O mundo aproxima-se de 50 milhões de casos registados de covid-19 e a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera “muito provável” que antes de uma vacina eficaz estar disponível o número global de mortes duplique, ultrapassando os dois milhões. O sistema capitalista, mesmo em países tão desenvolvidos como os EUA, o Reino Unido ou a França, é absolutamente incapaz de usar a tecnologia, os recursos e o conhecimento acumulados pela humanidade para fazer frente ao vírus e àquela que é já a maior crise económica da história, com a previsão mais optimista a ser de uma queda de 4,5% do PIB mundial este ano. A catástrofe é completa. Ainda assim, a classe dominante não dá tréguas, e todos os governos, desde os mais reaccionários aos social-democratas, deixam claro para quem governam, defendendo zelosamente os lucros — ou, na sua linguagem, “salvando a economia” — enquanto os trabalhadores, os camponeses e todos os oprimidos engordam o número de infectados, de mortos e de famintos. O “progresso moral” da sociedade capitalista desde as guerras mundiais é mais evidentemente do que nunca uma alucinação liberal. Os burgueses e os seus Estados estão tão dispostos a sacrificar vidas hoje quanto estavam há um século, e, se não formos nós a travá-los, sacrificarão tantas vidas quantas forem necessárias para preservar o seu sistema putrefacto.

Os responsáveis não são os trabalhadores e os pobres...

Em Portugal, nove meses após o primeiro caso de coronavírus, a segunda vaga da pandemia é uma impiedosa realidade, com os casos diários a escalar até aos 7 milhares.

Como em todo o mundo, esta situação tem sido aproveitada ao máximo para avançar com uma onda de ataques contra a classe trabalhadora, que além da supressão de direitos democráticos vem ainda acompanhada de uma ofensiva ideológica.

Desde a chegada do vírus que o governo e a comunicação social burguesa trabalharam em perfeita harmonia não só na disseminação do ideal reaccionário de “unidade nacional” como, fundamentalmente, na culpabilização das massas, especialmente as camadas oprimidas e pobres da classe trabalhadora. Os jornais e telejornais encheram-se de “notícias” sobre aglomerações de jovens, procurando agitar a indignação moral de trabalhadores contra trabalhadores e, claro, da pequena-burguesia ilustrada contra a ralé “sem civismo”. Até agora, o ponto mais baixo desta campanha foi a notícia completamente falsa de uma festa com “mais de 300 pessoas” na Cova da Moura, Amadora, através da qual se procurou ainda legitimar outra onda de repressão policial no bairro, com agressões brutais da PSP contra os trabalhadores pobres e a juventude negra.

Esta campanha chega mesmo a vir mascarada de “ciência”, recorrendo, claro está, à estatística. Por altura da reabertura das escolas, um conveniente relatório da Direcção Geral de Saúde (DGS) indicava que 49% dos contágios na última quinzena de Agosto aconteceram em contexto familiar e apenas 16% em contexto laboral. António Costa avisava, simultaneamente e entre fortes apelos à “responsabilidade pessoal”, que “se nós tivermos de voltar a parar o país isso teria um custo absolutamente insuportável para a vida das famílias, para as empresas, para todos em Portugal”.

O número mais elevado de contágios em contexto familiar, a ser verdade, não pode surpreender-nos. A crise de habitação obriga as famílias trabalhadoras a juntar duas e até três gerações de adultos sob um mesmo tecto. Como é penosamente evidente, desta maneira, cada contágio no local de trabalho significa uma dúzia de contágios em contexto familiar, em condições de habitação que aumentam ainda mais os riscos de saúde. A nossa classe vive em casas frias e húmidas, sem o isolamento apropriado e num país onde 19% da população (as famílias trabalhadoras mais pobres) não tem dinheiro para aquecimento durante o Inverno.1 Não por acaso, mais de 5% de todas as mortes em Portugal são por pneumonia, e 11.7% por doenças respiratórias em geral.2 Qual é, então, o propósito de frisar que o contágio se dá em casa senão confundir a “opinião pública”?

