Os constantes encerramentos de urgências este verão — quatro vezes superiores ao ano passado — revelam o brutal aumento da degradação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) no último ano. A situação mais grave é das urgências de obstetrícia, ginecologia e pediatria. Houve dias em que apenas uma única urgência de obstetrícia esteve aberta para servir toda a Lisboa ou todo o Algarve. A margem sul e o distrito de Leiria chegaram a ficar sem urgências por vários dias. Centenas de grávidas foram obrigadas a fazer viagens de mais de uma hora até à urgência mais próxima — sobrelotadas, por receberem grávidas das fechadas — resultando em mais de 40 nascimentos em ambulâncias sem condições para assegurar um parto em segurança. Uma situação gravíssima que põe em perigo a saúde — e até a vida — de mulheres e bebés. Sem alterações estruturais, que permitam reverter esta degradação, é apenas uma questão de tempo até tragédias se multiplicarem no SNS.
O PS preparou o caminho para a privatização do SNS
A situação em que se encontra o SNS é legado de quase 10 anos de governo PS sem investir o necessário no SNS — com aumentos abaixo do aumento dos gastos —, sem abrir concursos — substituindo especialistas por médicos internos1 e tarefeiros precários e abusando das 150 horas extraordinárias obrigatórias anualmente — e sem aumentar os salários dos profissionais de saúde. Sem condições, os médicos emigram, pedem reforma antecipada ou, principalmente, vão para o privado — é o caso de mais de metade dos ginecologistas e obstetras — diminuindo e sobrecarregando as equipas. Em períodos de férias o número de tarefeiros e contratados disponíveis diminui, tornando-se impossível esconder a falta de médicos através de horas extraordinárias ou malabarismos com escalas. Sem se poder atingir um número mínimo das equipas médicas para assegurar a assistência a pacientes em condições de segurança, as urgências fecham.
Com a crise do SNS a aumentar, cada vez mais utentes são encaminhados do SNS para os privados, sendo agora também o caso da obstetrícia: se no ano passado foram enviadas duas dezenas de grávidas para privados, este ano o número já duplicou2. Entre 2020 e 2023 as despesas com serviços convencionados aumentaram 37%, para quase 1.000 milhões de euros. Já com as empresas de trabalho temporário que recrutam tarefeiros a preços exorbitantes e com horas extra o SNS gastou mais 670 milhões de euros. Quantos profissionais de saúde não daria para contratar e quanto não se poderia aumentar os seus salários com este dinheiro? O SNS é assim propositadamente degradado para financiar — em metade das suas despesas! — o crescimento dos grupos privados, que aumentou 50% na última década.
Mas o PS foi ainda mais longe para garantir o crescimento dos privados. Avançou com a municipalização da saúde para abrir caminho à privatização dos cuidados de saúde primários e criou a Direção Executiva do SNS (DE-SNS) para reorganizar o SNS como mais conviesse aos privados3. O PS tentou desta forma, escondendo-se por detrás dos municípios e da DE-SNS, evitar assumir a responsabilidade da privatização por receio da reacção da sua base social. Criou as condições para a privatização, e, sem as suas amarras, o PSD vem agora pô-la em prática.
O PSD coloca a privatização em prática
O SNS tem o apoio massivo da classe trabalhadora, que não tem como pagar os preços do privado. Todas as medidas aprovadas pelo governo têm por isso de ser envernizadas por uma camada de mentiras que implique a melhoria dos serviços mas esconda o verdadeiro propósito: aumentar a degradação do SNS, a transferência de dinheiro deste para os privados e a sua privatização. Um exemplo são os Centros de Atendimento Clínico (CAC), que em teoria serviriam para receber doentes não-urgentes para descongestionar as urgências, mas não só não servem esse propósito como vêm piorar a situação ao retirar profissionais de saúde de outros serviços e obrigá-los, já exaustos, a fazer horas extra. O da Prelada, no Porto, já foi entregue até 2025 à Santa Casa da Misericórdia do Porto, com um gasto de 65 milhões de euros, abrindo a porta a que mais sejam entregues aos privados.
Outras medidas do Plano de Emergência da Saúde que também fazem avançar a privatização foram rapidamente postas em prática — é grande a ânsia da burguesia em poder abrir os sectores públicos ao roubo de mais-valia. O “reforço da resposta pública em parceria com o setor privado” previsto já se materializou no anúncio da criação de 20 unidades de saúde familiar dos centros de saúde atribuídas por concurso aos privados, e terão as mesmas consequências desastrosas dos CAC. Depois do governo de Cavaco Silva ter lançado há quase 30 anos as parcerias público-privadas (PPPs) nos hospitais, o governo de Montenegro estende-as agora aos cuidados de saúde primários.
Só medidas como a nacionalização dos privados, o aumento de salários e a contratação de mais profissionais poderia travar a degradação do SNS4. Pelo contrário, o Ministério da Saúde alterou a forma de contratação de especialistas, passando de um concurso nacional público para concursos individuais de cada instituição. Isto resultou no abuso de contratos individuais que impõem de forma ilegal mais horas de trabalho em urgências a médicos de outras especialidades e nos piores atrasos na colocação de médicos de sempre — estando por colocar no SNS cerca de 1000 médicos que já terminaram a sua formação há meses. É propositado: o governo sabe que quanto maior for o caos que instaurar no SNS menor será a oposição à privatização, por puro desespero de profissionais e utentes5.
Lutar contra a privatização do SNS implica lutar de forma unificada contra o governo dos patrões!
