A luta da classe trabalhadora com um programa socialista é o único caminho!
O levantamento social que rebentou na Bielorrússia no passado dia 9 de Agosto colocou o regime bonapartista e burguês de Alexander Lukashenko contra as cordas. O estopim desta crise foi a descarada fraude eleitoral que deu ao actual presidente mais de 80% dos votos frente a uns escassos 10% da candidatura opositora. Desde então, a camarilha dirigente lançou uma intensa repressão que causou vários mortos, torturas indiscriminadas e mais de 7.000 detidos, mas que se tem mostrado impotente para travar as centenas de milhares de pessoas — a princípio, maioritariamente jovens, mas rapidamente também trabalhadores — que continuam a encher as ruas da capital, Minsk, e dezenas de outras cidades do país.
Quem é Lukashenko e o que oferece a oposição pró-imperialista?
A comunicação social ocidental lançou uma intensa campanha para denunciar Lukashenko como um ditador que recorre à força para esmagar o seu povo. As imagens de Minsk, no entanto, não são muito diferentes das que observamos em numerosas cidades dos Estados Unidos onde a Guarda Nacional e a polícia, sob as ordens de Trump, executam operações repressivas diárias contra os manifestantes do movimento Black Lives Matter.
Portanto, a primeira coisa que devemos deixar clara é a enorme hipocrisia das potências capitalistas ocidentais e o seu interesse em ganhar uma influência decisiva sobre a Bielorrússia, tal como fizeram na Ucrânia. Dito isto, a mais enérgica denúncia das manobras imperialistas não implica que tenhamos de defender o regime despótico de Lukashenko. Ainda que a sua polícia secreta continue a chamar-se KGB, Lukashenko não dirige um Estado operário deformado da URSS, dirige um país onde a burguesia, nascida das entranhas da antiga burocracia stalinista, tomou o controlo das estruturas estatais e enriqueceu desavergonhadamente durante décadas. Tal como Putin, não é um “comunista”, é um rufia que personifica os traços mais deploráveis do chauvinismo grão-russo e do seu capitalismo de capangas.
Contra este personagem, colocam-se os candidatos opositores, acérrimos defensores da economia de mercado e agentes das potências imperialistas, e que por muito tempo se sentaram à mesma mesa que Lukashenko para saquear e explorar o povo bielorrusso. O favorito em todas as sondagens eleitorais era o banqueiro Viktor Babariko. Os outros dois são Valeri Tsepkalo, embaixador nos EUA e defensor de um programa de privatizações neoliberais radicais, e o blogger liberal Sergei Tikhanovsky, proprietário de vários clubes nocturnos. Todos foram impedidos de apresentar-se em comícios e finalmente encarcerados por Lukashenko, mas são eles quem está por detrás da candidatura encabeçada por Svetlana Tikhanovskaya [casada com Sergei Tikhanovsky].
A palavra de ordem central da campanha de Tikhanovskaya foi “somos os 97%”, tratando de tornar evidente o isolamento de Lukashenko que, por seu lado, piorou não só devido à crise social e às medidas repressivas, mas também pela sua posição negacionista e nada menos que lunática em relação à pandemia do coronavírus. Como outros “experts” da mesma laia, o presidente aconselhou que se bebesse vodka como medida preventiva, o que não evitou de maneira alguma que o número de infectados superasse os 70.000 numa população de 9,4 milhões de habitantes.
Uma onda de greves! A classe trabalhadora deixa a sua marca nos acontecimentos
Depois de vários dias de protestos, a 13 de Agosto deu-se um ponto de inflexão. Milhares de trabalhadores de fábricas de todo o país entraram em greve e participaram em grandes manifestações. O movimento grevista começou em Minsk, na principal fábrica automobilística do país, BelAZ. Sucessivamente, centenas de empresas, tanto do Estado como privadas, juntaram-se à greve. Fábricas da indústria automobilística, metalúrgica, electrónica, de tecnologias de informação, farmacêutica, de cerâmica, de fertilizantes, de construção civil, de cimento, de petróleo, têxtil, química, de processamento de alimentos, de telecomunicações e da mineração. Esta onda culminou a 17 de Agosto com uma greve total e a produção industrial praticamente paralisada.
