A luta do povo curdo num momento decisivo
A Síria é palco de um novo exemplo do comportamento escandaloso e manipulador a que os mídia ocidentais nos habituaram.
Os terroristas que levantaram as bandeiras do jihadismo tornaram-se, da noite para o dia, “rebeldes” honrados que amam a “democracia liberal”, que se vestem como cidadãos pacíficos e propagam em tom suave, tal como os seus mentores da CIA os instruíram, a ideia de que podem construir um oásis de tolerância e respeito pelos direitos humanos.
Uma farsa nauseabunda, pois é impossível esconder que estes fantoches de Washington, Ancara e Tel Aviv são fascistas fundamentalistas do ISIS e da Al-Nusra (ramo sírio da Al Qaeda), e que há anos perpetram massacres para impor uma ditadura fundamentalista, subjugando as mulheres à opressão brutal nas regiões que controlam e desencadeando o terror sistemático contra a população xiita e as comunidades cristã e alauita.
Passaram apenas algumas semanas para que se tornasse evidente a distribuição territorial que está a ser negociada entre três partes (EUA, Israel e Turquia), com o consequente golpe que sofreram os seus adversários (Irão, Rússia e China). Mas há também uma outra operação em curso que suscita enormes receios depois de termos assistido aos massacres genocidas do sionismo em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano.
Trata-se do futuro da luta heróica do povo curdo e da sobrevivência do enclave de Rojava, um dos objectivos de guerra mais importantes do regime bonapartista e reaccionário de Erdogan. Depois de resistirem durante uma década, alcançando importantes triunfos militares contra os jihadistas, as organizações curdas de Rojava e o PKK, que é a sua fonte de inspiração política, enfrentam uma encruzilhada histórica de grande significado. E não é nada claro como o desafio será resolvido.
Com esta declaração queremos apresentar um balanço geral do momento e delinear as perspectivas possíveis tendo em conta a complexidade do cenário e as enormes contradições que se entrelaçaram.
O Grande Jogo imperialista na Síria
Após a captura de Alepo pelo Hayat Tahrir al Shar (HTS), o Exército Nacional Sírio (SNA), controlado remotamente a partir de Ancara, anunciou a Operação Amanhecer da Liberdade, ocupando militarmente as cidades curdas de Tell Rifaat e Manbij, bem como outras cidades próximas. Esta operação não esconde a sua intenção de levar até ao fim as ofensivas de 2018 e 2019, quando a aviação e as tropas turcas, juntamente com os seus peões sírios, causaram milhares de mortes e a deslocação de mais de 200.000 civis em Afrin e outras regiões curdas1. Nessa altura Erdogan tinha autorização do governo estado-unidense de Donald Trump para realizar o massacre.
Mas a ofensiva sobre Tell Rifaat e Manjib insere-se num plano político e militar de muito maior alcance: liquidar a Administração Democrática Autónoma do Norte e Leste da Síria (AANES), mais conhecida por Rojava, um enclave em que vivem mais de dois milhões de pessoas, na sua maioria curdas, mas também árabes, turcomanas, yazidis, arménias e de outras nacionalidades.
Erdogan deixou claro o que espera: “Não acreditamos que, a curto prazo, qualquer potência continue a colaborar com organizações terroristas. Os líderes de organizações terroristas como o Estado Islâmico e o PKK-YPG serão esmagados o mais rapidamente possível”2. A identificação de uma organização fundamentalista tão odiada no mundo árabe e internacionalmente como o Estado Islâmico com a guerrilha curda do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), que continua a manter uma influência poderosa no sul da Turquia, e com os seus aliados sírios no Partido de União Democrática (PYD) , que lideram as Unidades de Proteção Popular (YPG) e as Unidades de Defesa da Mulher (YPJ), não é uma coincidência.
Este nacionalista pútrido, que há anos recorre à demagogia populista e oscila entre as potências mundiais, não hesitou em lançar uma intervenção sangrenta na Síria que lhe permite desviar a atenção dos gravíssimos problemas sofridos pela sociedade turca.
Por um lado, planeia um massacre contra os curdos na Síria e envia uma mensagem forte aos entre 15 e 20 milhões de curdos (quase 20% da população) que vivem na Turquia. A suposta luta contra o “terrorismo curdo” serve de desculpa para atacar a esquerda e expandir a sua base fanática e nacionalista. Por outro lado, apresenta a ideia de que a economia turca poderá sentir um alívio significativo se o problema dos 2,9 milhões de refugiados sírios que ainda permanecem em solo turco for resolvido com a sua expulsão em massa.
