A conferência bolchevique de Abril de 1917 depurou as ideias mencheviques do que deveria ser o corpo teórico-programático de um partido marxista. Com a palavra de ordem “Paz, Pão e Terra” os bolcheviques passaram a encarar a revolução iniciada em Fevereiro como um processo ainda não terminado. Para garantir a sobrevivência dos direitos conquistados e para responder aos problemas imediatos da grande maioria da população seria necessário declarar a paz unilateralmente, sem anexações, respeitando o direito à auto-determinação dos povos subjugados pelo antigo Império Russo; seria preciso expropriar os grandes capitalistas e usurários que lucravam, financeira e politicamente, com a instabilidade política e económica para resolver o problema da fome e da carência; por fim, seria necessário efectuar uma reforma agrária que servisse os interesses da maioria dos camponeses e trabalhadores urbanos, e que expropriasse os grandes latifundiários.

Contudo, sabemos bem que não basta ter o programa correcto, é necessário que este impregne a consciência das massas.

Congresso dos sovietes de toda a Rússia

O 1º Congresso dos Sovietes de toda a Rússia deu-se em Petrogrado (São Petersburgo, actualmente) entre 3 e 24 de Junho do antigo calendário juliano. A maioria desse congresso, representando 20 milhões de soldados e trabalhadores através de 820 delegados, era dos partidos Menchevique[1] e Socialista Revolucionário[2]. Os bolcheviques e seus aliados atingiam somente um quinto da votação. No entanto, não hesitaram em aproveitar este momento para denunciar a política da maioria que integrava e apoiava um governo provisório formado também por monárquicos, republicanos e capitalistas. A jornada de 8 horas de trabalho, necessária para possibilitar a maior participação política possível, assim como melhor qualidade de vidas dos trabalhadores, não foi ratificada pela maioria. O direito à auto-determinação, apesar de ratificado, foi adiado na prática até ao 2º Congresso, em Novembro, de maioria bolchevique.

Todavia, a questão central do debate do Congresso foi a do poder: porque não queria a maioria do congresso um governo composto somente por socialistas?

Ao mesmo tempo que denunciavam a política da maioria oportunista, os bolcheviques procuravam organizar uma manifestação contra a ofensiva militar que estava a ser planeada e contra os ataques aos direitos democráticos dos soldados. Os socialistas-revolucionários e os mencheviques proibiram esta manifestação e convocaram uma outra, uma semana mais tarde, de apoio ao governo provisório. O erro da sua análise foi evidenciado pelas palavras de ordem bolcheviques levadas pelos soldados e trabalhadores à manifestação que se queria de apoio ao governo. Estas palavras tornavam clara a oposição ao governo: “Abaixo os 10 ministros capitalistas”, “Fim à ofensiva militar” e “Todo o poder aos sovietes”.

Esta contradição entre bases e direcção fazia-se sentir acentuadamente em Petrogrado, centro da actividade política e revolucionária nesse período. As bases que haviam eleito os “socialistas” oportunistas sentiam-se cada vez mais traídas por essas direcções. Os socialistas-revolucionários e os mencheviques apoiavam a continuação da guerra, o dito defensismo revolucionário, enquanto os bolcheviques apelavam à transferência do poder para os órgãos dos trabalhadores, soldados e camponeses.

Esta contradição teria pois que chegar a uma síntese: ou bem que esses dirigentes representavam a vontade das bases ou bem que estas rompiam com os primeiros.

Jornadas de Julho, Revolução ou Insurreição

Os camponeses começavam a perder a confiança no governo provisório. Este prometia a redistribuição da terra mas os seus próprios funcionários revertiam processos de expropriação de terras para as devolver aos latifundiários. Na frente de batalha, e também em “casa”, os soldados que exigiam o fim da guerra viam-se defraudados. Entretanto capitalistas e latifundiários orquestravam a sabotagem da economia russa através de lockouts e especulação.

Poder-se-á dizer que em Petrogrado se decidia o dia-a-dia da revolução, com sovietes cada vez mais radicalizados. Todavia, não podemos encarar o processo unilateralmente, como veremos nas jornadas de Julho. Não basta garantir a tomada de poder na capital, é necessário que haja condições no resto do país que tornem possível a sua defesa. As manifestações de Junho tinham demonstrado o domínio bolchevique em Petrogrado mas o mesmo não se passava no resto da Rússia. Milhões de soldados e camponeses mantinham a sua confiança nos líderes reformistas. Era preciso que as massas tirassem as suas próprias conclusões quanto aos oportunistas socialistas-revolucionários e mencheviques.

Um dos eventos que contribuiu para a descredibilização destes oportunistas foi a ofensiva falhada de Junho na Galicia (actual Ucrânia). Dezenas de milhar de mortos, centenas de milhar de baixas e outros milhares de deserções. A vanguarda do exército jurara fidelidade aos sovietes e deles esperava não ser mobilizada para a frente de guerra. Por isso os lacaios da burguesia procuravam virar os soldados da frente contra os soldados que defendiam a revolução em “casa”. Um desses destacamentos, algo equivalente aos fuzileiros, estava programado para deixar Petrogrado e seguir para a frente de batalha.

