A morte de Danijoy Pontes e Daniel Rodrigues no Estabelecimento Prisional de Lisboa na mesma manhã a 15 de setembro do ano passado trouxe alguma luz àquela que é a realidade das prisões em Portugal. Esta realidade, que contraria todas as ideias de “reintegração social”, é que, em capitalismo, os presos são os pobres: é a nossa classe que é vítima da maior brutalidade na cadeia e cujas vidas são descartadas depois de servirem como carne para canhão.
O Estado não serve para proteger os trabalhadores e os pobres!
Como Engels explicou em detalhe na sua obra, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, na história da humanidade nem sempre existiu Estado: numa sociedade livre, todos garantem a segurança de todos; é quando a sociedade se divide pela primeira vez em classes — os proprietários e os escravos — que surgem corpos especializados para a manutenção da “ordem”. Não existe forma de manter uma sociedade com exploração a não ser pela violência.
O Estado é fundamentalmente um instrumento criado para garantir a dominação de uma classe sobre outra. A polícia, as leis e as prisões como hoje as conhecemos só surgem perante a necessidade de manter a classe dominada sob controlo.
Qualquer conquista cristalizada no Estado capitalista que beneficie a nossa classe, como o salário mínimo, a escola e saúde públicas ou o sistema de reformas, foi arrancada a unhas e dentes à classe dominante.
Mas estas funções sociais que a luta dos trabalhadores forçou o Estado burguês a cumprir não alteram a sua natureza. Em todos os momentos chave, o Estado revela a classe que serve, mostra ser o comité administrativo dos interesses comuns da classe dominante — usa os impostos para salvar a banca privada, usa a requisição civil sempre que uma greve ameaça o funcionamento do sistema, usa a polícia para reprimir greves e manifestações ou para manter a juventude pobre “na linha”.
A liberdade que o Estado garante é a liberdade individual do capitalista, para explorar os trabalhadores. A segurança que garante é a segurança para quem tem propriedade privada. As leis, os tribunais, as forças de “segurança”, todos os órgãos do Estado, inclusive o Parlamento, servem como garante da exploração da nossa classe.
Desde 2003 que sabemos que Portugal é dos países da União Europeia em que mais se morre de frio em casa1 sem que o Estado nada faça ou que durante a pandemia os hospitais públicos estivessem a abarrotar sem que o Estado tivesse feito uma requisição civil dos hospitais privados. Precisamente porque a sua função é salvaguardar o lucro das gigantes imobiliárias e das empresas energéticas. E podíamos continuar a dar exemplos semelhantes.
O sistema prisional, parte indispensável do Estado, orienta-se também por este princípio básico, legitimando-se com uma visão individualista e moral do crime.
Todo o jovem que é empurrado para o crime por não conseguir emprego ou por não conseguir, mesmo com emprego, pagar uma vida digna, é condenado como um indivíduo com uma moral corrupta que merece ser castigado — mesmo que não cometa qualquer tipo de crime violento. A solução não é arranjar emprego digno, habitação social e opções reais de cultura e lazer, mas antes encarcerar a pessoa. Este castigo individual não resolve nenhuma das causas da criminalidade nem funciona como reabilitação!
A justiça tem classe!
Sabendo que o Estado não é neutro, tampouco o sistema prisional o poderia ser. Este tenta ocultar o facto da esmagadora maioria dos presos serem pobres ao recusar-se a recolher dados sobre a sua origem socioeconómica. Mas por outros dados conseguimos uma imagem geral. No ano de 2020, mais de 80% dos reclusos em Portugal não tinham feito o secundário2.
Ao mesmo tempo, o sistema prisional reflete um sistema económico assente no racismo. Em 2020, dizíamos que “o capitalismo português, especificamente, depende da superexploração da força de trabalho para garantir os lucros em vários sectores fundamentais [...] A maioria destes trabalhadores superexplorados é imigrante, descendente de imigrantes, negra, asiática, brasileira... Só se pode manter uma massa de trabalhadores numa tal situação de superexploração — portanto, de subemprego e desemprego cíclicos, de miséria, de fome — através do terrorismo de Estado.”3 Referíamo-nos à brutalidade policial a que trabalhadores e a juventude racializada estão sujeitos, mas este terrorismo de Estado inclui as consequências últimas desta perseguição pela “justiça”.
