Nos passados dias 13 e 14 de novembro, a Esquerda Revolucionária Internacional celebrou o seu segundo congresso. A discussão, que se prolongou durante um dia e meio, analisou em profundidade os grandes acontecimentos da luta de classes do último período: desde os levantamentos populares e insurreições que sacudiram dezenas de países em anos recentes, passando pela catástrofe social e económica precipitada pela irrupção da pandemia, a alteração na correlação de forças mundiais, assim como a ascenção da extrema-direita populista e o fracasso das novas formações da esquerda reformista.

A base para este debate foi o documento Perspectivas Mundiais que preparamos no início de setembro, e que foi discutido e alterado em todas as seções da Esquerda Revolucionária Internacional ao longo de dois meses. Publicamos o documento aprovado por unanimidade no congresso em duas partes.

Clica AQUI para leres a primeira parte.


II. Revolução e Contra-revolução

Fiasco imperialista no Afeganistão1

A vitória fulminante dos talibãs causou uma autêntica comoção, mostrando a um mundo atónito a mudança radical na correlação de forças entre as potências. A entrada em Cabul dos fundamentalistas sem disparar um único tiro; o colapso e desintegração do governo fantoche de Ghani e do seu exército — treinado e financiado pelos estado-unidenses — e as imagens caóticas da evacuação no aeroporto mostram a magnitude da derrota.

Apesar dos enormes recursos destinados à ocupação, 2,26 biliões de dólares, os únicos beneficiários foram o complexo militar-industrial e os seus fornecedores, os bancos de Wall Street e uma elite corrupta de políticos afegãos que fugiram. O governo dos Estados Unidos já desembolsou 500 mil milhões em juros para uma guerra financiada por empréstimos massivos. O valor total dos gastos, incluindo dívidas de empréstimos, é estimado em 6 biliões de dólares.

Pelo menos 25% do PIB afegão foi engolido pela corrupção nos últimos anos, enriquecendo senhores da guerra e um grupo heterogéneo de sipaios colaboracionistas utilizados ​​para construir uma “administração estatal” que desabou como um castelo de cartas numa questão de horas. O que aconteceu ao exército não tem precedentes: cheio de batalhões “fantasmas”, pelos quais os seus oficiais recebiam grandes somas de dinheiro, foi incapaz de lutar. Agora, esses mesmos senhores da guerra nos quais a ocupação se baseou, abandonam o amigo estado-unidense para continuar os seus negócios com os talibãs.

O povo afegão foi esmagado pela intervenção. Mais de 80% da população vive abaixo do limiar da pobreza e mais de 30% enfrentam “insegurança alimentar”. 87% das mulheres afegãs são analfabetas (dois terços das meninas não vão à escola) e 75% das adolescentes enfrentam o casamento forçado. O novo Código Penal aprovado a pedido dos ocupantes não modificou a legislação sobre violência contra as mulheres da era talibã anterior, mantendo o apedrejamento por adultério. Entre os militares e polícias afegãos, a figura do bacha bazi (literalmente, “brincar com as crianças”, um eufemismo que camufla a escravidão sexual infantil) era comum. Os líderes ocidentais conheciam estes abusos generalizados e simplesmente olharam para o lado. Os poucos soldados estado-unidenses que ousaram denunciá-los foram expulsos do exército.

Desde a invasão estado-unidense, a área dedicada ao cultivo de papoilas quadruplicou. Hoje, o Afeganistão produz 90% da heroína do mundo. Uma situação que teve consequências devastadoras para a população. Segundo a ONU, os viciados em heroína passaram de 200 mil em 2005 para cerca de 2,5 milhões em 2015, calculando-se que 9,5% das mulheres são dependentes e 9,2% das crianças até aos 14 anos tiveram resultado positivo para uma ou mais drogas.

Este é o panorama sombrio deixado pela presença imperialista no país. Mas a retirada das tropas dos EUA nada mais foi do que a implementação dos acordos assinados pela administração Trump com os talibãs em 2020. Por mais que a extrema-direita republicana queira aproveitar para culpar os democratas por este desastre. Nenhum dos dois partidos da classe dominante conseguiram evitar o colapso da credibilidade dos EUA e a desconfiança que se gerou sobre a sua capacidade de enfrentar a China e a Rússia. As proclamações de Trump e Biden sobre um renascimento da grandeza nacional estado-unidense estão a bater de cara com a realidade.

