A proposta do governo de Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) é votada na generalidade amanhã, quarta-feira, e até ao momento da escrita deste artigo não se sabe se será aprovada. BE e PCP já anunciaram o seu voto contra.

A comunicação social está num frenesim. Anuncia-se uma “crise política”, Costa faz uma série de concessões para tentar restaurar a geringonça. A direita, que vota contra, declara que a esquerda estará a cometer suicídio se votar igualmente contra. Marcelo, pedindo “bom-senso” aos partidos de esquerda, já anunciou que dissolverá o parlamento e convocará eleições legislativas se este OE não passar. Assim, o capital financeiro exerce pressão sobre a esquerda por todos os meios para forçar a aprovação de mais um orçamento que defende zelosamente os seus lucros.

A desintegração da geringonça

No início da “solução governativa” da esquerda, em 2015, as direções do BE e do PCP eram incapazes de esconder o seu otimismo e as suas ambições de aumentar a presença parlamentar e até de integrar um governo de coligação com o PS num próximo mandato. Hoje, passados 6 anos de apoio incondicional ao programa da social-democracia em todas as questões de fundo, os resultados dessa política estão à vista de todos: ambos os partidos se vêem mergulhados numa crise profunda. Não podia ser de outra maneira.

Foram anos do mais vergonhoso cretinismo parlamentar, de discursos vazios, de manobras e traições, tudo em nome de afastar um governo da direita (que não era, de forma alguma, uma ameaça real) e de fazer “o possível”, melhorando paulatinamente as condições de vida dos trabalhadores. As direções do BE e do PCP defenderam o flanco esquerdo do governo a cada passo. Juntamente com a burocracia da CGTP, não só assistiram impávidas como chegaram mesmo a insinuar o seu apoio à aplicação de requisições civis para proibir importantes greves, sabotando e desarticulando sistematicamente as lutas de diversos setores ao invés de as concentrar num grande movimento unificado para arrancar concessões de um governo que estava em posição de fragilidade ao mesmo tempo que a direita se encontrava autenticamente arruinada. E que conquistou o reformismo com tanta tática e negociação?

A precariedade mantém-se, com as principais contra-reformas do governo PSD-CDS e da troika intactas na lei laboral e as pequenas subidas anuais do salário mínimo nacional (SMN), feitas com enorme alarde, a não chegar sequer para devolver à classe trabalhadora as modestas condições de vida que tinha em 2008, quando rebentou a Grande Recessão. A juventude encontra-se hoje em condições dramáticas e os últimos dados apontam para 2 milhões de pessoas em risco de pobreza num país de 10,3 milhões. A degradação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), da educação pública e dos transportes agravou-se visivelmente. A liberalização do mercado imobiliário fez disparar as rendas, os despejos e a expulsão das famílias trabalhadoras das principais cidades, gerando a maior crise de habitação desde o fascismo. Por fim, a crise pandémica foi gerida escandalosamente a favor da saúde privada, da banca e de todo o grande capital, com um pacote de ajudas multimilionário que acabou quase totalmente nos bolsos dos capitalistas.

As pequenas medidas para aliviar o custo de vida ao longo destes anos, sempre anunciadas com pompa e circunstância e tomadas com enormes cuidados para não tocar nos lucros do capital — como foram os passes de transporte mais baratos e os manuais escolares gratuitos (subvencionados pelo Estado) —, minguam perante a degradação geral das condições de vida. Pior ainda, hoje, pela primeira vez desde as legislativas de 2015, um governo de direita é de facto uma ameaça real. Os resultados foram exatamente o contrário do prometido, portanto.

É este retumbante falhanço da política de conciliação de classes e de unidade nacional que explica a erosão das bases eleitorais do BE e do PCP desde 2015, e é igualmente isto que explica os primeiros sinais de que este processo se está a estender às bases do PS.

As autárquicas mostraram os limites da política de conciliação de classes da “geringonça” já não apenas em matéria de avanços reais para a classe trabalhadora e para a juventude como também, e consequentemente, no campo eleitoral — aquele que se mantém o foco da atividade e das preocupações das burocracias dos partidos de esquerda.

As direções reformistas sentem uma enorme pressão a ser exercida desde baixo, tanto pela base militante que permanece nas suas estruturas partidárias como pela vasta maioria da classe trabalhadora e da juventude que mostram o seu descontentamento pelas vias que encontram. É sofrendo essa pressão que as burocracias tentam criar uma distinção artificial entre os seus programas políticos e o programa do PS, na esperança de recuperar alguma base eleitoral.