A população imigrante constitui perto de 7% da população em Portugal, mas constitui mais de 15% da população encarcerada — sendo que se olharmos concretamente para as populações angolana, cabo-verdiana, guineense, são-tomense e brasileira, a desproporção chega a ser entre 5 a 10 vezes maior. Com taxas de desemprego duas vezes maiores e médias salariais quase três vezes menores, é impossível separar os crimes levados a cabo — na sua maioria relacionados com a droga ou roubos — e a pobreza. Condições de miséria e uma ausência de perspetiva de futuro são a explicação para isto. Na pobreza não existe “liberdade” — a única alternativa, para muitos jovens, é o crime. A estas condições, acrescenta-se o racismo dos julgamentos: apesar da ocorrência de crimes violentos ser mais baixa entre a população imigrante, as penas de prisão de 3 anos ou mais são mais comuns; existe também uma taxa mais alta de aplicação de prisão preventiva.
É também nas prisões portuguesas que se passa mais tempo por crimes menores: Portugal é o 2º país europeu em que os reclusos se mantêm mais tempo encarcerados, sendo a mediana portuguesa quatro vezes maior do que a mediana europeia — 32 meses e 8 meses, respetivamente. Ao mesmo tempo, os crimes realmente violentos (violência doméstica, violação, homicídio, etc) compõem perto de 30% das condenações — no entanto mais de 80% das penas têm uma duração de mais de 3 anos. A aplicação de penas brutais para a pequena criminalidade é a regra. O caso de Danijoy não foi exceção. A totalidade da sua pena teria sido 7 anos no sistema prisional por roubo de telemóveis, ou seja, à data da sua saída prevista, seria um jovem de 23 anos que teria passado 1⁄4 da sua vida encarcerado por um pequeno crime não-violento. Aos 7 anos de encarceramento é preciso ainda acrescentar as condições desumanas a que os presos estão sujeitos.
População nacional ou imigrante, racializada ou não, a realidade é esta: a classe dominante não pode ignorar a população que é empurrada para a pobreza. Esta população é material explosivo que o Estado procura gerir e, acima de tudo, desorganizar. Isto é feito de várias formas, e os instrumentos mais importantes para manter a “ordem” são os órgãos repressivos, ou seja, as polícias, os tribunais e, por fim, as prisões onde são colocados os pobres em condições abjetas.
As prisões são o paraíso dos fascistas
O fascismo é a ferramenta que a classe dominante utiliza quando esgota as restantes possibilidades de manter o seu domínio económico e político. Não conseguindo assegurar o seu controlo através de uma democracia, a classe capitalista dá total liberdade às forças repressivas para esmagar a classe trabalhadora e todas as suas organizações. As prisões são, mesmo dentro de uma democracia burguesa, instituições que funcionam de forma completamente fascista.
Sem qualquer tipo de controlo democrático, os guardas prisionais têm toda a liberdade para humilhar e violentar os reclusos. O exemplo mais mediatizado foi em Setembro de 2010, quando elementos do Grupo de Intervenção e Segurança Prisional dispararam os seus tasers sobre um recluso semi-nu que não apresentava nenhuma resistência — e que, depois de algemado e deitado no chão, continuou a ser humilhado4.
A isto juntam-se condições materiais infernais: as temperaturas extremadas, a falta de divisória entre retrete e beliches, a terrível humidade, camaratas de 14 pessoas… tudo isto é a norma nas prisões portuguesas. Há relatos de reclusos que acordam com ratos a morder-lhes os pés! E a grave insuficiência de profissionais de saúde nos estabelecimentos prisionais, nomeadamente psicólogos e psiquiatras, significa que o direito à saúde é inexistente.
A sobrelotação agrava estes problemas com estabelecimentos prisionais a atingirem os 160% da sua lotação. Isto faz com que uma cela de 4 pessoas, que por si não é funcional, passe a alojar 12! Nestas condições, perdendo também os reclusos a capacidade de controlar os seus horários — para acordar, para refeições, para dormir — que tipo de “reabilitação” pode ter um jovem nesse período de tempo?
Acrescenta-se ainda as penas completamente arbitrárias que estes “guardas” atribuem a seu bel-prazer — para eles, se uma reclusa pinta as unhas a outra reclusa ou se troca de peças de roupa com esta, isso será sinal de negócio ilegal, valendo-lhe 2 ou 3 dias de solitária5.
Além da violência gratuita, o outro pilar da prisão é o trabalho escravo. Perto de metade dos reclusos em Portugal exercem algum tipo de trabalho, quer para a indústria privada quer para o Estado. Produção de azeite, mobiliário, tapetes, vinho, manutenção de máquinas e do parque automóvel dos estabelecimentos prisionais… a força de trabalho da população prisional é espremida por um salário de miséria. A melhor remuneração que se consegue encontrar na cadeia é de 5 euros por dia, pagos pelo Estado! Ou seja, ao fim de um mês de trabalho com 8 horas diárias o recluso acumulou 150 euros! E isto no melhor caso. Há reclusos a receber uns míseros 60 euros por um mês de trabalho![5]
A justificação para esta superexploração é a reinserção, o que é uma mentira completa: nenhum destes reclusos é empregado assim que cumpre a sua pena — nem pelas empresas privadas nem pelo Estado. Por muito que se tente pintar um quadro feliz, a realidade das prisões não passa de violência indiscriminada e de trabalho escravo.