Ambos os argumentos servem de engodo para encobrir as ambições expansionistas de Erdogan e da burguesia turca naquela que consideram a sua área de influência imediata, e permitem-lhes desferir um duro golpe no seu adversário mais importante na área: a ditadura iraniana.
Erdogan aproveitou habilmente o contexto internacional e, particularmente, os acontecimentos no Líbano e em Gaza. Durante dois anos jogou ao gato e ao rato com as potências ocidentais às quais está ligado por múltiplos pactos. A Turquia é membro da NATO, mas tem desempenhado um papel muito questionável para Washington e Berlim ao permitir que as empresas russas se estabeleçam no país e teçam uma rede de intermediários comerciais para contornar as sanções ocidentais. Durante algum tempo, vetou a entrada dos países escandinavos na NATO, alegando que eram santuários do PKK. E as suas relações com a China também se têm fortalecido nos últimos anos.
Como bonapartista experiente, Erdogan fez malabarismos para sobreviver. A qualidade da democracia na Turquia é muito duvidosa, mas o país constitui um actor político que nenhuma potência com interesses na região pode ignorar. A UE financia generosamente Erdogan para que o seu aparelho militar e policial contenha dentro das fronteiras turcas milhões de refugiados do Médio Oriente e da Ásia, sem se preocupar com o facto de os direitos humanos mais básicos serem espezinhados.
Este pragmatismo pútrido a que nos habituaram os EUA e a UE também é bem dominado por Erdogan. Os seus discursos a favor da causa palestiniana são bem conhecidos mas enquanto os pronuncia mantém excelentes relações comerciais e militares com Netanyahu e agora viu uma janela de oportunidade na Síria para assumir o controlo do norte do país e desferir um golpe devastador nas forças curdas.
Há pouco tempo, alguns iludidos na esquerda, que em vez de realizarem uma análise de classe séria, faziam cálculos geoestratégicos, viam Erdogan como um aliado porque apoiava Putin. Hoje estão mudos, sem saber o que dizer.
Erdogan restabeleceu a sua aliança militar e política com os Estados Unidos para permitir a Washington derrubar o regime de al-Assad e ao mesmo tempo assistir com um silêncio cúmplice ao ataque das forças sionistas em território sírio. Uma grande lição para todos aqueles que confiam nos gestos e nas palavras de figuras como o presidente turco, e pensam que a causa palestiniana pode beneficiar deste tipo de demagogia.
A administração Democrata sabia perfeitamente que o regime sírio carecia de uma base social e que as possibilidades da Rússia desviar grandes recursos militares estavam limitadas pelo conflito ucraniano. Os comandantes estratégicos do imperialismo estado-unidense não hesitaram em planear, com os seus aliados turcos e israelitas, uma operação que lhes permitisse recuperar posições e autoridade depois das derrotas sofridas no Iraque, no Afeganistão, na própria Síria desde a entrada militar da Rússia em 2015 e, obviamente, na Ucrânia. Têm aliados no terreno, bem como recursos de inteligência consideráveis, para avaliar todas as grandes mudanças. E evidentemente a ofensiva sionista no Líbano e a decapitação do Hezbollah ofereceu-lhes uma oportunidade de ouro.
Todos ganharam com isto, os EUA e, claro, Israel, que já estendeu o seu controlo para além das Colinas de Golã. Por seu lado, a Turquia está a estabelecer-se como uma potência regional e ao tomar Tell Rifaat e Manbij “consolidou o seu controlo sobre áreas-chave a oeste do Eufrates e criou uma nova zona tampão ao longo dos seus limites territoriais.”3
A luta de libertação curda e Rojava
A intervenção na Síria abre uma perspectiva bastante séria para que Erdogan possa cumprir um dos mais preciosos objetivos de guerra: o enclave de Rojava, um símbolo internacional da resistência curda e onde o PKK e os seus aliados construíram toda uma administração política, social e económica.
Não nos deteremos no facto bem conhecido de que o regime turco oprimiu os curdos desde a sua fundação, negando-lhes o direito à autodeterminação, proibindo a sua língua e cultura, e até rejeitando a sua existência como povo, dando-lhes o nome de “turcos das montanhas.” O povo curdo é a maior nação sem Estado do planeta. O Curdistão, com uma área semelhante à Península Ibérica e quase 40 milhões de habitantes, continua dividido entre a Turquia (15-20 milhões), o Irão (cerca de 10 milhões), o Iraque (8,5 milhões) e a Síria (3 milhões), para além dos 2 milhões de curdos na diáspora e emigrantes, sobretudo na Alemanha.