No dia 2 de Julho os Cadetes[3] abandonaram o governo provisório definitivamente. Usando como pretexto as tímidas concessões aos nacionalistas ucranianos, os cadetes resolveram romper com o acordo para que os “socialistas” tivessem que lidar sozinhos com o desastre militar. Assim que souberam da ruptura, os fuzileiros apressaram-se a ir às fábricas de Petrogrado para apelar a uma manifestação armada. O objectivo era simples: constituir um governo dos sovietes.

Nas assembleias que se seguiram o ambiente era favorável à manifestação. Os trabalhadores ansiavam por uma resolução da situação de duplo poder. Ainda que considerando a iniciativa precoce, tendo como possível desfecho a deflagração de um confronto armado com a vitória militar da reacção, os bolcheviques entenderam que não poderiam senão participar nela, procurando dar a direcção política correcta a este movimento espontâneo.

Os “marxistas nem sempre podem escolher o terreno em que lutam”. Quando os trabalhadores se sentem compelidos a agir independentemente dos seus líderes e dirigentes, o partido revolucionário deve procurar a melhor táctica possível na conjuntura dada para permitir não só o menor prejuízo para o movimento mas também a possibilidade de as massas subtraírem da experiência as conclusões políticas necessárias.

Milhares de trabalhadores, soldados e marinheiros marcharam rumo ao palácio de Tauride — sede do governo provisório e do soviete de petrogrado — enquanto as forças contra-revolucionárias procuravam despoletar um conflito armado que iniciasse a guerra civil, pois sabiam ser prematura qualquer iniciativa de insurreição por parte dos trabalhadores. Houve dezenas de manifestantes mortos e feridos à mão de atiradores furtivos, mas os manifestantes chegaram ao palácio e lograram reunir-se com o governo provisório. Não tinham mais a exigir além do poder para os sovietes. Segundo o relato de Miliukov, dirigente dos cadetes, um trabalhador enfurecido gritou a um dos ministros “socialistas”: “Toma o poder quando to dão, seu filho da puta!”

Evidentemente o governo não ficou sem organizar a sua defesa. Além dos atiradores furtivos e dos agentes provocadores que espalhou pelo percurso da manifestação, esperava a chegada de um contingente leal, liderado por um conhecido menchevique, para o “salvar” dos trabalhadores. Depois de mais escaramuças, a manifestação foi derrotada. O período que se seguiu foi de desmoralização e confusão. A contra-revolução fortaleceu-se tal como os bolcheviques haviam previsto.

O mês seguinte ficou conhecido como “O mês da grande calúnia”, em que inúmeras mentiras foram vociferadas contra os bolcheviques e contra Lenin especialmente. O líder bolchevique teve que se exilar na Finlândia e inúmeros dirigentes regressaram à clandestinidade dos tempos do czarismo. Foram acusados de organizar um levantamento insurrecional apesar de o contrário ter acontecido: os bolcheviques procuraram acalmar os ânimos dos manifestantes, sabendo que o momento não era o correcto para a sublevação. No entanto, esta contra-propaganda teve como inesperada consequência a ampla divulgação desse pequeno partido e, consequentemente, das suas ideias, o que contribuiu para a sua popularização para lá de Petrogrado.

Podemos dizer que em Julho os trabalhadores e soldados de Petrogrado tentaram forçar os mencheviques e o socialistas-revolucionários a tomar o poder de forma pacífica. Os oportunistas não o souberam fazer. A única conclusão possível, após estes “socialistas” se terem recusado a transferir o poder para os sovietes, era de que o seu cargo deveria ser revogado. De um recuo, os bolcheviques conseguiram obter uma vitória, conquistando a lealdade das massas e ganhando autoridade junto delas.

A tomada do poder, no entanto, não é a tarefa mais difícil, como comprova Outubro e as poucas mortes resultantes dessa insurreição. O problema, como mais tarde ficou claro para todos, reside em manter o poder sob ataque da contra-revolução. A Comuna de Paris, quase meio século antes, demonstrara-o com o sangue de milhares de communards.

[1] Os mencheviques eram uma organização com centenas de milhares de militantes operários mas com uma direcção da pequena-burguesia urbana e, por isso, as suas posições eram oportunistas, reflectindo essencialmente os interesses dessa cúpula.

[2] O Partido Socialista Revolucionário era a maior organização de esquerda da Rússia, com vastas bases camponesas, ou seja, com uma composição de classe heterogénea — compreendia pequenos proprietários, trabalhadores assalariados, rendeiros e arrendatários de terra. Note-se que este partido não tem qualquer relação política ou histórica com o Socialismo Revolucionário — secção portuguesa do Comité por uma Internacional dos Trabalhadores.

[3] Partido dos democratas constitucionalistas. O seu nome oficial era Partido da Liberdade do Povo e era composto de liberais que pertenciam às classes abastadas.

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