O reformismo face às prisões
Entre a esquerda, há aqueles que negam o carácter de classe do Estado e, por isso, também do sistema prisional. Segundo estes reformistas, as prisões podem de facto cumprir um papel de reabilitação, se tiverem melhores condições.
Obviamente, os revolucionários não se opõem a reformas. Qualquer medida que diminua a violência prisional, melhore as condições de higiene e saúde nas prisões, etc., tem o nosso apoio. Mas não podemos ter quaisquer ilusões sobre a finalidade do sistema prisional, e temos de deixar claro que qualquer melhoria nas condições de vida dos reclusos só será conquistada com a luta da classe trabalhadora, nunca nos será dada por qualquer governo.
As tentativas de apresentar como modelo o sistema prisional de alguns países nórdicos, como na Noruega, esquecem que esse modelo é o resultado de condições históricas muito específicas que envolvem gigantescas lutas de trabalhadoras a nível internacional — e até a Revolução Russa e a proximidade da URSS —, e, acima de tudo, uma posição muito vantajosa no capitalismo mundial. A burguesia norueguesa pode dar-se ao luxo de manter prisões com melhores condições que a burguesia portuguesa precisamente porque o seu Estado e o seu capital beneficiam da exploração e das condições abjetas de existência de milhões de trabalhadores muito para lá das fronteiras da Noruega.
Não existe um capitalismo com menores níveis de exploração e opressão no norte da Europa sem um capitalismo genocida na América Latina, no Médio Oriente, em África e na Ásia — não existe um número minúsculo de prisões consideradas “dignas” e com “respeito pelos direitos humanos” sem existir uma esmagadora maioria de prisões hediondas.
Não há solução para o crime nem para as prisões em capitalismo!
Nem a natureza social do crime nem a brutalidade das prisões podem ser alteradas sem o fim do sistema capitalista. O desemprego, o custo de vida e a falta de perspectivas futuras produzem o grosso do crime, e a falta de condições e o racismo do sistema penal produzem a prisão como a conhecemos. O capitalismo não tem soluções para nenhum destes problemas!
Só a planificação da economia e um investimento massivo para resolver os problemas que afligem a classe trabalhadora e os pobres podem terminar com a maioria do crime, e só o socialismo é capaz de fazer isto.
O movimento contra as prisões tem de ser dirigido com uma perspetiva revolucionária, uma que reflita a necessidade de ultrapassar este sistema moribundo que só tem sofrimento para nos oferecer. Ao mesmo tempo, qualquer partido revolucionário tem de tomar como sua bandeira acabar com esta máquina cuja única função é reprimir e desorganizar a nossa classe, culpar-nos pela criminalidade que o sistema gera e ainda dar superlucros aos capitalistas com o nosso trabalho escravo.
É preciso construir uma esquerda combativa que levante um programa socialista, rumo ao fim destas prisões e do crime, começando por lutar pelo fim imediato das penas de prisão por crimes não violentos e pela libertação de todos condenados por esses crimes — a prisão não educa nem reabilita; garantir direitos iguais para trabalhadores imigrantes e nacionais e o direito à nacionalidade para todos os trabalhadores em Portugal; o saneamento dos fascistas e racistas de todos os órgãos do Estado; o aumento do salário mínimo, das pensões e do subsídio de desemprego para 1200 euros; o investimento massivo na habitação pública e a nacionalização dos setores da energia e das águas sob controlo dos trabalhadores; o investimento massivo no sistema de educação público e numa rede de centros culturais e de lazer; a nacionalização sob controlo dos trabalhadores de toda a saúde e o reforço nos tratamentos para alcoolismo e toxicodependência; e a nacionalização da banca sob controlo dos trabalhadores para permitir a realização de todas estas reivindicações com a riqueza acumulada pelos grandes capitalistas à custa do trabalho e do sofrimento de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.
Notas:
1. Portugueses vivem com frio dentro de suas casas
2. Estatísticas Prisionais Portuguesas - Karla Tayumi Ishiy
3. A polícia e a comunicação social tentam mascarar mais um assassinato racista. É preciso voltar à luta nas ruas!