A opressão e a discriminação nacional sofridas pelas minorias curdas provocaram numerosas revoltas e insurreições que foram sempre esmagadas pelas oligarquias burguesas dos países em que se encontram dispersas e pela colaboração ativa que receberam do imperialismo ocidental. A luta armada do PKK na Turquia decorre desde o final da década de 1980 e tem sido o conflito mais sangrento para o Estado turco em décadas.
De qualquer modo, a situação alterou-se após as intervenções militares no Iraque e na Síria por parte dos Estados Unidos. A deposição de Saddam Hussein e a invasão das forças militares dos EUA, da Grã-Bretanha e dos seus aliados não estabilizaram de forma alguma a situação. As forças invasoras tentaram construir uma administração política adaptada às suas necessidades, que se reduziu à capital, Bagdad, e a algumas grandes cidades, enquanto a actividade militar contra as forças ocupantes se multiplicava por todo o país. O Irão interveio forjando as suas próprias milícias, e organizações fundamentalistas como a Al Qaeda também emergiram em força. Neste contexto, as forças curdas do Iraque, dominadas por uma elite burguesa com interesses económicos muito definidos, embarcaram numa operação para controlar as extensas jazidas de petróleo que existiam nos seus territórios e alcançaram extensos acordos com empresas estado-unidenses para extrair ilegalmente o petróleo bruto do país, muito do qual com destino a Israel. Obviamente, nada disto foi feito sem a supervisão política de Washington.
O início da crise revolucionária na Síria ao longo de 2011, no âmbito da Primavera Árabe, encostou a odiada ditadura de al-Assad à parede. A revolta da população síria, com greves gerais e manifestações de massas, ocupações de fábricas e cidades e, finalmente, a luta armada liderada por centenas de comités revolucionários contra os assassinos e as tropas do regime alarmaram todas as potências que tinham interesses na área, dos EUA a Israel e, claro, a Rússia e a China.
Nesta crise revolucionária o povo curdo desempenhou um papel de vanguarda, lutando de forma exemplar. Foi a repressão brutal desencadeada por Assad em todo o país que acelerou uma sangrenta guerra civil a partir 2012-2013 e criou condições caóticas aproveitadas por Estados Unidos, Israel, Turquia, Irão e a própria Rússia para intervir. A revolução popular foi definitivamente esmagada e descarrilada.
Como se sabe, o apoio de Teerão, e sobretudo de Moscovo, foi decisivo para manter Assad e derrotar o Estado Islâmico. Por seu lado, Washington, Tel Aviv e Ancara financiaram e armaram o ISIS e a Al Qaeda e mais tarde as suas dissidências HTS e ENS. O resultado foi uma espiral de destruição, violência reaccionária e sectária que até 2022 já tinha causado quase meio milhão de mortes, 6,8 milhões de pessoas deslocadas internamente e 5,2 milhões de refugiados noutros países.
Neste contexto, cristalizou-se um acordo militar e político sem precedentes entre o imperialismo estado-unidense e as Unidades de Protecção do Povo (YPG) e as Unidades de Defesa da Mulher (YPJ), que são a parte fundamental das Forças Democráticas Sírias (FDS), um grupo com o apoio de Washington desde 2014. para combater militarmente o Estado Islâmico. Naquela altura, o ISIS estava a escapar ao controlo de Washington, o seu crescimento em influência e capacidade militar era uma ameaça para os seus antigos mentores e tinha a sua própria agenda política: alargar o seu "califado" a toda a Síria, ao Iraque e a todo o Médio Oriente.
Esta nova aliança foi forjada num momento em que a viragem ideológica do PKK ganhava força e quando o seu líder máximo, Abdullah Öcalan, condenado à prisão perpétua pelo sistema judicial de Erdogan, levantava a possibilidade de abertura de negociações de paz com o regime turco. Este último falhou face à manifesta intransigência de Ancara e à sua exigência de desarmamento incondicional do PKK, o que equivalia à rendição total. A partir dessa data, a actividade armada foi retomada, embora com uma intensidade muito menor dentro das fronteiras turcas, enquanto a actividade fundamental se concentrou na Síria.
