Desde a tomada de posse à demissão com o escândalo de especulação imobiliária, o percurso na Câmara Municipal de Lisboa (CML) do vereador eleito pelo Bloco de Esquerda (BE), Ricardo Robles, ilustra claramente o que não pode ser um representante dos trabalhadores e qual não pode ser o papel da esquerda nos órgãos autárquicos.

As eleições autárquicas de 2017 tiveram como resultado uma vitória minoritária do Partido Socialista (PS) em Lisboa. Esta situação de fragilidade do PS abriu uma importante oportunidade para o BE e a CDU utilizarem a sua posição na CML de forma a fortalecer as lutas dos trabalhadores e jovens nos bairros, nos locais de trabalho e de estudo, uma oportunidade de fazer realmente a diferença para milhares de famílias.

No entanto, desde o início da negociação com o PS que a direcção da Concelhia de Lisboa do BE tentou calar qualquer voz discordante e impedir o debate sobre a sua intervenção na CML. O resultado foi um acordo com Fernando Medina em que Robles se subjugou a um programa que ataca o direito à habitação, à saúde, à educação, que ataca os direitos das famílias trabalhadoras de Lisboa — ao invés de construir uma aliança de esquerda com a CDU, com os movimentos e organizações de trabalhadores.

Lisboa, uma cidade especulada

Um dos principais eixos do programa autárquico do BE [1] foi o “Direito à Habitação”. O drama dos despejos, derivado da especulação imobiliária, é por demais conhecido e o BE identificou algumas das suas causas: a liberalização do alojamento turístico, dos vistos gold e outros regimes fiscais para não residentes, além da famigerada Lei das Rendas da ex-ministra Assunção Cristas. Adicionalmente, o executivo PS — partido que governa há 11 anos a CML — promovia o mercado imobiliário privado em vez de construir e disponibilizar mais fogos a rendas controladas. Só a freguesia de Santa Maria Maior perdeu, desde 2013, 2.000 eleitores, enquanto que as entregas de novas casas pela CML rondam algumas centenas de fogos.

O exemplo mais acabado em que o executivo PS age como gabinete imobiliário da burguesia é no “Programa de Acção Territorial para a Colina de Santana”, que prevê a reconversão total da colina de Santana em alojamento turístico. Este plano prevê o encerramento dos hospitais de São José, Santa Marta e Capuchos, já vendidos a uma imobiliária, não existindo até à data qualquer estudo sobre a capacidade de camas do futuro Hospital de Lisboa Oriental, e portanto nenhuma garantia de que será capaz de igualar o número de camas actual.

No seu programa, o BE propunha a construção de “7500 casas a preços acessíveis” — um número claramente insuficiente para fazer frente aos despejos —, e pretendia com isto resgatar para o domínio público a Parceira Público-Privada (PPP) que o actual executivo tinha sob a forma do Programa Renda Acessível. Foram propostos ainda limites ao alojamento local e turístico e a necessidade de aumentar a oferta de residências universitárias para que arrendar um quarto em Lisboa não significasse “uma segunda propina”.

Passar estas modestas propostas do papel para a realidade seria o verdadeiro desafio do BE. Com apenas três vereadores na CML, essa luta só poderia ser ganha se a esquerda se apoiasse na mobilização dos trabalhadores e jovens para forçar o executivo PS a implementar estas exigências — como um plano nacional de habitação pública e de qualidade, com rendas controladas e sob o controlo democrático de comissões de moradores.

Exemplos de lutas pela habitação não faltam em Lisboa e arredores, incluindo a luta dos inquilinos da Fidelidade, dos moradores dos bairros históricos ou de Marvila. Todos estes focos de contestação podiam ter sido expandidos e unificados pela esquerda, e o vereador do BE tinha a obrigação de jogar um papel de destaque neste processo, fortalecendo um movimento pelo direito à habitação com a sua posição na CML e, por isso, fortalecendo a sua posição na CML com o apoio desse movimento. O que Robles fez, no entanto, foi limitar a acção destes grupos a apelos “às entidades com responsabilidades: a câmara municipal e a Assembleia da República” [2].

Não possuindo o BE órgãos de base capazes de debater o acordo firmado com Medina e escrutinar o trabalho do seu vereador, Ricardo Robles acabou por ter carta branca para actuar e ir gerindo o seu pelouro — uma gestão do capitalismo ao nível autárquico — enquanto a especulação imobiliária continuava a despejar trabalhadores e jovens todos os dias. No acordo BE-PS [3] é aliás perfeitamente assumido por ambas as partes que a PPP do Programa Renda Acessível não será abandonada, embora seja complementada com uma parte de investimento público.

Pelo direito à educação e às creches

No seu pelouro de actuação, o eleito do BE tinha duas prioridades: a gratuitidade dos manuais escolares e o aumento da oferta pública de creches.

A primeira proposta resultou na transferência massiva de dinheiro — 4,3 milhões de euros no ano lectivo 2018/2019 [4] — do Ministério da Educação e da CML para as editoras de livros escolares. Em lugar de nacionalizar a edição dos manuais escolares e fornecê-los gratuitamente aos estudantes, o Estado optou por subsidiar a compra destes livros o que, no fim de contas, significa transferir dinheiro do orçamento para a Educação para as editoras de manuais escolares. Para que o cumprimento do défice continue a ser religiosamente seguido, esta medida implicará uma diminuição do orçamento noutra área. Por cima de tudo isto, não é garantido o acesso gratuito a manuais, visto que os encarregados de educação ficam comprometidos a devolver os livros em “bom estado”, sob pena de pagar integralmente o seu preço. E isto são livros que precisam de ser diariamente utilizados por jovens!