Mas as contradições multiplicam-se. Se, por um lado, as direções da esquerda sentem necessidade de distinguir-se do PS, por outro lado recusam-se a seguir uma política de mobilização dos trabalhadores e da juventude fora das instituições burguesas, temendo acima de tudo comprometer as suas ambições dentro dessas instituições. Mais ainda, não está claro para nenhuma delas que eleições antecipadas melhorem as suas posições parlamentares. Pelo contrário, o facto é que nem os dirigentes do BE nem os do PCP têm qualquer interesse em ser postos à prova nas urnas neste momento, porque tudo indica que teriam resultados piores ou, quanto muito, iguais aos de 2019. Disputando o lugar de partido mais à esquerda, BE e PCP sobem cada vez mais o tom do discurso, e tudo indica que vão esticar a corda até ao último momento, prontos para acusar o vizinho caso este recue. É um jogo perigoso, e não está claro quem vai mudar a intenção de voto primeiro, ou se alguém vai fazê-lo de todo.

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As autárquicas mostraram a erosão das bases eleitorais do BE e do PCP. As direções destes partidos tentam agora distinguir-se do PS na esperança de recuperar eleitores.

Nisto, Costa busca desesperadamente alguma concessão que o BE ou o PCP possam apresentar ao seu decrescente eleitorado como uma grande vitória das negociações. Várias foram apresentadas no sábado, e entre elas estão o aumento do SMN para 705 euros em janeiro e 850 em 2025, um plano gradual para tornar as creches gratuitas em 2024, uma reforma do IRS que isentaria mais 170 mil pessoas e uma subida de 10 euros nas pensões. Em boa verdade, qualquer uma destas medidas seria celebrada como uma vitória decisiva há escassos meses atrás, tal como tantas outras medidas da mesma natureza ao longo dos últimos 6 anos. Agora, no entanto, todas são consideradas “insuficientes” ou incapazes de resolver os “problemas estruturais”.

O equilibrismo político de Costa está cada vez mais complicado. Com a sua tentativa de sedução da esquerda, até agora, tudo o que conseguiu foi despertar a fúria dos pequenos proprietários e do setor mais decadente da burguesia nacional, representados acima de tudo pelas confederações patronais que abandonaram a concertação social em protesto contra as medidas. Não falamos, evidentemente, do grande capital financeiro, das empresas do PSI-20 ou do capital das potências imperialistas. Estes têm os seus interesses completamente fora das negociações. São os industriais do calçado, dos têxteis, da construção civil, da limpeza industrial, da agricultura, da hotelaria e turismo nacionais, etc., quem sente como insuportável uma subida de 40 euros no salário mínimo. Estes protestos e alguns discursos inflamados são a forma que têm estas camadas sociais de tentar pressionar o governo depois de meia década de paz social com chorudos acordos em concertação social para os empresários nacionais e ainda de uma pandemia na qual se viram completamente à vontade para espezinhar os trabalhadores.

Ainda que as sondagens apontem para uma vitória do PS em possíveis eleições antecipadas, Costa sabe, especialmente depois da inesperada derrota de Medina, que a sua base eleitoral está desmoralizada e que as sondagens podem alterar-se muito rapidamente ou, como aconteceu precisamente em Lisboa, não fazer mais do que esconder uma amarga surpresa… E uma tragédia para a classe trabalhadora.

O bonapartismo de Marcelo e a reorganização da direita

Marcelo é o mais arguto representante da burguesia, e é a sua peça fundamental nesta conjuntura. A sua atuação demonstra da maneira mais transparente o que quer a burguesia: em primeiro lugar, passar o OE2022 e continuar a desgastar a esquerda em mais um ano de crise.

A cada declaração pública, Marcelo aumenta a pressão sobre a esquerda para que aprove o OE2022, culpa-a pela crise política, ameaça a dissolução do parlamento imediatamente em caso de chumbo e, cuidadosamente, dá conselhos e sinais à direita. O papel bonapartista da sua presidência acentua-se na mesma medida em que o reformismo se vê incapaz de conciliar as classes. Acentuar-se-á cada vez mais com o agravar da crise capitalista, e a leviandade com que Marcelo fala da “bomba atómica” (como chama à dissolução do parlamento) é uma demonstração disso.

A direita, por seu turno, prepara-se para o pior cenário. A classe dominante gostaria de ter mais um ano de PS apoiado pela esquerda, mas na impossibilidade de o fazer, precisa de ter a direita organizada. Se realmente se realizarem eleições antecipadas, tanto Paulo Rangel como Rui Rio pedem a Marcelo que sejam marcadas para o mais tarde possível. Esta tem sido a grande preocupação da direita: ter tempo para preparar um governo de direita capaz de ter maioria absoluta e governar solidamente durante quatro anos, atacando selvaticamente a classe trabalhadora à semelhança do governo PSD-CDS de Passos Coelho e Paulo Portas.

