Cem anos volvidos sobre a vitória da Revolução Socialista na Rússia, o estado de desorganização e despolitização da classe trabalhadora a nível mundial é, ainda, um factor preponderante na situação actual. Com as direcções de esquerda incapazes de apresentar uma alternativa credível à maioria dos trabalhadores e oprimidos e, nalguns países, sem existir sequer uma liderança de esquerda, o vazio foi preenchido por partidos e figuras populistas de direita e extrema-direita, que se apresentam como anti-sistema, mas que continuam a representar os interesses capitalistas na sociedade.

A crise capitalista mundial abriu um período de profunda transformação económica, social e, obviamente, política. Esta transformação política não se deu imediatamente durante os anos mais agudos da crise das dívidas soberanas, mas uns anos mais tarde. A crise do bipartidarismo capitalista, iniciando-se na Grécia com o quase desaparecimento do Pasok (PS grego), que abriu caminho ao crescimento e vitória eleitoral do Syriza; teve uma nova expressão no Estado Espanhol, com o impasse para formar governo durante quase um ano, obrigando à capitulação da burocracia do PSOE; e manifestou-se parcialmente em dois fenómenos de massas: Corbyn no Reino Unido e Sanders nos EUA.

No entanto, as manifestações desta crise não ocorreram apenas à esquerda. Na verdade, elas foram bastante mais numerosas e mais consequentes no campo da direita populista e nacionalista. Desde a Escandinávia à Itália, não esquecendo a Hungria de Jobbik, a quase vitória de Hofer na Áustria ou o Governo ucraniano com elementos neonazis, a crise do bipartidarismo abriu caminho à chegada ao poder de forças xenófobas, racistas, sexistas e nacionalistas. A “coroação” deste processo, do qual ainda não vimos o fim, foi a eleição de Donald Trump para a Presidência da principal potência imperialista mundial, os EUA. Trump foi eleito com uma retórica de campanha inundada de episódios de discriminação, de sexismo, de insulto a minorias étnicas e os primeiros meses da sua Presidência mostraram que ele e o seu gabinete estão comprometidos em fazer regredir os direitos reprodutivos das mulheres, dos trabalhadores, dos imigrantes e dos vários grupos étnicos nos EUA, dê por onde der.

Um caso paradigmático

Para compreender melhor este fenómeno, pode-se olhar, por exemplo, para França. Este país de fortes tradições progressistas tem, neste momento, Marine Le Pen, uma nacionalista, como candidata a Presidente com maiores intenções de voto na primeira volta. O seu partido, a Frente Nacional, tem vindo a crescer nos últimos anos sobre os escombros do Partido Comunista Francês (PCF), um dos primeiros a abraçar a doutrina do eurocomunismo e a abandonar a perspectiva da revolução socialista. Ao falhar na organização dos trabalhadores na luta por melhores condições de vida, o PCF deixou de representar a classe e foi progressivamente perdendo eleitorado e militância. Ao nunca ter debatido e propagandeado uma explicação internacionalista e sistémica para os problemas que afectam as classes mais baixas na sociedade, preparou o caminho para uma Frente Nacional “preocupada” com os empregos dos franceses e que se apresenta como novidade face aos partidos capitalistas tradicionais.

Também em Itália, o movimento populista Cinco Estrelas percorre as mesmas linhas, aproveitando-se da crise dos refugiados, que pressiona as já frágeis infraestruturas italianas e europeias, apoiando-se numa retórica racista para ganhar eleitorado. Também nesta matéria a esquerda se apartou – ou foi incapaz – de desmascarar a retórica nacionalista que tantos políticos capitalistas – alguns considerados de “esquerda” – utilizaram contra os refugiados. Em vez de ligarem a crise capitalista, a austeridade e a guerra, à situação dos refugiados e dos seus interesses comuns com os trabalhadores europeus, embarcaram numa retórica de apelo aos direitos humanos em sentido abstracto. Não podiam estar mais longe dos sentimentos e necessidades da classe trabalhadora nos países de acolhimento e passagem dos refugiados.

Uma Esquerda envergonhada

Perante este perigoso ascenso da extrema-direita, que fazem as lideranças da esquerda reformista? Infelizmente, a reacção mais comum tem sido esconderem-se nas saias da ex-social-democracia, procurando alianças inter-classistas para fazer face à ameaça “fascista” iminente. Vemos isso no apoio de Sanders e de alguma esquerda portuguesa à candidatura de Hillary Clinton, vemos isso agora com os apelos à aproximação entre Mélenchon e Hamon (ex-ministro do Governo PS de Hollande) para as presidenciais francesas e vemos, em grau menor, na Geringonça. E é esta cedência da esquerda a políticos capitalistas vistos como moderados que, em última análise, enfraquece essa mesma esquerda e fortalece a extrema-direita.