Todo o discurso moralista, anti-operário e racista articulado entre o Estado e a comunicação social não tem outro propósito senão ilibar a burguesia e o seu governo. A hipocrisia é gritante. Enquanto se produz esta odiosa campanha de mentiras e repressão contra a nossa classe, somos todavia incentivados a frequentar perigosos espaços de consumo e comércio, e eventos como a Fórmula 1 e festas em clubes de luxo — uma das quais provocou recentemente um surto em Cascais — são ignorados pelo aparelho de Estado.

... são os capitalistas e os seus lacaios no governo!

O problema está muito longe de ser a suposta irresponsabilidade da juventude pobre e de classe trabalhadora. O problema é a existência de um sistema económico que serve o lucro e não as necessidades humanas. De que outra forma se explica o Orçamento do Estado (OE) para 2021?

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é mantido numa situação degradante, com subinvestimento crónico, com falta de trabalhadores, falta de equipamentos, falta até mesmo de camas, enquanto o Estado canaliza fortunas para os bolsos de capitalistas da saúde privada. Mesmo perante uma pandemia que ameaça dezenas de milhares de vidas, os privilégios da burguesia são mantidos para lá de qualquer questionamento.

Vemos isso também com a abertura das escolas, infantários e creches — medida que visou acima de tudo levar os pais de volta ao trabalho. Depois de se ter recusado durante 5 anos a fazer o investimento necessário no sistema de ensino, o executivo de Costa pretende manter expostos ao novo coronavírus os estudantes, professores e trabalhadores da Educação, em escolas que sofrem de um subinvestimento crónico e de uma falta de pessoal que, se já tornava impossível o funcionamento apropriado antes da pandemia, torna agora igualmente impossível o cumprimento devido de medidas de segurança como a desinfecção dos espaços e materiais. Os trabalhadores e as trabalhadoras do sistema de ensino são uma população envelhecida, mal-paga, durante décadas desprezada e a quem agora o governo exige um milagre sem providenciar sequer a formação adequada para as funções sanitárias que lhes impõe.

Como último exemplo, temos a situação aterradora dos transportes. Qualquer pessoa que seja obrigada a frequentar os transportes colectivos à hora de ponta tem uma consciência bem clara da irracionalidade deste sistema, que em plena pandemia força incontáveis milhares de trabalhadores a viajar durante horas em autocarros e carruagens completamente apinhadas e mal-ventiladas. Nisto, as empresas públicas de transportes funcionam igualmente com subinvestimento crónico e uma dramática falta de equipamentos para que os fundos públicos possam gastar-se a assegurar os lucros das empresas privadas de transportes, as mesmas que se recusam a investir em medidas de segurança porque estas, como é sabido, não lhes garantem qualquer lucro.

Mesmo medidas correctas como a obrigatoriedade da máscara só seriam eficazes se fossem integradas num plano robusto de combate à pandemia: parar toda a produção e serviços não-essenciais, reconverter a indústria para a produção de equipamentos médicos, investir massivamente na educação para possibilitar o ensino de qualidade à distância e, acima de tudo, nacionalizar todo o sector da saúde e investir de forma massiva no SNS, renovando os equipamentos e contratando dezenas de milhares de profissionais para fazer frente a esta pandemia e garantir o acesso gratuito e universal à saúde. Este plano, claro está, implica chocar frontalmente com os interesses dos capitalistas, antes de mais por ser inviável sem a imediata nacionalização da banca e sem a expropriação do capital financeiro.

Em suma, completamente incapaz de agarrar o gigantesco problema que a crise económica e a pandemia lhes colocam, Costa e os seus amigos contentam-se em beliscar-lhe as pontas... sempre levemente, para não incomodar os banqueiros, os capitalistas da saúde privada, do comércio, da indústria. O que se fez até agora são medidas cosméticas ou de gestão da raiva social: decreta-se a obrigatoriedade de uma aplicação de telemóvel entre sectores determinados, força-se ao confinamento os desempregados e trabalhadores informais em numerosos concelhos, incrementa-se o policiamento e a repressão sobre os mais pobres e oprimidos. Além do já mencionado caso da Cova da Moura, o caso do bairro da Jamaica, onde, em Maio, um desmedido aparato policial foi utilizado para fechar a cadeado os poucos cafés que existem, é bem instrutivo. Situações semelhantes multiplicam-se pelo país, com os órgãos de repressão do Estado a violentar os mais pobres e oprimidos enquanto se permitem os mais arriscados comportamentos aos turistas e à pequena-burguesia abastada.

