Começou a 1 de Outubro de 2019, e não mostra sinais de estar a terminar, o maior levantamento de massas no Iraque das últimas décadas, com milhares de jovens a saírem à rua, enfrentando as forças repressivas do Estado. As mobilizações começaram em Bagdad e depressa se alastraram para o sul, de maioria Xiita, revelando um carácter anti-sectário, onde antes o sectarismo religioso havia sido promovido pelo imperialismo.
As palavras de ordem entoadas nas ruas facilmente ecoam em muitos de nós: contra o desemprego, a corrupção desenfreada, o estado deplorável dos serviços públicos, a ingerência das potências imperialistas, especialmente os Estados Unidos da América e o Irão. Há sobretudo uma generalizada perda de credibilidade das instituições burguesas e da própria classe dominante, reflectida em palavras de ordem como “nem políticos, nem religiosos!”.
A larga maioria da população só conheceu as condições de vida do pós-guerra, um pesadelo tornado realidade. Passados 16 anos desde a invasão imperialista, 60% da população tem menos de 30 anos e o desemprego jovem está entre os 25% e os 40%. As massas saem à rua e recuperam as palavras de ordem da primavera árabe de 2011: “o povo quer a queda do regime!”.
A resposta do governo iraquiano foi brutal, tendo mobilizado polícia anti-distúrbios, a brigada anti-terrorista e o exército, impondo um recolher obrigatório de 48 horas e bloqueando a internet para 75% da população. Só nos primeiros 15 dias, a repressão fez mais de 150 mortos e para cima de 6.000 feridos, além de centenas de detidos. Ainda assim, a corajosa classe trabalhadora e a juventude iraquiana não recuaram, obrigando o governo a reconhecer “excessos contra os manifestantes” e a anunciar várias medidas genéricas numa tentativa vã de enganar as massas a voltar para suas casas. Depois de uma trégua cautelosa de duas semanas, no dia 1 de Novembro, quando se comemora um mês de mobilizações, os protestos voltaram à rua, com os ânimos renovados e ainda mais vontade de levar a luta até ao fim. A posição dos manifestantes na praça Tahrir foi reforçada e chegou mesmo a avançar zona verde adentro — i.e., pelo distrito blindado onde se encontram os edifícios do Estado iraquiano assim como a embaixada estado-unidense.
Dois blocos posicionam-se
Entre todos os actores que se tentam posicionar nesta explosão social, há dois que merecem especial atenção pelo papel que tiveram e que ainda podem vir a ter. São estes o movimento do clérigo xiita Musqtada Al Sadr e as milícias pró-Irão que formam a coligação Fatah.
O movimento de Al Sadr tem por base os sectores mais oprimidos da população xiita, mas depressa cresceu devido ao uso de uma retórica nacionalista iraquiana sem sectarismos religiosos. Dirigiu as mobilizações de Bagdad em 2016 e nas últimas eleições parlamentares de 2018 foi, em conjunto com o Partido Comunista, o bloco mais votado, aumentando de 34 para 54 os seus assentos parlamentares.
Al Sadr viu-se completamente ultrapassado pelas massas e, num esforço para se reaproximar destas, pediu a demissão do primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi. Mas não vai ter a tarefa facilitada. Primeiro, porque o movimento não quer apenas a queda do primeiro-ministro, mas uma mudança radical nas suas condições de vida, o que implica a queda do regime e do próprio capitalismo, não apenas do primeiro-ministro. Em segundo lugar, porque Al Sadr e o Partido Comunista tiveram um papel chave na formação e especialmente na continuação deste governo reaccionário.
Do outro lado, temos a coligação Fatah, que é o segundo maior grupo parlamentar com 48 assentos. Numa primeira fase, quando Al Sadr pediu a demissão do primeiro-ministro, a Fatah juntou-se a esta exigência, deixando o Abdul-Mahdi efectivamente sem apoio. Entretanto, o Irão decidiu como posicionar as suas peças e vai defender com a máxima firmeza este governo. De dia para dia, a Fatah vai ameaçando “pôr ordem” se os protestos não terminarem. Logo nos primeiros dias de protestos, o agora assassinado general iraniano Qasem Soleimani declarava, numa reunião com os responsáveis de segurança em Bagdad, que “no Irão sabemos lidar com manifestantes”. Pouco depois, os disparos à cabeça e ao peito generalizaram-se e começaram a aparecer milicianos encapuzados.
Desde 2003 que no Iraque existe uma guerra por procuração entre os EUA e o Irão, e, durante o governo de Obama, os EUA viram-se forçados a recorrer a um acordo com Irão para tentar estabilizar a situação na região e reduzir a sua presença militar no Iraque, centrando-a no sul do Pacífico (contra a China). Os EUA iriam conceder ao Irão acesso ao mercado mundial de petróleo em troca da interrupção do seu programa nuclear — era isto o acordo nuclear de 2015, que Trump deixou cair recentemente. Hoje, EUA e Irão controlam diferentes partes do Estado e sectores do exército, e estão igualmente preocupados com o levantamento das massas. Mas o que mais preocupa o Irão resume-se a dois pontos: o movimento está a questionar a sua influência sob o Iraque e não só ameaça ultrapassar como já ultrapassou a fronteira iraniana. A 15 de Novembro a chama das mobilizações de massas no Irão foi reacesa, primeiro como resposta imediata ao aumento dos preços dos combustíveis, e depressa se tornando numa mobilização contra o governo, as condições de vida miseráveis e o papel do Irão nos conflitos da região — razões partilhadas com os jovens e os trabalhadores iraquianos. A situação no Irão não tem abrandado, e os protestos tomaram um novo fôlego neste mês de Janeiro após as autoridades iranianas admitirem que o voo ucraniano 752 foi abatido pelas suas forças militares, reforçando as palavras de ordem contra todo o sistema político iraniano.
Este levantamento é uma parte da revolução é mundial
A revolta no Iraque não aparece isolada mas antes no contexto de um novo ascenso na luta de classes no mundo árabe, começando na Argélia e Sudão, continuando no Egipto, com mobilizações contra o ditador Sisi e mais recentemente no Líbano. Tanto as classes dominantes como a trabalhadora aprendem com estas experiências — enquanto uma afina o seu aparelho repressivo a outra desperta para a sua força.
O capitalismo mundial está a caminhar para um crise económica que irá ter as mais profundas das consequências para a classe trabalhadora, ainda mais em países sob o jugo imperialista como o Iraque. Se as últimas décadas demonstraram alguma coisa, foi sem sombra de dúvidas que nem a burguesia nacional, nem a internacional têm alguma coisa a oferecer aos trabalhadores e aos oprimidos para além da guerra, da corrupção e da miséria.
É preciso construir um partido revolucionário, baseado na classe trabalhadora, nos jovens e nos oprimidos. Um partido que nacionalize os sectores fundamentais da economia para os pôr sob o controlo democrático dos trabalhadores. Esta é a tarefa no Iraque, no Médio Oriente e em todo o mundo!