Lukashenko tentou ganhar as massas e apoio popular com o discurso oficial de que os protestos são o resultado de “ingerência externa” para desestabilizar o país, mas fracassou completamente. Durante uma visita à fábrica estatal de camiões tractores de Minsk, expressamente escolhida pelo próprio Lukashenko, foi apupado pelos trabalhadores convocados. Este é apenas um reflexo da debilidade em que se encontra o presidente bielorrusso, e que também se verifica nas acções organizadas a favor do regime, que são muito minoritárias.
A participação massiva da classe trabalhadora não tem precedentes desde a separação da Bielorrússia da antiga URSS. E este é um elemento da maior importância. Ao sector industrial juntaram-se trabalhadores da saúde, professores, músicos e trabalhadores da televisão pública, entre outros.
Para fazer frente a tudo isto, Lukashenko recorreu a uma versão pessoal e peculiar da velha técnica da cenoura e da vara. Por um lado, incrementou a repressão para tentar pôr um fim aos protestos; enviou o exército e os seus tanques para as ruas na zona ocidental do país, onde se encontram as indústrias mais importantes. Mas, por outro lado, oferece “diálogo” à oposição, que é convidada a “aprovar uma nova constituição (...) ratificá-la num referendo e, então, com a nova constituição, se pretenderem, ter eleições parlamentares, presidenciais e municipais” (foram estas as suas palavras quando discursou na fábrica de Minsk). É a velha manobra de um regime à beira do abismo que pretende ganhar tempo e desviar a fúria dos trabalhadores para os canais seguros do parlamentarismo e da negociação com uma camarilha que conhece muito bem.
As dificuldades para a esquerda classista fazer ouvir a sua voz neste conflito são óbvias. Durante anos, Lukashenko carregou duramente contra a esquerda revolucionária e controlou ferreamente os sindicatos, aplicando ao pé da letra tudo o que aprendeu durante o período stalinista. Mas isso não quer dizer que sectores da classe trabalhadora não estejam a tirar conclusões importantes da sua própria experiência. A princípio, as exigências dos trabalhadores limitavam-se à demissão de Lukashenko e à repetição das eleições. Não obstante, à medida que aumentam os protestos, a esta exigência foram acrescentadas reivindicações com um carácter de classe e revolucionário. Um exemplo é o panfleto publicado pelo maior comité de greve do país que, entre outras reivindicações, exige a criação de sindicatos independentes do Estado, a proibição da privatização de empresas industriais e agrícolas, a derrogação da contra-reforma das pensões, a simplificação do processo de revogação de deputados e funcionários, e ainda a criação de conselhos de trabalhadores para a autogestão das fábricas.
Estas reivindicações chocam frontalmente não só com o regime capitalista de Lukashenko, senão também com as pretensões da oposição igualmente burguesa e de todo o imperialismo ocidental. Para a União Europeia, o objectivo não é a defesa da democracia, é a defesa dos lucros dos seus bancos e multinacionais com as privatizações das empresas públicas bielorrussas, além do controlo de um país estratégico perante a Rússia de Putin.
O que está em jogo
A Bielorrússia, até há relativamente pouco tempo, era um dos países mais estáveis da região. Lukashenko chegou ao poder em 1994 e se, após o processo de restauração capitalista, foi capaz de se manter como presidente tantos anos é precisamente porque conseguiu que a privatização e a transição económica para o capitalismo fosse realizada com a conservação de um sector público significativo, especialmente na indústria pesada, sector sobre o qual se podia apoiar. Isto foi combinado com a criação de zonas económicas “livres” onde centenas de empresas estrangeiras não pagam impostos e exploram uma força-de-trabalho qualificada com salários muito baixos.