São estes os verdadeiros responsáveis pela segunda vaga de covid-19, aqueles que lucram enquanto nós adoecemos e morremos... aqueles que chegam a lucrar até mesmo com a nossa doença e as nossas mortes.

O novo estado de emergência

A burguesia pressente, como resultado da crise, um tremendo choque entre as classes num futuro ainda indeterminado, e apesar de divisões e tensões intestinas, já mostrou qual é a sua aposta para gerir a raiva social durante a crise sanitária: proteger o governo de Costa e usá-lo para manter a paz social enquanto a direita, incluindo a extrema-direita, se recompõe. Foi ninguém menos que o presidente da república, Marcelo Rebelo de Sousa, quem se prestou a assumir a “responsabilidade suprema” por “atrasos, improvisos e erros” cometidos na gestão desta pandemia — e isto depois de deixar também ao primeiro-ministro os louros de pedir um novo estado de emergência . A jogada é clara: colocar sobre o presidente esta primeira parte do desgaste político provocado por todos os ataques aos trabalhadores e pela gestão criminosa da pandemia — um presidente que prevê a sua reeleição segura em Janeiro.

Nas declarações à imprensa, Marcelo ousou ainda dizer que tem a ajuda do PS e do PSD para fazer frente aos desafios da actual conjuntura. Não mentiu. Rui Rio e a cúpula do PSD, desde o início da crise económica e sanitária, mostraram uma total fidelidade ao discurso de “unidade nacional” que Marcelo e Costa repetem a cada oportunidade. A direita não tem pressa em chegar ao poder agora, e a classe dominante está ciente de que a sua melhor hipótese de manter o controlo da situação durante a crise sanitária é deixando que o PS e a esquerda se desgastem no esforço de manutenção da paz social.

O novo estado de emergência, tal como o anterior, será um ataque à classe trabalhadora. Mas desta vez o estado de emergência não será declarado sob pressão das massas, e é isso que explica a insistência de Costa e Marcelo em classificá-lo como “diferente”. Será “diferente” porque, em linha com as declarações do primeiro ministro em Setembro, não voltará a paralisar sectores da economia. Não implicará o encerramento de centros comerciais ou de escolas, não implicará nada que prejudique os lucros, depositando todo o peso da catástrofe capitalista sobre os ombros dos explorados e oprimidos. Preparam-se mais pesados ataques aos direitos democráticos, aos direitos laborais e aos salários, com a supressão do direito à greve e à organização, sujeitando a massa crescente de desempregados e pobres — especialmente os jovens — à disciplina do cacetete e da bota policial. Para os capitalistas e para o seu fiel governo PS, a emergência não é a pandemia, é a raiva social que se acumula e que, tarde ou cedo, terá de rebentar.

A esquerda precisa de agir! É urgente uma alternativa socialista!

Pela primeira vez em 5 anos, o Bloco de Esquerda votou contra uma proposta de OE. Mesmo sob uma tremenda pressão da comunicação social burguesa, a chantagem e as ameaças de Costa e as acusações de estar a unir-se à direita, a direcção do BE não pôde senão reconhecer o perigo de continuar agarrada ao PS durante uma crise com as dimensões actuais. Mariana Mortágua disse-o explicitamente quando afirmou que não importava ao BE a imagem de ficar ao lado da direita agora, mas sim a imagem daqui a alguns meses, quando a crise for ainda mais profunda. Se as vistas desta direcção reformista não fossem tão curtas, teria sido capaz de concluir a inevitabilidade desta situação em 2015.

Ao anunciar esta decisão, claro está, o BE amarrou o PCP ao governo, garantindo a abstenção deste na votação do orçamento sob pena de chumbar o OE e, assim, abrir o cenário de queda do governo. A direcção do PCP, por seu lado, respondeu colocando todo o seu aparelho a esguichar ódio contra o BE, a falar de “responsabilidade” e a defender o governo como um inevitável mal-menor — insistindo, portanto, no rumo que até agora só aprofundou a sua dramática crise interna.