Apoiado pela extrema-direita e sem uma oposição consequente da esquerda reformista, o governo liderado pelo PSD está a mostrar ser um fiel sucessor do de Passos Coelho, atacando os direitos da classe trabalhadora e os serviços públicos. À privatização da saúde junta-se a da educação, desviando 46 milhões de euros da escola pública para contratos de associação com colégios privados, e os ataques aos nossos irmãos imigrantes para que se mantenham em situação de ilegalidade e portanto de mais fácil exploração. Estes ataques são uma ordem de magnitude mais graves que os do PS. E apesar disto, nada mudou na atuação das direções políticas reformistas e sindicais, a mesma da última década.
As burocracias sindicais continuam a marcar greves organizadas de cima para baixo, isoladas e apenas de um ou dois dias, com o único intuito de trazer o governo a negociar à porta fechada. Têm ainda gasto a energia das suas bases com inócuos atos públicos em defesa do SNS, prontamente ignorados por governo e comunicação social. A União dos Sindicatos de Lisboa (USL) foi capaz de juntar os seus sindicatos para um destes atos performativos, mas recusa-se a juntá-los de forma a unificar as suas greves numa greve geral da saúde, a única forma de aumentar a combatividade da luta e estendê-la a todos os trabalhadores da saúde em defesa de melhores condições para si e do próprio SNS. As direções sindicais da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP) e de outros sindicatos da CGTP do sector condenam deste modo a luta ao fracasso.
Evitando assumir estes erros e alterar os seus métodos, a direção da FNAM caracteriza o governo de “intransigente”6. Mas a “intransigência” de um governo não é um fenómeno absoluto, deriva de uma correlação de forças para si favorável na luta de classes. Qualquer governo burguês, quer seja liderado por PSD, PS ou outros, atuará conforme os interesses da burguesia, e avançará tanto mais quanto mais espaço lhe for dado para isso pela classe trabalhadora. Se a única oposição que a classe trabalhadora lhe oferece são pequenos atos públicos e greves isoladas, um governo burguês, que atua como gestor da burguesia, pode simplesmente ignorá-la — ou, por outras palavras, “ser intransigente”. É apenas quando a classe trabalhadora se unifica e faz uso dos seus métodos de classe como a greve geral — organizando-a e discutindo-a democraticamente em assembleias, votando a cada dia como atuar e se a prolonga — que a correlação de forças lhe passa a ser favorável e tem a oportunidade de conquistar mais direitos.
Décadas de conciliação de classes e de aceitação da ordem burguesa por parte das burocracias sindicais e das direções políticas reformistas deseducaram a classe trabalhadora e ocultaram-lhe a magnitude da sua própria força, permitindo à burguesia avançar nos seus ataques até chegar ao ponto de privatizar duas das maiores conquistas da revolução portuguesa: o SNS e a escola pública. Todos os trabalhadores da saúde e de todos os outros sectores têm de rejeitar os métodos contraproducentes utilizados pelas suas direções, que só trouxeram derrotas, e começar a organizar comités nos seus locais de trabalho que sirvam de bases para por em prática os métodos da nossa classe. Para organizar uma greve geral de massas que coloque a gestão da saúde nas nossas mãos e portanto garanta a nacionalização dos privados e o fim das privatizações, a melhoria das condições de trabalho para todos os profissionais e de serviços enquanto utentes. Um SNS público, gratuito e de qualidade para todos depende disso.
Notas
1. Muitas urgências são asseguradas unicamente por médicos tarefeiros e internos, representando estes últimos um terço dos médicos do SNS. Os internos, por estarem ainda em formação — e sem autonomia para prescrever medicamentos ou assinar altas médicas — não deveriam assumir esta responsabilidade sem a presença de médicos especialistas. Esta situação compromete ainda a qualidade da sua formação, gerando médicos menos preparados no futuro.
2. Os privados cobram cerca de 2.000€ por um parto normal e 3.000€ por uma cesariana, que fazem 80% das vezes, a grande maioria desnecessariamente apenas para extorquir mais dinheiro e apesar de saberem ser um procedimento mais perigoso para ambos mãe e bebé. Prevendo um maior fluxo para os privados, o governo implementou a “revisão da tabela de preços convencionados” prevista no Plano através de um aumento de 300% no preço das ecografias.
3. A DE-SNS substituiu membros dos órgãos de gestão de hospitais, institutos de oncologia e ULS por outros mais adeptos da privatização. Foi o caso da atual Ministra da Saúde Ana Paula Martins, que assumiu a presidência do CHULN, administrando o Hospital Santa Maria e o Hospital Pulido Valente, depois de ter sido diretora de uma seguradora, vice-presidente do PSD, e sempre ter defendido o avanço dos privados na saúde.
4. As escassas medidas interessantes que iam nesse sentido, como a contratação de psicólogos, não avançaram nem irão avançar — o que não impede que o governo as contabilize como concluídas para enganar a classe trabalhadora a acreditar que está a por em prática algumas medidas positivas.
5. O resultado a longo prazo poderia ser a privatização de parte do SNS — mantendo uma parte pública de péssima qualidade à qual continuar a sacar dinheiro com os serviços convencionados — praticando preços insuportáveis para a classe trabalhadora.
6. Mais recentemente a direção da FNAM passou a “exigir uma ministra [da saúde] que sirva o SNS”, o que é perfeitamente inútil enquanto lá estiver este governo pois o programa da ministra está alinhado com o do governo, assim como estará o de qualquer pessoa que este governo colocar nesse ministério. Ao individualizar a luta na ministra em vez de apontar à queda do governo, a direção FNAM compromete tanto a luta do sector da saúde como uma luta mais ampla com outros sectores como a educação, cortando os laços de solidariedade de classe.