A segunda prioridade ficou bastante aquém do prometido: até agora foram alcançadas apenas 40 das 1.000 vagas prometidas, e através da abertura de uma creche gerida pelo regime público-privado das IPSS, com custos muito acima das possibilidades de uma família de classe trabalhadora. Esperar pelos projectos, concursos públicos e obras enquanto milhares de famílias têm de pagar várias centenas de euros por uma creche não é solução. Tendo em conta que algumas freguesias da cidade não têm qualquer oferta pública, a opção de nacionalização, sob gestão democrática, das creches privadas e das IPSS é uma forma célere de aumentar o número de vagas. Esta medida representaria uma melhoria imediata para milhares de famílias trabalhadoras, sendo a base sob a qual se planearia a expansão necessária da rede existente. A um representante dos trabalhadores exige-se que promova o maior envolvimento possível das famílias trabalhadoras, o fortalecimento da organização popular nos bairros para que os trabalhadores não sejam apenas espectadores, mas participantes na transformação da sua cidade.

Precariedade Zero?

O acordo BE-PS previa “regularização de todas as situações” de precariedade de acordo com o Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP). Quase dois anos depois, algumas juntas de freguesia iniciaram esse processo mas noutras, como a junta da Penha de França, foi necessário o BE intervir com uma moção de aplicação do PREVPAP aos trabalhadores da junta, para permitir a reintegração de trabalhadores anteriormente despedidos.

No entanto, e apesar das propostas do BE para divulgação dos números,continua a ser bastante difícil conhecer o número exacto de precários que se prevê serem integrados. Uma das razões fundamentais desta ausência de transparência é a de que o processo não é escrutinado pelos próprios trabalhadores. No totalidade da Administração Pública a totalidade das apreciações favoráveis rondava as 10 mil, não se confirmando a totalidade de precários no Estado.

Ao mesmo tempo, temos assistido a um processo de “descentralização” de competências para as freguesias. Estes aparecem sob a máscara da “descentralização” mas não passam de processos de privatização encapotados. Em lado nenhum no acordo BE-PS está previsto o combate a esta tendência, com excepção talvez da reabilitação das cantinas escolares em substituição às subconcessões a privados. No entanto, esta medida não será ainda implementada neste ano lectivo, tendo sido renovada a concessão com privados.

O representante e o partido de que precisamos

Torna-se portanto claro que a vereação de Ricardo Robles não foi uma vereação que possa ser apoiada pela esquerda e organizações dos trabalhadores.  Lisboa continua a saque dos especuladores com o executivo PS da CML a intermediar sempre que possível e o BE a coadjuvar.

Infelizmente, este não é caso isolado, uma vez que eleitos da CDU em Loures e Setúbal também implementam políticas anti-trabalhadores. Mas lutando o Socialismo Revolucionário por um BE democrático e plural impõe-se uma reflexão e debate com os camaradas que partilham esta visão para dotar o partido dos órgãos e métodos necessários para assegurar a defesa intransigente dos direitos dos trabalhadores e dos jovens — nas autarquias, nas ruas, nos sindicatos e no parlamento.

A eleição de representantes do BE deve assentar numa relação estreita com as bases do partido e da nossa classe como forma de escrutínio e responsabilização sobre o trabalho desenvolvido. Serão essas bases a força que permitirá ao nosso representante eleito nos órgãos burgueses ser uma ferramenta para conquistar vitórias reais. A nossa força nunca será a argumentação perante os representantes da burguesia. Por sua vez, a posição de destaque que qualquer vereador ou deputado tem deverá ser utilizada para amplificar e ajudar a organizar as lutas dos trabalhadores e jovens. As propostas apresentadas devem ser uma extensão das campanhas nas ruas ou locais de trabalho e ensino. Não basta os moradores de Lisboa apelarem à Assembleia Municipal para que resolva o seu problema — é preciso organizar uma luta de massas consequente, recorrendo aos métodos da classe trabalhadora como greves, bloqueios ou ocupações. E também não basta apresentar propostas que a esquerda sabe de antemão que serão chumbadas pela direita.

Mas para sermos capazes de aplicar este método, necessitamos de um partido realmente democrático, isto é, com estruturas que permitam o debate amplo e sistemático de todos os temas, e armado de um programa político que represente os interesses da nossa classe. Essa organização será capaz de captar e formar os elementos da classe trabalhadora mais abnegados e combativos e deverão ser eles os nossos representantes eleitos. Esses representantes deverão ter cargos revogáveis a qualquer momento e manter um salário médio de trabalhador — uma exigência clássica do movimento dos trabalhadores. A coerência política e a transparência são da maior importância para todos os revolucionários, mas em particular para aqueles que representam os precários, os oprimidos, os despejados, enfim, todos os explorados pelo sistema capitalista.


 

[1] https://www.esquerda.net/sites/default/files/programa_lisboa_partilhada_.pdf

[2] https://www.esquerda.net/artigo/inquilinos-da-fidelidade-em-luta-pelo-seu-direito-habitacao/54539

[3] https://www.esquerda.net/sites/default/files/acordocmlisboa2017.pdf

[4] https://www.esquerda.net/artigo/manuais-e-fichas-escolares-gratuitas-vao-abranger-45-mil-alunos-em-lisboa/56157

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