É um facto reconhecido internacionalmente que as e os milicianos do YPG e do YPJ lutaram bravamente contra o Estado Islâmico, derrotando-o em várias batalhas e ganhando o controlo de uma faixa de 50.000 km no nordeste da Síria. Estas vitórias abriram novas perspectivas para a luta de libertação do povo curdo e geraram uma grande solidariedade internacionalista por todo o mundo.
As leis que declaram uma confederação democrática secular, com igualdade de género e respeito por todas as etnias e religiões fizeram de Rojava um farol de esperança para milhões de homens e mulheres oprimidos na Síria, no Médio Oriente e também na própria Turquia.
Em 2015 e 2016, a frente unitária dos curdos e de sectores da esquerda turca (HDP) obteve um apoio histórico nas eleições. As possibilidades do PKK e dos seus aliados usarem toda essa força para levantar uma alternativa revolucionária e comunista, convocando todos os trabalhadores da Turquia e do Médio Oriente à luta pelo socialismo, estavam a amadurecer. Rojava poderia ter passado de um símbolo heróico a uma alavanca formidável para espalhar a revolução e combater eficazmente o sionismo, o fundamentalismo e todos os seus patrocinadores ocidentais. Mas as coisas não se desenvolveram assim, longe disso.
A armadilha mortal dos pactos com os EUA
A evolução política de Abdullah “Apo” Öcalan do estalinismo para um “socialismo libertário e confederal” teve consequências importantes que não podemos discutir em profundidade neste artigo. Mas a incorporação da luta pela libertação das mulheres no programa do partido e das milícias armadas, ou as conquistas sociais e democráticas de Rojava, contrastam eloquentemente se as compararmos com experiências como as do Hamas em Gaza, da ANP na Cisjordânia, ou do Hezbollah no Líbano.
É evidente que com a intervenção da Rússia na Síria e o restabelecimento da autoridade temporária de al-Assad, Washington precisava de ter tropas no terreno com capacidade de combate para conter os fundamentalistas dentro de limites. Outro pormenor que não passou despercebido aos cálculos do imperialismo estado-unidense é que os curdos eram inimigos de Erdogan, e manobrar com o seu apoio poderia servir para negociar com o regime turco e pressioná-lo caso fosse longe demais nos seus acordos com a Rússia.
A colaboração entre as milícias curdas e Washington teve um resultado negativo para as forças de Rojava. Embora 11.000 milicianos e milicianas tenham caído nas diferentes frentes de batalha, os militares estado-unidenses que lutaram ao seu lado no terreno sofreram apenas 8 baixas. Mas mais grave são as concessões políticas que isso implicou: em primeiro lugar e mais importante, a renúncia a medidas socialistas e até anti-imperialistas consistentes. As reformas económicas foram muito limitadas e, como os comerciantes, os proprietários de terras e de empresas são considerados aliados, as condições de exploração e opressão permaneceram para centenas de milhares de pessoas.
A acumulação capitalista e o enriquecimento privado não desapareceram, por muito que queiram apresentar a Constituição de Rojava aprovada em 2014 como prova do triunfo das comunas autónomas e autogeridas4.
Mas há mais problemas. Em troca de armas e dinheiro, os estado-unidenses conseguiram estabelecer prisões e campos de concentração em Rojava como Al Hol, onde inicialmente havia alguns milhares de combatentes do ISIS feitos prisioneiros e hoje mais de 60.000 homens, mulheres e crianças vivem miseravelmente, criando um um foco de agitação e até de ressurgimento do fundamentalismo5.
Além disso, tal como no Iraque, os líderes curdos de Rojava chegaram a acordos muito benéficos com as empresas estado-unidenses para exportar petróleo bruto dos campos petrolíferos que controlam6. Obviamente não faz sentido negar que o povo de Rojava tem o direito de obter recursos económicos, mas não é essa a questão. A aliança económica com as empresas estado-unidenses não é gratuita: a garantia é a manutenção da aliança militar com os Estados Unidos e a subordinação política aos interesses do Departamento de Estado. E isso pode mudar a qualquer momento, como está a ficar claro.
Como tantas vezes aconteceu na história, a perspectiva da revolução socialista foi truncada por cálculos tácticos baseados num suposto “realismo geoestratégico”. E as consequências disso têm sido muito negativas. Para garantir a sobrevivência de Rojava, os dirigentes curdos fizeram dos seus pactos com Washington o eixo fundamental da sua acção. Mas na realidade foi uma miragem. Os EUA usaram as milícias curdas para os seus objectivos, e agora irão sacrificá-las sem mais contemplações, permitindo que Erdogan e os seus militares façam um massacre.