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Desde a invasão estado-unidense, a área dedicada ao cultivo de papoilas quadruplicou. Hoje, o Afeganistão produz 90% da heroína do mundo.

Uma mudança histórica nas relações internacionais

A derrota estado-unidense no Afeganistão representa uma oportunidade de ouro para a China. Não é segredo que as forças talibãs lhe confiaram na sua cobertura política e militar e agora pretendem o seu apoio ativo para serem reconhecidas internacionalmente. A promessa de investimentos substanciais em troca de que o futuro governo fundamentalista mantenha uma estabilidade interna razoável levou os talibãs a realizar gestos impensáveis ​​há uns anos atrás. Mas ainda é cedo para dizer se alcançarão os seus objetivos.

Uma coisa é evidente. Os talibãs sabem perfeitamente que apenas em aliança com Pequim poderão consolidar o seu poder, mesmo que temporariamente. Se não conseguirem impulsionar a atividade económica e se basearem apenas na repressão aberta, nunca conseguirão obter apoio social amplo o suficiente para evitar uma nova implosão e guerra civil. Por outro lado, é evidente o interesse da China pelo Afeganistão, país com uma posição geoestratégica fundamental e enormes reservas de minerais e terras raras para a produção tecnológica. Mas há mais forças envolvidas na equação, e a burguesia estado-unidense também não ficará de braços cruzados.

Síria, Iraque, Afeganistão, Irão, Líbano, Sudão, Iémen, Palestina, Ucrânia, Bielorrússia, Venezuela, Bolívia, Myanmar, Argélia... em todos estes países, embora a lista seja mais longa, a agenda imperialista da Casa Branca sofreu reveses retumbantes2. China e Rússia emergiram claramente mais fortes dos confrontos principais, assim como outras potências imperialistas mais pequenas.

O Irão, eterno inimigo dos Estados Unidos, conseguiu impor-se como potência preponderante no Médio Oriente. A estratégia de embargos e pressões económicas não conseguiu tirar os mulás do poder, ao invés disso, impulsionou-os a fortalecer as suas relações com a China, assinando acordos de investimentos no valor de 400 mil milhões de dólares.

Na Síria, foram a Rússia e o Irão, e indiretamente a China, quem obteve uma vitória incontestável. O regime de Bashar al Assad garantiu a sua posição à frente de um país devastado por uma guerra reacionária. O papel do imperialismo estado-unidense, em combinação com o Estado Islâmico, foi decisivo na evolução do conflito armado e da sua virulência destrutiva. Esta derrota, somada à do Afeganistão e à do Iraque, deixou os interesses dos EUA totalmente afetados no Médio Oriente e na Ásia Central.

Velhos aliados dos EUA mudaram de posição, como a Turquia ou o Paquistão. Este último caso é emblemático. Depois de ser durante décadas um baluarte do imperialismo estado-unidense, a podre burguesia paquistanesa e o seu aparato militar, incluindo os poderosos serviços secretos, colocaram-se sob a influência chinesa e pressionam para desempenhar um papel transcendental na sua “Nova Rota da Seda”3. Podemos imaginar os lucros resultantes desta operação. Por isso, depois de intervir ativamente a favor dos talibãs, farão o possível para incorporar o Afeganistão no projeto chinês.

A Arábia Saudita e o Egipto também assinaram acordos com a China, aderindo à “Nova Rota da Seda” e, para os financiar, ao Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. A lista estende-se a outros países como o Myanmar, cuja junta militar recebeu ajuda decisiva do imperialismo chinês para afogar em sangue a insurreição popular4, ou mesmo às Filipinas, cuja lealdade fraqueja abertamente.

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A Arábia Saudita e o Egipto também assinaram acordos com a China, aderindo à “Nova Rota da Seda” e ao Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura.

Israel e o levantamento palestiniano

Mas o Afeganistão não é o único ponto crítico para os EUA. No último período, todo o Médio Oriente se converteu num cenário central da luta de classes e das transformações que abalam as relações internacionais. O movimento revolucionário do hirak argelino5 foi seguido por levantamentos populares e pela crise revolucionária no Iraque e no Líbano6, ou pelas prolongadas lutas operárias no Irão. Não existe um único regime estável na região, atravessado por profundas divisões nas suas classes dominantes.

