Na última década, por todo o Mundo, dezenas de bancos e instituições financeiras foram resgatados pelos Estados capitalistas. O Banco Espírito Santo (BES) é apenas mais um. No entanto, pelos seus milhares de ligações ao regime actual, este caso assumiu particular importância e grandes repercussões. A queda do Grupo Espírito Santo (GES), longe de ser um caso de polícia, revela bem toda a podridão inerente ao sistema capitalista a nível internacional.
O colapso do universo
No dia 3 de Agosto de 2014, foi anunciada a resolução do BES. Para trás ficaram muitos milhares de milhões de euros em perdas do Universo Espírito Santo — bancos, sociedades financeiras e seguradoras, além de empresas de saúde, turismo, etc. Os prejuízos estimam-se em 11,8 mil milhões de euros.
Através da utilização de sociedades financeiras constituídas em offshores, a administração do BES financiou várias empresas do GES em dificuldades ao longo dos anos. De acordo com a acusação do Ministério Público (MP), esta forma de financiamento terá sido utilizada desde 2004 e acentuada após a crise de 2008. Para suportar estes encargos, o próprio banco financiou-se, contraindo empréstimos e vendendo títulos de dívida aos clientes, empurrando o problema para a frente. Para ocultar esta situação deficitária, as contas do BES e da sua holding, Espírito Santo International (ESI), eram alvo de engenharia financeira e parcialmente ocultadas através de várias subsidiárias, quer em offshores, quer em solo português. Os Espírito Santo viviam acima das suas possibilidades.
A partir de 2013, foi impossível continuar a esconder o monstro que tinha sido criado dentro do labirinto do Universo Espírito Santo. Em Novembro, uma auditoria revelou um “erro” de 1,3 mil milhões de euros nas contas da ESI. O contágio ao BES tornava-se evidente e colocava em risco os seus clientes. Seria uma questão de tempo até ao colapso do banco e de outras empresas do grupo. No entanto, durante o ano de 2014, a administração do BES continuou a procurar formas de financiamento através de um aumento de capital e com a venda de papel comercial. Ambas as operações foram afiançadas ao mais alto nível do Estado burguês pelo então Presidente da República, Cavaco Silva, e pelo Governador do Banco de Portugal (BdP), Carlos Costa. A 3 de Julho de 2014, exactamente um mês antes da resolução do BES, o BdP afirma em comunicado que “A situação de solvabilidade do BES é sólida”. A realidade era muito diferente.
Banco mau, banco bom. Para quem?
A solução apresentada pelo Banco de Portugal e aceite pelo governo de Passos Coelho foi a separação do BES em “banco bom” e “banco mau”. No primeiro — renomeado Novo Banco (NB) — ficariam os depósitos dos clientes e alguns activos do banco, nomeadamente as agências e outras infraestruturas necessárias à actividade bancária. No "banco mau" ficariam as dívidas de difícil cobrança e os activos tóxicos — isto é, títulos que estão sobrevalorizados nas contas do banco face ao mercado, valendo muito pouco ou mesmo zero. Este tipo de resolução não é inédito, tendo sido aplicado também no Estado espanhol (Sareb, Agosto de 2012) e Áustria (Hypo Alde-Adria, 2014). O cenário serviu dois propósitos: limpar as contas do NB para que este possa cumprir os rácios de capital e financiar-se nos mercados; e ocultar outra falência, mais uma vez suportada pelos trabalhadores, que prejudicaria ainda mais a imagem do então governo do PSD-CDS em vésperas de eleições legislativas.
Depois da venda de todos os activos do BES, o “banco mau” fica deficitário em 6 mil milhões de euros. Este encargo será parcialmente suportado pelo Estado português, embora o montante não seja conhecido, uma vez que existem vários processos a decorrer em tribunal por parte de accionistas para recuperar o seu dinheiro.
A entidade pública utilizada pelo Estado para gerir esta intervenção foi o chamado Fundo de Resolução (FdR) que assumiu a posição de accionista único do NB, injectando imediatamente 4,9 mil milhões de euros. Esta resolução corresponde efectivamente à nacionalização do “banco bom”, embora os políticos burgueses e os seus órgãos de comunicação social o tenham ocultado dos trabalhadores e da generalidade da população. Voltaram-se a nacionalizar os prejuízos, que foram pagos pelos trabalhadores.