Rangel, contando com uma vitória sobre Rio nas eleições internas do PSD, marcadas para 4 de dezembro, está já em campanha eleitoral antecipada. É um candidato com o apoio de Montenegro e da ala mais reacionária do PSD, que apresentou a sua candidatura depois de Passos Coelho se colocar fora da corrida. No entanto, a tática de Rangel tem sido afastar-se publicamente do Chega — que já se estabeleceu como um incontornável aliado do PSD para a formação de governo. Como se explica isto?

Ora, já é muito claro que a direita não tem para onde crescer neste momento. A polarização social fixou-lhe um limite férreo de votos. Uma vitória do PSD nas legislativas, a acontecer, terá de se dar nos mesmos termos em que se deu a sua vitória nas autárquicas em Lisboa: não através da conquista de novos eleitores, mas antes através da desmobilização eleitoral da esquerda, ou seja, dos trabalhadores e dos jovens. Se Rangel anunciasse uma coligação com o Chega ou revelasse qualquer afinidade com a extrema-direita, estaria a eletrificar toda a juventude e amplas camadas do proletariado que se levantariam para votar massivamente contra a extrema-direita. É este o verdadeiro motivo das suas declarações de tom “democrático” sobre um PSD que vai “do centro-esquerda ao centro-direita”. Para ser capaz de constituir governo, o PSD tem de encontrar o tom perfeito para mobilizar a sua base social sem mobilizar a base social da esquerda contra si. Não é tarefa fácil numa campanha eleitoral que pode tornar-se extremamente polarizada.

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Marcelo aumenta a pressão sobre a esquerda para que aprove o OE2022, culpa-a pela crise política, ameaça com dissolução do parlamento e convocação de eleições.

A saída é romper com as políticas capitalistas e retomar a luta nas ruas!

Assumir, como fazem o BE e o PCP, que o jogo parlamentar e a habilidade negocial bastam para mudar as coisas não é apenas um erro crasso, é também uma declaração do abandono da luta de classes e de qualquer perspectiva séria de transformação social. A questão fundamental aqui é que os partidos à esquerda do PS dêem uma volta de 180º, tirando todas as lições dos últimos anos e apresentando um programa alternativo para resolver os problemas prementes da classe trabalhadora, juntamente com um plano de luta combativo e ousado, a única forma de alcançar conquistas sociais significativas.

As exigências que estão a ser colocadas ao PS atualmente não significam, em nenhum dos casos, uma política fundamentalmente diferente. Aliás, elas ignoram até mesmo as necessidades mais imediatas da classe trabalhadora, como a nacionalização de todo o setor da energia para fazer frente à subida dos preços da eletricidade, do gás e dos combustíveis, que significam, com a chegada do inverno, que haverá ainda mais milhares de famílias trabalhadoras sem aquecimento em casa. É muito ilustrativo que perante isto o BE e o PCP se limitem a pedir uma redução dos impostos sobre eletricidade, gás e combustíveis no OE2022 — mencionam o controlo dos preços ou até mesmo a nacionalização nos seus discursos, mas sem realmente organizar a luta por essas bandeiras de forma consequente. Evidentemente, um alívio da carga tributária não baixará os preços, só permitirá um avanço da especulação e um crescimento da margem de lucro destas empresas. São palavras vazias!

Da mesma forma, a nacionalização da banca, da saúde, da educação, dos correios, das águas, dos transportes… Tudo fica relegado a alguns documentos meramente decorativos, a frases bonitas em dias de festa. Estas manobras institucionais e as negociações em gabinetes à porta fechada — mesmo quando são feitas num tom muito radical — não conquistam nada para a classe trabalhadora. O facto é que os reformistas se arrastaram para um beco sem saída, não têm uma única resposta para os problemas da vasta maioria da população e dedicam-se agora a um lamentável teatro de atribuição de culpas que é corretamente entendido pelos trabalhadores e trabalhadoras como inútil e totalmente desligado dos problemas da vida real.

Basta. A classe trabalhadora não ganha nada com estes gestos. É preciso abandonar o cretinismo parlamentar, as manobras institucionais e, acima de tudo, a utopia reacionária de uma gestão justa do capitalismo. Não só o OE2022 como toda a política da social-democracia — a política que nos trouxe até este ponto, com apoio do BE e do PCP — têm de ser criticados nos seus traços essenciais, no seu caráter de classe, e não com uma série de medidas avulsas e desarticuladas, mas antes com uma alternativa política real que é preciso construir com organização e luta.

A única via para os trabalhadores e a juventude é um programa realmente socialista, que rompa com o capitalismo e se imponha através da força, da mobilização e dos métodos da classe trabalhadora: a manifestação de massas, a ocupação, a greve, a greve geral e todas as outras formas de luta que a situação possa exigir. Isto organiza-se com trabalho militante, fora do parlamento. É nas ruas, nos locais de trabalho, nas escolas e nos bairros que se faz o fundamental da nossa política!

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