Neste cenário complexo, a Palestina é uma componente fundamental da revolução árabe. Por um lado, é a maior expressão da impossibilidade de resolver a questão nacional sob o capitalismo. E por outro lado, supõe uma reivindicação inquestionável da teoria da revolução permanente: a libertação do povo palestiniano não pode ser separada da luta por uma Palestina e Israel socialistas. Esta é uma ideia central que foi demonstrada pela experiência de mais de 70 anos.

A situação material da população palestiniana é agora a pior desde 1948. As diferentes guerras vencidas por Israel, o roubo de terras por meio de assentamentos legais e ilegais, o abandono dos “aliados” árabes... resultaram numa dominação brutal sobre a Cisjordânia e Gaza e um sistema de apartheid contra os palestinianos dentro de Israel. Mas a outra face desta opressão é que as forças objetivas para a libertação do povo palestiniano estão mais presentes do que nunca.

A questão palestiniana tem as suas raízes na política do imperialismo britânico após a Primeira Guerra Mundial. Desde esse momento até à partição em 1947, manobrou entre os sionistas e os senhores da guerra árabes reacionários, usando a tática de “dividir para reinar”, como fez na Índia ou na Irlanda. A identidade nacional palestiniana emerge neste contexto. Historicamente, a região esteve sob domínio árabe e posteriormente do Império Otomano, os seus habitantes eram árabes e outras etnias que professavam religiões diferentes, mas até então não havia um “povo palestiniano” diferenciado. A sua consciência nacional foi moldada pela opressão imperialista mais cruel.

A Segunda Guerra Mundial trouxe mudanças profundas. O holocausto nazi fortaleceu as posições do sionismo mais reacionário, até então minoritário entre o povo judeu e rejeitado pela maioria da classe trabalhadora, e acelerou a saída de milhares de judeus da Europa para a Palestina. Naquela época, as duas grandes potências mundiais, o imperialismo estado-unidense e o stalinismo, ambos fortalecidos após a Segunda Guerra Mundial, disputavam a influência num território-chave.

Hoje é necessário relembrar que a força que mais encorajou a divisão da Palestina foi a clique stalinista em Moscovo, e também aquela que forneceu às organizações sionistas a primeira grande ajuda militar. Uma política criminosa que semeou a divisão da população em linhas nacionais e que rompeu com qualquer ponto de vista socialista e internacionalista. Procurando ultrapassar os EUA, Stalin conseguiu exatamente o oposto.

Sob o impulso da URSS e do imperialismo ocidental, em novembro de 1947 a partição da Palestina foi votada na ONU e em 14 de maio de 1948 Israel proclamou a sua independência. O que veio depois da “resolução da questão nacional” judaica, seguindo as linhas propostas pelos stalinistas e imperialistas, foi brutal. A Nakba levou à expulsão de 750.000 palestinianos, entre dois terços e três quartos do total, ao roubo das suas casas e propriedades e ao início do apartheid. A ONU dividiu o território entre Israel (55%) e Palestina (45%), com Jerusalém sob administração internacional.

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Sob o impulso da URSS e do imperialismo ocidental, em novembro de 1947 a partição da Palestina foi votada na ONU e em 14 de maio de 1948 Israel proclamou a sua independência.

Poucos meses depois, Israel já havia ocupado 50% da parte palestiniana mais Jerusalém Ocidental após a vitória na primeira guerra israelo-árabe (contra os seus cinco vizinhos árabes). Nesta guerra, as armas fornecidas pelo bloco stalinista (via Checoslováquia) foram decisivas, como o presidente israelita Ben-Gurion reconheceu vinte anos depois. Então, em 1967, após a Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou a Faixa de Gaza, a Cisjordânia, Jerusalém Oriental, os Montes Golã e a Península do Sinai.

Não é por acaso que as três primeiras décadas de existência do Estado israelita tenham sido marcadas pelo domínio absoluto do Partido Trabalhista em todas as esferas de poder — foi apenas em 1977 que o primeiro governo do Likud foi constituído. A forma em que se começou a construção do Estado israelita em 1948 foi a ilusão do kibutz e de uma fachada de “autogestão” em que se comparava Israel à Jugoslávia, o que teve um impacto na esquerda em todo o mundo. Claro, a situação mudou rapidamente e o trabalhismo tornou-se o agente político do imperialismo estado-unidense, beneficiando do forte crescimento económico do pós-guerra.