Entretanto, em 2017, o NB foi vendido ao fundo abutre estado-unidense Lone Star por mil milhões de euros e uma garantia do Estado de até 3,89 mil milhões de euros. E mesmo com a família Espírito Santo afastada dos destinos do banco, a administração actual, fiel à sua classe, manteve os negócios através de offshores e que beneficiam o capital financeiro. Em Outubro de 2018 o NB não apenas vendeu 13 mil imóveis muito abaixo do seu valor de mercado a um fundo imobiliário, como ainda financiou a operação ao conceder um empréstimo ao fundo. As perdas da negociata, no valor de 260 milhões de euros, foram prontamente cobertas pelo FdR.
Com resultados negativos, ano após ano, a garantia do FdR tem sido accionada repetidas vezes. A factura da resolução do Novo Banco poderá ascender aos 8,8 mil milhões de euros. O “banco bom” só o foi para os capitalistas e para os administradores que continuam a receber prémios de milhões. Para os trabalhadores, mais uma vez a factura foi pesada e roubou o tão necessário investimento na Saúde, na Educação e nos serviços públicos. O conjunto das ajudas estatais à banca privada desde 2008 ultrapassa os 20,6 mil milhões de euros!
O capitalismo é uma associação criminosa
Após vários anos de investigação, a acusação do Ministério Público foi finalmente anunciada. Com pompa e circunstância, o poder judicial acusa Ricardo Salgado de ser o líder de um “associação criminosa” num total de 65 crimes que incluem burla, branqueamento de capitais, falsificação de documentos, manipulação de mercado e corrupção. Uma longa lista que o ex-”dono disto tudo” naturalmente nega e rotula de “erros”.
No entanto, Salgado tem razão numa coisa. O capitalismo nasceu e prosperou através da burla, do engano, da manipulação e da exploração dos trabalhadores e oprimidos por homens como ele. Porque razão deveria ser condenado? As offshores não existem precisamente para o branqueamento de capitais? Certamente não será para a classe capitalista mundial ajudar os povos das Ilhas Virgens Britânicas ou do Panamá.
O GES era um dos maiores grupos económicos portugueses com investimentos que iam da América Latina a Macau, da agropecuária ao imobiliário, passando pelo sector financeiro. Um império internacional que começou a colapsar com a crise financeira de 2008 e que a administração do grupo tudo fez para salvar — e para se salvar a si própria, claro. O processo de colapso do GES reflecte uma das leis das crises capitalistas — concentração de capital nos grupos económicos maiores à custa dos mais pequenos. A administração do grupo, incapaz de aceitar a falência do seu império, engendrou várias formas de financiamento que apenas adiaram a sua queda final.
A própria essência do capitalismo é a de expandir-se de forma predatória, seguindo uma lógica de lucro máximo e sem qualquer preocupação humanitária, sanitária ou ambiental. A corrupção e a manipulação são endémicas a qualquer mercado e utilizadas diariamente desde a bolsa de Xangai a Wall Street. Este carácter brutal e criminoso do capitalismo tem de ser ocultado e mascarado para que os explorados e oprimidos não compreendam a sua exploração e não se revoltem contra ele.
E é por esta razão que Salgado tem de ser condenado: o seu carácter foi descoberto. A sociedade burguesa — os capitalistas, a justiça, a comunicação social e os políticos burgueses — tem de sacrificar um dos seus para ocultar as acções dos restantes. Por isso mesmo vemos Marcelo Rebelo de Sousa, amigo de longa data de Ricardo Salgado, distanciar-se do ex-banqueiro e afirmar que deve ser feita justiça “doa a quem doer”. A comunicação social burguesa tece elogios ao Ministério Público, que demorou 6 anos a compilar uma acusação, durante os quais a família Espírito Santo continuou a usufruir da riqueza roubada aos trabalhadores. A direita, embora criticando a morosidade da justiça, e o PS, embora criticando o PSD pela resolução do BES, alinham com as restantes instituições e pedem a condenação dos acusados.
Para a classe dominante, a mensagem a transmitir para a opinião pública — pequeno-burguesa — é clara: este é um caso de polícia por culpa da ganância e falta de ética de Ricardo Salgado.
A condenação do banqueiro joga ainda o papel de apaziguar os quase dois mil pequenos e médios investidores que, seis anos depois, recuperaram apenas entre 50% a 75% dos valores investidos, sendo lesados em cerca de 200 milhões de euros com o colapso do GES. O movimento de lesados do BES protagonizou cerca de uma centena de manifestações por todo o país, exigindo o reembolso dos seus investimentos. Sendo a pequena-burguesia um dos pilares do regime democrático burguês, este movimento teve obviamente eco entre a opinião pública e política, forçando o Estado a reembolsar os investimentos em produtos financeiros de risco. Estes custos recaíram, mais uma vez, sobre os trabalhadores.
