Constitucional, com o apoio do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, aprovou a reaccionária lei de Segurança dos Cidadãos praticamente em todos os seus extremos, nela incluídas estas “devoluções a quente” de imigrantes que tentem saltar as cercas de Ceuta e Melilla para entrar em território espanhol.

Da parte do executivo de coligação encontramos tão-somente medidas policiais, repressivas e de prisão, que não resolvem absolutamente nada, que violam todas as convenções e acordos sobre o respeito dos direitos humanos e que aumentam o sofrimento de milhares de pessoas desprotegidas e violentadas.

As Canárias estão a caminho de ser uma nova Lesbos

O executivo de Pedro Sánchez combina a actividade diplomática — aquilo que, na prática, se reduz a exigir mais vigilância e repressão aos Estados de onde partem os migrantes — com medidas que irão acabar por transformar as Canárias, Ceuta, Melilla e outras localidades receptoras em prisões insalubres e sem direitos.

Grande-Marlaska descartou tacitamente a possibilidade de transportar migrantes das Canárias para a península, com o argumento de que esse movimento poderia estimular o “efeito chamada”.

Estas medidas e declarações não têm nenhuma diferença em relação às de um representante do governo de Rajoy, Aznar, Salvini, Trump ou qualquer formação política pertencente à direita mais inflamada.

Tanto que essas vergonhosas declarações levaram a coordenadora autónoma do Podemos nas Canárias, Laura Fuentes, a pedir a demissão de Marlaska, apesar de ter sido imediatamente desmentida pelo presidente do grupo do Unidas Podemos no congresso, Jaume Asens, que declarou que “não se pedem demissões entre parceiros de governo”.

Com a recusa de transportar os migrantes para a península e a construção de acampamentos provisórios para os confinar, é evidente o perigo de repetir nas Canárias o modelo carcerário de Lesbos, na Grécia, e de Lampedusa, em Itália.

Como se pode ler no diário digital público.es (20-11-2020)*: “Com cada nova declaração política, a situação e a estratégia para fazer frente à crise migratória aproxima-se cada vez mais daquilo que vemos na Grécia, nas suas ilhas, com Lesbos como expoente máximo.”

Mais uma vez, a actuação do governo de Pedro Sánchez contradiz, de facto, o verniz progressista, solidário e de esquerda com o qual pretende cobrir-se. E a resposta do Unidas Podemos, mais uma vez, foi inócua, foi estéril, foi uma resposta para inglês ver. O UP, na prática, sujeita-se às decisões do PSOE, que está à frente dos ministérios do interior, da justiça e de negócios estrangeiros.

Se é desta a forma que a formação de Pablo Iglesias pretende forçar o PSOE e, por extensão, o governo a levar a cabo uma política de esquerda, o fracasso está assegurado. Aliás, esta é a garantia de que a política do governo se mantém fundamentalmente a defesa dos mais poderosos, enquanto os mais desfavorecidos são abandonados à sua sorte.

Até ao momento, a maioria dos mais de 200.000 milhões de euros mobilizados pelo governo para fazer frente à crise económica foram destinados a garantir os negócios e os lucros dos grandes empresários e banqueiros. Enquanto estes recebem zelosamente uma autêntica chuva de milhões, são muitas as famílias de classe trabalhadora às quais não chegaram nem mesmo as muito limitadas e insuficientes ajudas. E os migrantes são os mais desfavorecidos entre os desfavorecidos.

Como bem sabemos, não é um problema de falta de recursos. O Unidas Podemos tem de dar um murro na mesa e exigir uma volta de 180 graus tanto na política do governo para com os imigrantes como noutros aspectos essenciais.

Se os ministros do PSOE — que são a maioria — se negarem a fazê-lo, o Unidas Podemos não só tem o direito como tem ainda a obrigação de chamar os milhões de eleitores do Unidas Podemos e do próprio PSOE — os mesmos que tornaram possível a formação deste governo, com a sua luta e com o seu voto — a mobiliza-se e a obrigar o PSOE a fazer uma política autenticamente de esquerda.

Já basta de consentir e de assobiar para o lado enquanto é esmagada a dignidade dos mais oprimidos. A esquerda que consente isto demonstra a sua falência política e moral, e faz o jogo dos inimigos dos trabalhadores.

*Em 2015, o governo Grego construiu o acampamento “provisório” de Moria, na ilha de Lesbos, para albergar 3.000 pessoas. Em 2020, quando foi destruído por um incêndio, viviam nesse acampamento mais de 12.000 pessoas em condições subumanas.

 

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