Quando a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi formada em 1964, no calor da revolução cubana e dos grandes movimentos coloniais de libertação em África (Congo, Angola, Moçambique...), a sua política replicou o programa stalinista da maioria das organizações guerrilheiras da época: a teoria das duas etapas e a busca de alianças com a suposta “burguesia democrática árabe”. Esta orientação, as suas incursões guerrilheiras primeiro e a prática generalizada do terrorismo individual depois, com bombas indiscriminadas contra civis, fecharam o caminho para a classe trabalhadora israelita. A burguesia sionista soube tirar o máximo proveito desta estratégia fracassada durante décadas, militarizando ao máximo a sociedade e espalhando o seu nacionalismo supremacista entre amplas camadas da população.

Depois vieram as derrotas sangrentas da resistência palestiniana na Jordânia e no Líbano, que não podemos tratar neste espaço, e que atestaram a traição da burguesia árabe à causa palestiniana e a sua oposição raivosa a qualquer movimento revolucionário que pudesse minar as bases do capitalismo e o poder destas oligarquias corruptas.

Foi a partir de 1987, com a eclosão da Primeira Intifada, que o levantamento popular palestiniano baseado em greves e lutas de massas se espalhou aos palestinianos de Israel, gerando uma onda de solidariedade em todo o mundo, inclusive entre a população israelita. Mas Arafat e os seus colaboradores, em vez de confiarem naquele maravilhoso movimento para chamar o povo israelita à luta pelo socialismo de uma forma unificada e para derrubar o regime sionista e as burguesias árabes, utilizaram-no para tecer os acordos de Oslo, uma submissão completa e uma fraude cujo único resultado foi a subcontratação de parte da ocupação israelita à Autoridade Nacional Palestina.

O regime sionista beneficiou dos erros políticos da OLP e, acima de tudo, do patrocínio estado-unidense que o apoiou económica e militarmente com recursos massivos. Mas hoje Israel vive a crise mais profunda da sua história, que se explica devido ao seu papel histórico como baluarte do imperialismo contra os regimes árabes ter sido superado. A grande maioria deles são agentes do Departamento de Estado há vários anos, com exceção do Irão. Restabeleceram relações diplomáticas com Tel Aviv e contaram com os seus conselhos e apoio militar para suprimir e esmagar a Primavera Árabe.

Israel manteve padrões de vida equivalentes aos dos países ocidentais por décadas. Essa foi a base da sua estabilidade; combinado com a demagogia nacionalista, foi o que mobilizou a maioria da população, inclusive a classe trabalhadora, em torno da defesa do Estado sionista. Agora tudo isso acabou. O problema para a classe dominante israelita não vem de fora, mas de dentro, com o desenvolvimento de uma luta de classes agravada pela crise económica, o empobrecimento das camadas médias e a perda de expectativas da juventude, entre as quais o chauvinismo sionista tem cada vez mais dificuldade em penetrar. A pandemia apenas acelerou os eventos. O desemprego passou de 3,8% em 2019 para 6,1% em 2020 e estima-se que chegue a 6,5% em 2021.

A classe dominante tem um problema óbvio de legitimidade. Embora a polarização social se tenha expressado em mobilizações de massas contra a direita nos últimos anos, no campo eleitoral a fragmentação e a crise das formações tradicionais impossibilitou a formação de um governo estável.

Procurando uma saída do impasse e de forma a salvar a sua carreira pessoal, Netanyahu provocou a última guerra contra os palestinianos. Mas o resultado foi negativo para os seus interesses e os da classe dominante sionista7. A operação de punição contra Gaza provocou uma revolta formidável da população palestiniana, que se espalhou de Jerusalém aos territórios ocupados, e em que os palestinianos dentro de Israel desempenharam um papel de vanguarda. Como já aconteceu noutros países, estas mobilizações surgiram de baixo, com os jovens na linha de frente ultrapassando a liderança reformista palestiniana, e tiveram o seu ponto culminante na histórica greve geral de 18 de maio, a maior em décadas.