Este erro de colocar a acção militar acima de qualquer outra consideração conduz a outros factos. A política internacionalista e socialista é substituída por acordos diplomáticos para não incomodar o poder imperialista que garante as suas armas. Em suma, substituir uma política revolucionária e internacionalista por manobras vindas de cima com os imperialistas só irá semear a desmoralização nas fileiras Curdas.
Enquanto os fascistas fundamentalistas do HTS e do ENS formam um novo governo em Damasco que envolverá um pesadelo para as massas e agirá em questões decisivas como um peão dos EUA, de Israel e da Turquia, o líder militar de Rojava, Mazloum Abdi, tem defendido publicamente a participação nesse governo e dissolver as milícias curdas num exército sírio unificado sob controlo fundamentalista e imperialista:
“Estamos dispostos, no âmbito de um cessar-fogo, a retirar as nossas forças de Kobane e a abrir caminho para forças de segurança sob a supervisão de entidades como os Estados Unidos. Estamos a discutir esta questão com os americanos e eles estão a discutir esta proposta com a Turquia. Ainda não sabemos que política seguirá a nova administração dos EUA na Síria. Estamos em constante comunicação com vários representantes eleitos de todos os lados dos Estados Unidos. Pedimos a sua ajuda para pressionar os turcos a parar a sua ofensiva. Mas não falamos apenas com os americanos, estamos também em contacto com os nossos outros parceiros e amigos da coligação internacional. Finalmente, pedimos ao novo governo central em Damasco que cumpra o seu dever trabalhando para um cessar-fogo em toda a Síria (…)
Até ao momento, as declarações da nova Administração em Damasco são positivas e saudamo-las. O HTS não quer estabelecer um regime autoritário, como aconteceu com al-Assad, nem queremos um regime federal, nem a divisão do país. “Queremos fazer parte da Síria e queremos que os representantes desta província e desta região participem plenamente no processo político para que juntos possamos construir uma nova Síria”7.
Por mais que se queira disfarçar, estes argumentos são uma completa capitulação. O Curdistão sírio nunca será livre pelas mãos das forças jihadistas que controlam Damasco, pelos EUA ou por Israel. Pensar que com estas demonstrações de subordinação conseguirão convencer Washington a travar a ofensiva militar da Turquia em Rojava é uma completa insensatez, para dizer o mínimo.
Também não é coincidência que estas declarações dos principais líderes militares de Rojava surjam no momento em que uma delegação se reuniu, pela primeira vez numa década, com Öcalan na prisão da ilha de Imrali, no Mar de Mármara, a cerca de 50 quilómetros de Istambul.
No sábado, 28 de dezembro, Öcalan recebeu os deputados Sirri Süreyya Önder e Pervin Buldan, duas figuras históricas do partido DEM (anteriormente conhecido como HDP) que já faziam parte da delegação do partido pró-curdo (então conhecido pela sigla BDP) que em 2013 se reuniu com ele e a quem representaram nas negociações de paz subsequentes.
O encontro na prisão acontece depois do líder da formação ultranacionalista e de extrema-direita MHP, Devlet Bahçeli, o principal aliado do AKP no poder do Presidente Erdogan, ter proposto convidar Öcalan ao Parlamento turco para anunciar “a dissolução do PKK”.
Reproduzimos na integra o comunicado emitido pelos dois deputados curdos depois da visita, onde podemos ler as palavras de Öcalan:
“À Imprensa e ao Público,
No dia 28 de dezembro de 2024, realizámos uma reunião abrangente com o Sr. Abdullah Öcalan em Imrali. Ele está de boa saúde e a sua moral é notavelmente elevada. As suas avaliações sobre a procura de uma solução duradoura para a questão curda foram de vital importância.
Na reunião foram discutidos desenvolvimentos recentes no Médio Oriente e na Turquia, e o Sr. Öcalan apresentou propostas de soluções construtivas para contrariar os cenários impostos de um futuro sombrio.
Os pontos principais das suas reflexões e abordagens podem ser sumarizados da seguinte forma:
-
- Voltar a fortalecer a irmandade turco-curda não é apenas uma responsabilidade histórica mas também uma questão de importância decisiva e de urgência para todos os povos.
- Para garantir o sucesso deste processo, é essencial que todos os círculos políticos na Turquia se ergam acima de cálculos estreitos e de curto prazo, ajam de forma construtiva e contribuam positivamente. Sem dúvida, uma das plataformas mais importantes para estes contributos será a Grande Assembleia Nacional Turca (TBMM).