Sem programa para representar os interesses da classe trabalhadora, as direcções reformistas estão condenadas a desempenhar sempre um papel de bloqueio. Por isso é necessário que os militantes revolucionários e o movimento dos trabalhadores no geral tomem em suas mãos a luta contra a ameaça populista de direita, em particular as mulheres, que são as mais afectadas pelo conservadorismo presente neste tipo de movimentos.

A extrema-direita não oferece nenhuma alternativa real aos trabalhadores e o papel da esquerda deve ser, por um lado, desmascarar sistematicamente as suas propostas populistas e, por outro, organizar os trabalhadores para lutarem por melhores condições de vida e despoletar situações em que a direita nacionalista seja obrigada a ficar do lado dos patrões, pois são esses interesses que ela verdadeiramente defende.

E a ameaça fascista?

A utilização do termo fascista não é totalmente inocente e é necessária para prosseguir uma abordagem de Frente Popular. As chamadas “Frentes Populares” foram uma política de alianças inter-classistas da esquerda com os partidos pró-capitalistas tradicionais, constituídas após a subida ao poder de Hitler. Apesar da História ter desmentido a sua eficácia, assistimos a um ressurgimento das mesmas, mas de uma forma deturpada.

Sumariamente, o fascismo desenvolveu-se no período de instabilidade política e económica aberto na Europa após a Primeira Guerra Mundial, sobretudo nos países derrotados na guerra. Bandos paramilitares nacionalistas foram utilizados pelos Estados para responder ao movimento revolucionário da classe trabalhadora, que ganhou ímpeto acrescido com a Revolução socialista de 1917. Estes bandos, com apoio da burguesia, eventualmente tornaram-se nos vários partidos fascistas que subiram ao Poder anos mais tarde. A sua agitação assentava na crítica populista à corrupção dos políticos, na culpabilização das etnias e das organizações de trabalhadores e numa exaltação da Pátria. Firmados socialmente na pequena-burguesia, os partidos fascistas assumiram então o papel de braço armado da reacção contra a esquerda, eliminando fisicamente sindicalistas e dirigentes de esquerda.

Hoje em dia, quer a Frente Nacional (FN) quer Trump, apresentam características comuns aos partidos fascistas do séc. XX: a retórica nacionalista e conservadora, a xenofobia, a crítica populista da corrupção e o facto de se apresentarem como “alternativas” ao sistema. No entanto, nenhum destes exemplos tem bases sociais realmente mobilizáveis – a FN, por exº, tem assistido à saída do partido de vários vereadores eleitos nas últimas autárquicas. Sobretudo, a FN foi forçada a atenuar o discurso, por forma a tornar-se mais “elegível” para os trabalhadores e classes médias que rejeitam forças abertamente fascistas. Exemplos de organizações realmente fascistas hoje podem ser vistas na Aurora Dourada (Grécia), Jobbik (Hungria) ou na Ucrânia, onde forças paramilitares fascistas conseguiram algum poder ao participarem no golpe de Estado de 2014. Mas mesmo a sua existência não significa, para já, a derrota do movimento dos trabalhadores.

Assumir uma posição de classe

Estas nuances são importantes porque mostram que o movimento dos trabalhadores está longe de estar derrotado e que a esquerda deve confiar nas forças da classe trabalhadora para apresentar e lutar por uma alternativa ao capitalismo. Apesar das vitórias eleitorais de forças nacionalistas um pouco por todo o Mundo, estas deveram-se mais à falta de alternativa à esquerda do que a uma viragem da maioria da população à direita. Porque onde existe essa alternativa – Grécia, Estado Espanhol, Irlanda, entre outros – os trabalhadores e a juventude têm respondido afirmativamente ao seu apelo.

Em conclusão, é necessária uma análise séria da situação actual, a partir da qual se possam retirar lições úteis ao movimento, e não um alarmismo catastrofista que apenas semeia o derrotismo e a capitulação aos interesses da burguesia. Os marxistas não podem abandonar uma posição independente de classe, a única que representa inteiramente os interesses dos trabalhadores e explorados.

 

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