A estabilidade económica permitiu ao regime manter um grau notável de protecção da saúde e da educação, do emprego e das infraestruturas sociais. Essas são as condições que permitiram a Lukashenko granjear um importante apoio popular, especialmente nas zonas agrárias também com grande peso na economia bielorrussa. E Lukashenko tampouco perdeu tempo durante todos estes anos. Calcula-se que acumulou uma fortuna pessoal de 9.000 milhões de dólares.
A tranquilidade terminou em 2011, com a chegada da crise económica à Bielorrússia. A inflação ficou descontrolada, o desemprego aumentou significativamente, as privatizações intensificaram-se, tal como os cortes e contra-reformas — aumento da idade da reforma, eliminação dos apoios sociais, etc. —, a troco de empréstimos do FMI. Actualmente, o salário médio é de 420 euros, um dos mais baixos da Europa. Segundo dados oficiais, desde o início da crise que 8% da população emigrou para a Rússia ou para a União Europeia em busca de emprego. Ainda que a taxa oficial de pobreza seja de 5%, calcula-se que na realidade cerca de 20% da população seja pobre.
Desta forma, o regime bonapartista burguês de Lukashenko foi perdendo apoio social, alentando e fazendo recrudescer as disputas entre distintos sectores da classe dominante e do aparelho de Estado, e dando asas aos que apostam na execução de planos de privatizações selvagens, de liquidação da economia estatal, de alinhamento com o imperialismo ocidental e afastamento da influência russa.
O imperialismo russo não é nenhum aliado da classe trabalhadora bielorrussa
Outro factor que permitiu a estabilidade bielorrussa, e que agora se vê transformado no seu oposto, é a extrema dependência económica da Rússia. No último período, as relações entre Moscovo e Minsk foram muito tensas, a pontos de alguns dias antes das eleições a polícia bielorrussa ter detido 33 mercenários russos acusados por Lukashenko de preparar acções terroristas para desestabilizar o país.
Desde 1997 que os dois países formaram uma união política e económica que fez a Bielorrússia beneficiar de acesso a um mercado de quase 150 milhões de pessoas. O aspecto mais importante desse acordo foi que a Rússia vendia gás e petróleo ao preço dos custos de produção, permitindo ao governo bielorrusso a revenda no mercado internacional com enormes lucros a cada ano.
As relações foram se deteriorando progressivamente a partir de 2014, quando Lukashenko se distanciou de Putin ao defender a integridade territorial da Ucrânia e ao não reconhecer a anexação da península da Crimeia à Federação da Rússia. Esta decisão foi logicamente interpretada como uma aproximação à UE, que, por seu lado, levantou as sanções económicas impostas ao regime de Lukashenko.
Outro marco nas tensões com a Rússia deu-se no Outono de 2019, quando o governo bielorrusso se negou a integrar a Federação Russa. Como represália, a Rússia cortou as ajudas económicas, até que, em Fevereiro do presente ano, retirou as subvenções ao petróleo. A eliminação destas ajudas e a caída do preço do barril de crude que foram a última gota para a economia bielorrussa.
Assim, como é óbvio, a preocupação de Putin perante a rebelião em curso não tem nada a ver com o bem-estar do povo bielorrusso. Tal como aconteceu na Ucrânia, a Bielorrússia é, para Moscovo, mais um peão na sua disputa com o imperialismo ocidental por controlo e influência na região. A perda da Ucrânia foi um duro golpe para Putin, que não vai tolerar facilmente outra derrota num território que, na realidade, continua a considerar parte da Rússia. Putin — que adoptara um perfil discreto nos primeiros dias de protestos, inclusivamente pedindo a libertação dos presos políticos, ainda que reconhecendo os resultados eleitorais — tende agora, cada vez mais, a apoiar o regime de Lukashenko, que parece decidido a não abandonar o poder.