O problema fundamental aqui é que o parlamento não é um órgão neutro, é um órgão de poder da burguesia, uma parte do aparelho de Estado que existe com o propósito de garantir o funcionamento do capitalismo — i.e., da exploração da nossa força de trabalho — mesmo em circunstâncias tão trágicas como as presentes. É impossível obter qualquer vitória com base em votações, negociações, manobras e declarações inflamadas no parlamento e nos corredores do Estado burguês, e enquanto recusarem o caminho da mobilização das massas e sujeitarem toda a sua política à actividade nestes órgãos, BE e PCP estarão condenados a chafurdar no pântano do sectarismo, disputando tão-somente uma “imagem” (seja a de agora ou a dos próximos meses) para conquistar eleitores das camadas médias, expondo-se à chantagem do governo e da comunicação social burguesa a cada passo.

É preciso tirar as devidas conclusões. Um voto como aquele que agora fez o BE na votação do OE será inútil, mesmo sendo acompanhado pelas mais justas denúncias, se não for também acompanhado de mobilização e organização nas ruas, nos bairros, nas escolas e nos locais de trabalho com um programa verdadeiramente socialista. Esta tem de ser exigência de todos os militantes e lutadores de esquerda às suas respectivas direcções partidárias e sindicais: rompam de uma vez por todas com a conciliação de classes, centrem a acção na organização e mobilização para a luta por um programa claro de medidas socialistas para fazer frente à crise económica e sanitária!

À esquerda não cabe negociar com os grandes capitalistas e o seu governo, cabe lutar. Travar a pandemia, os despedimentos e a pobreza implica um confronto directo com a classe dominante e um ataque directo ao seu sistema. É necessário nada menos que uma política revolucionária:

1. A paragem imediata de toda a actividade produtiva e serviços não-essenciais, com reconversão da parte necessária da indústria para a produção de equipamentos hospitalares e de protecção individual e com a manutenção dos postos de trabalho e salários na totalidade — com punição dos patrões e nacionalização com controlo operário das empresas que não cumprirem estas exigências;

2. Um plano de resgate do SNS com a nacionalização de todo o sector da saúde, um investimento público massivo para a compra de novos equipamentos e para a contratação dos necessários milhares de trabalhadores, além da urgente investigação científica;

3. O encerramento imediato de todas as escolas e faculdades, seguido da aplicação de um plano de resgate do sistema educativo que reverta todos os cortes na educação pública, contrate os necessários milhares de professores para reduzir o número de alunos por turma, dê formação adequada ao corpo docente e distribuição gratuita de equipamentos informáticos a todos os professores e estudantes para garantir uma educação segura à distância até que se torne possível regressar aos locais de ensino com condições de higiene e segurança eficazes;

4. Proibição de despedimentos e de despejos;

5. Nacionalização de toda a banca sob controlo democrático para garantir os fundos necessários à aplicação destas medidas. Que sejam os capitalistas que engordaram as suas fortunas com a exploração do nosso trabalho a pagar agora a crise económica e sanitária!

Qualquer coisa abaixo deste programa significa aceitar os privilégios e o sistema dos capitalistas, aceitar milhares de infecções e de mortes, uma onda de despedimentos, despejos, pobreza. E se as direcções do BE, do PCP e da CGTP realmente se recusam a aceitar a catástrofe que o capitalismo impõe aos trabalhadores e à juventude, têm de ir muito para lá das denúncias, das abstenções e da oposição parlamentar; têm de mobilizar as massas com este programa para a acção directa. Esta é também a única forma consequente de fazer frente à direita e à extrema-direita, que pela demagogia pretendem arrastar para as suas fileiras as camadas sociais mais desesperadas e atingidas pela crise e pela degradação social e laboral que, sem dúvida alguma, irão aumentar. A única alternativa à barbárie que o capitalismo nos impõe é a luta até às últimas consequências, a luta revolucionária!

 

Notas:

1. Dados do Eurostat actualizados a 27 de Outubro de 2020.

2. Dados do Instituto Nacional de Estatística publicados a 21 de Fevereiro de 2020.

 
 
 
 
 

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