- Os recentes acontecimentos em Gaza e na Síria mostraram que a resolução desta questão, exacerbada por intervenções externas, não pode mais ser adiada. Os contributos e propostas da oposição são também valiosos para alcançar uma solução proporcional à gravidade deste assunto.
- Tenho a competência e a determinação necessárias para contribuir positivamente para o novo paradigma reforçado pelo Sr. Bahçeli e pelo Sr. Erdoğan.
- A delegação partilhará esta minha abordagem com os círculos estatais e políticos. Perante isto, estou pronto para dar os passos positivos necessários para tomar a decisão necessária.
- Todos estes esforços elevarão o país ao nível que merece e servirão como um guia muito valioso para a transformação democrática.
- Esta é uma era de paz, de democracia e de fraternidade para a Turquia e para a região.
Respeitosamente,
Pervin Buldan e Sırrı Süreyya Önder
29 de dezembro de 20248”
A declaração deixa pouco espaço para especulações. Parece que o líder máximo do PKK está disposto a fazer as maiores concessões políticas a Ancara.
Durante anos, sectores da esquerda e grupos que se declaram anarquistas e trotskistas idealizaram os líderes de Rojava, fechando os olhos ao perigo mortal representado pela sua política de colocar o destino da luta curda nas mãos de uma força tão criminosa e reaccionária como o imperialismo estado-unidense.
Se os EUA quiserem (e puderem) convencer Erdogan a aceitar a rendição que Abdi propõe, o resultado só poderá ser a subordinação total das forças curdas ao imperialismo e uma degeneração e corrupção como as que vemos na Autoridade Nacional Palestiniana. Ou pior, se possível: acabar no mesmo terreno que o regime reaccionário curdo controlado pela família Barzani no norte do Iraque, que não hesitou em ser cúmplice da sangrenta ocupação estado-unidense e continua a dançar ao som da música ditada pelos EUA, Israel e mesmo o regime turco. Em suma, uma derrota que as gerações de combatentes e mártires da causa curda não merecem.
O grande jogo imperialista na Síria e o cerco a Rojava também respondem em força a quem desde a esquerda promove ilusões na “multipolaridade” e ao suposto papel dos “imperialistas amigos” chineses e russos como contrapeso aos Estados Unidos, Israel ou Turquia. O que fez a China – o segundo parceiro comercial de Israel – para evitar o genocídio do povo palestiniano? Absolutamente nada. E a Rússia? O mesmo. Pequim e Moscovo não carregam o registo de morte e destruição de Washington, mas tudo o que lhes interessa é manter os seus negócios e áreas de influência. E tratam a questão curda com a mesma abordagem.
Sob o domínio capitalista e imperialista, povos oprimidos como os curdos ou os palestinianos só podem esperar barbárie, guerras e opressão. Qualquer pacto ou compromisso com as burguesias podres da região e os seus mentores imperialistas será letra morta e só semeará a desmoralização e a divisão, preparando novos massacres e derrotas. A libertação nacional do povo curdo, o direito ao seu território próprio e à independência, está intimamente ligado à revolução socialista e à defesa de um programa internacionalista.
A ação das armas é importante, mas a luta armada mostra-se completamente impotente se estiver desligada da acção de massas, se não estiver subordinada a um programa de classe e à transformação social. Acabar com o pesadelo de tanta destruição, com o sionismo genocida, com o uso das diferenças étnicas, nacionais e religiosas em guerras reaccionárias que apenas servem os interesses imperialistas, implica abraçar com força as ideias que nunca falharam aos oprimidos, as do autêntico comunismo revolucionário, e lutar por uma Federação Socialista do Médio Oriente.
Notas:
1.¡No a la agresión imperialista contra el pueblo kurdo!
2.Erdogan asegura que las milicias kurdas serán “erradicadas” de Siria y ofrece ayuda para redactar la nueva Constitución
3.Erdogan asegura que las milicias kurdas serán “erradicadas” de Siria y ofrece ayuda para redactar la nueva Constitución
4.Texto completo de la Constitución de las comunidades autónomas kurdas de Rojava
5.Al Hol: una sombra que ahoga
6.Siria afirma que una petrolera de EEUU ha firmado un acuerdo con los rebeldes kurdos
7.Para el comandante en jefe de las FDS, “la guerra no ha terminado en Siria”
8.Reunião dos dirigentes do partido DEM com Abdullah Öcalan na prisão de Imrali [em inglês]