Depois de uma conversa telefónica a 30 de Agosto, os presidentes ficaram de encontrar-se “num futuro próximo”. Mais ainda, Putin comprometeu-se a apoiar financeiramente a Bielorrússia e respondeu favoravelmente ao pedido de criar “uma unidade de segurança de reserva” para intervir na Bielorrússia “se a situação ficar fora do controlo”. A possibilidade de uma intervenção militar russa não se pode descartar, mas as consequências de uma cto semelhante são imprevisíveis e poderiam acarretar mais dificuldades que vantagens para Putin. O governo capitalista de Moscovo está a navegar em águas muito turbulentas desde há anos, e algo deste género pode desencadear mobilizações também dentro das suas próprias fronteiras.
Por uma política de independência de classe, pelo socialismo!
Neste contexto, a participação massiva e decidida da classe trabalhadora preocupa todos os sectores da classe dominante bielorrussa, mas também o Kremlin, a UE, a OTAN e o imperialismo estado-unidense.
O movimento grevista surgiu por iniciativa dos próprios trabalhadores que deixaram a sua marca nos acontecimentos, imprimindo-lhes um carácter muito diferente do que teve o Maidan ucraniano, no qual predominavam elementos pequeno-burgueses no início e elementos abertamente fascistas no final.
É muito significativo que os líderes da oposição tenham pedido aos trabalhadores que tivessem “moderação” e regressassem aos seus postos de trabalho. Ao ver que as suas palavras caiam em saco roto, apressaram-se a formar um comité de Coordenação para a transferência do poder com pouco mais de uma trintena de membros, e cuja composição tem uma maioria de membros de executivos de empresas.
Paralelamente, estão a surgir numerosos comités de fábricas e assembleias que impulsionam as greves desde baixo e com um carácter descentralizado. A publicação electrónica Belorusskiy Partizan nota que “muitas fábricas estão em ebulição, brandindo as suas reivindicações, criando comités de greve”.
É um momento crucial para a classe trabalhadora bielorrussa, uma oportunidade de libertar-se não só de Lukashenko e da sua camarilha, como também dos oligarcas que enriqueceram saqueando o Estado bielorrusso.
Lamentavelmente, o Partido Comunista Bielorrusso (PCB) é um simples apêndice do regime, enquanto o partido “Um Mundo Justo” — formado a partir de uma cisão do PCB e com imensos jovens nas suas fileiras — se limita a defender eleições “honestas”, além de um “tribunal popular” e de “liberdade para todos os prisioneiros políticos”. Está imbuído de ilusões reformistas e não faz mais do que seguir a oposição “democrática” burguesa.
A classe trabalhadora bielorrussa está a demonstrar a sua força, a sua capacidade de resistência e o seu poder ofensivo. Não pode confiar em Lukashenko nem em Putin, mas tampouco pode confiar na oposição burguesa que pretende entregar o país ao imperialismo europeu e estado-unidense para continuar o saque.
A classe operária tem de armar-se com um programa de independência de classe que defenda a nacionalização dos sectores privatizados sob o controlo dos trabalhadores e, assim, o fim da corrupção nas empresas estatais. Tem de rejeitar as políticas de austeridade e privatização, anular o aumento da idade da reforma, defender a saúde e a educação públicas e de qualidade, assim como o restabelecimento de todos os apoios e prestações sociais perdidos com a restauração do capitalismo.
Junto a estas reivindicações, a vanguarda proletária tem de opor-se absolutamente à intervenção imperialista do ocidente e da Rússia, lutar pela liberdade de organização e manifestação e pela liberdade de todos os presos políticos. E o mais importante: criar os seus próprios órgãos de luta e sindicatos independentes como parte de um processo para construir um partido revolucionário que levante a bandeira da transformação socialista da Bielorrússia.