A pequena-burguesia é historicamente incapaz de pensar além dos limites do capitalismo. O seu programa e dos seus representantes limitou-se a exigir o reembolso individual dos seus investimentos e a condenação dos acusados como “pagamento moral” pelas perdas de milhões que sofreram. Para romper definitivamente com este sistema, inerentemente corrupto e criminoso, é necessária a acção da classe trabalhadora armada com o programa político adequado.
O que fazer com a banca?
Não são apenas as instituições burguesas quem procura ocultar a real natureza da banca em capitalismo. A esquerda reformista também o faz. Apesar de críticarem a “financeirização da economia [que] serve de alimento à corrupção sistémica”1 ou identificarem o carácter sistémico do caso BES, a acção política destas direcções nunca ultrapassa os limites bem definidos da legalidade democrática burguesa e é incapaz de romper com a lógica capitalista.
As política de conciliação de classes seguida pelas direcções de BE e PCP, a partir dos seus confortáveis lugares parlamentares, leva-os a querer regular o sistema financeiro e o capitalismo — uma utopia. O BE propõe um “reforço dos poderes regulatórios e de supervisão” e “estruturas mais transparentes, operações mais simples”.2 Estas propostas incluem a proibição de operações com offshores, o registo obrigatório dos accionistas finais, mais poder para o regulador estatal, o BdP, e garantia de isenção dos auditores externos. No papel todas estas propostas parecem ideais. Mas qual a sua aplicabilidade na realidade?
A regulação do BdP falhou redondamente quer no caso BES quer em todos os outros bancos. E continuará a falhar enquanto o Estado for o órgão de dominação da burguesia. As suas instituições actuarão sempre segundo os interesses da classe dominante como um todo. Por isso, o BdP é incapaz de proteger os pequenos investidores do BES ou os interesses dos trabalhadores e da juventude. Como confiar nesta instituição para auditar a banca ou para garantir a isenção de auditores externos? As próprias empresas de auditoria representam, por vezes em simultâneo, o Estado e os bancos que estão a auditar, em negócios de milhões. Foi precisamente isso que aconteceu com a KPMG no BES e que acontecerá agora com a Deloitte no NB. É impossível esperar qualquer isenção destas empresas. E se o regulador e a maioria dos trabalhadores do BES desconheciam, durante décadas, os fundos de investimento com os quais Ricardo Salgado e a sua equipa negociavam, como e quem é que proíbe as operações com offshores? Esta proposta é impraticável enquanto o poder real estiver concentrado na mão dos accionistas e administradores dos bancos.
Ao defender estas propostas, as direcções do BE e do PCP não fazem mais que alimentar ilusões neste sistema. Para passar das palavras aos feitos é necessário um programa de luta, um programa marxista.
A banca que precisamos
A solução para a banca é só uma: nacionalização sob controlo dos trabalhadores e depositantes. A centralidade e impacto que o sistema bancário ocupa na nossa sociedade significa que este tem de ser nacionalizado e colocado ao serviço da classe trabalhadora e do povo. A função da banca deve ser o financiamento do desenvolvimento das forças produtivas: à construção de infraestruturas, à agricultura e à indústria.
Esta nacionalização, ao contrário das conduzidas pelos governos burgueses, não servirá para limpar balanços e devolver os bancos aos capitalistas. Defendemos a expropriação dos grandes accionistas sem indemnização e a anulação de todas as dívidas contraídas contra os interesses da classe trabalhadora. Para esse efeito, é necessário um controlo sobre todas as operações financeiras para impedir a fuga de capitais e realizar uma auditoria por parte das organizações de trabalhadores e utentes. É necessário ainda tornar a contabilidade aberta e transparente para todos, acabando com o segredo comercial que apenas protege os capitalistas e facilita a corrupção.
Mas este programa não será ganho, reforma a reforma, no parlamento. É necessária a mobilização e acção contundentes da classe trabalhadora e da juventude nas ruas, nos locais de trabalho e de estudo, para passar das palavras aos feitos. É necessário desafiar os “donos disto tudo”, a classe capitalista que nos explora diariamente e derrubá-la. É necessária a revolução Socialista.
Notas:
1. https://www.abrilabril.pt/nacional/bes-obscenidade-nao-esta-num-homem