Milhares de trabalhadores palestinianos e jovens, altamente críticos da liderança do Hamas e desprezando a atual corrupção da Fatah e da Autoridade Palestiniana, descobriram com base na sua experiência que a libertação do povo palestiniano avançou mais nestas semanas de luta de massas do que em anos de pactos e acordos podres com o imperialismo e o Estado sionista. Também comprovaram que a greve geral e as manifestações de massas, a ocupação de espaços públicos e a autodefesa armada são métodos muito mais eficazes do que as incursões de guerrilha.

Reportagens de meios de comunicação independentes falam abertamente sobre como a Autoridade Palestiniana está a perder o controlo da Cisjordânia e enfrenta o colapso. Isto é o que está por trás do encontro do Ministro da Defesa israelita Gantz com Abbas em Ramallah a 29 de agosto, o primeiro naquele nível desde 2010.

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Reportagens de meios de comunicação independentes falam abertamente sobre como a Autoridade Palestiniana está a perder o controlo da Cisjordânia. Isto é o que está por trás do encontro do Ministro da Defesa israelita Gantz com Abbas.

Por sua vez, a liderança do Hamas beneficia do facto de que a natureza abomina o vazio. Mas o levantamento palestiniano de maio também mostrou, mais uma vez, os limites da formação integrista. Carecem de um programa de classe e revolucionário para enfrentar o Estado sionista e só respondem aos seus patrocinadores reacionários da oligarquia árabe.

Os marxistas foram contra a formação do Estado de Israel na Palestina em 1947, mas décadas passaram e a situação transformou-se. Gerações de israelitas viveram nas terras que habitam atualmente, e desenvolveu-se uma classe trabalhadora que também passou por grandes mudanças e não é mais uma firme apoiante dos planos reacionários do Estado sionista. Nos últimos anos houve importantes lutas operárias, greves gerais, o movimento dos indignados de 2011, até chegar ao movimento contra Netanyahu que eclodiu em julho de 2020.

A posição marxista em relação à causa palestiniana deve partir de uma análise concreta da situação e do balanço dos eventos passados. Os Acordos de Oslo de 1993, que foram vendidos como a realização da “autodeterminação” palestiniana, foram apenas uma armadilha feita à medida de Israel. A esquerda em todo o mundo apoiou este acordo, a ideia dos “dois estados” como um passo necessário. No entanto, não foi nada mais do que um aborto reacionário.

As massas palestinianas experimentaram a fraude desta falsa “autodeterminação” sob o manto protetor do imperialismo e da tutela vigilante do sionismo. A repressão selvagem, o roubo de terras por meio de assentamentos por colonos que não param de crescer ou a política de punição contra Gaza têm sido a norma nestas três décadas. Os Acordos de Oslo foram um meio de garantir a ocupação e colaboração da corrupta Autoridade Palestiniana.

A teoria da revolução permanente é clara: os direitos nacional-democráticos das nações coloniais e ex-coloniais só podem ser conquistados com base num movimento revolucionário que derrube o capitalismo, o latifúndio e acabe com a opressão imperialista. Não pode haver libertação do povo palestiniano sem derrubar o Estado sionista e a burguesia palestiniana. E este é um ponto sobre o qual devemos incidir: o papel da burguesia palestiniana, que possui os meios de produção, explora a classe trabalhadora palestiniana e possui um aparato repressivo para defender a sua posição material.

A Fatah demonstrou na Cisjordânia o que é: uma subcontratada da ocupação israelita, que fornece os seus serviços em troca da manutenção dos negócios e privilégios da classe que representa. E o Hamas, em essência, fez o mesmo ao longo de décadas: precisa de confrontos periódicos com Israel para esconder a sua incapacidade de resolver os problemas das massas e de alcançar a libertação nacional.

A única forma de libertar o povo palestiniano é através da revolução socialista, para derrubar e expropriar ambas as classes dominantes. Isto lançaria as bases materiais para uma saída verdadeiramente democrática. E nesta tarefa a participação da classe trabalhadora israelita é essencial.

Não pode haver uma revolução socialista bem-sucedida na Palestina sem um movimento revolucionário em Israel. Assim como é improvável que haja um movimento revolucionário na Palestina e nada aconteça no resto do Médio Oriente, como os últimos dez anos mostraram. Nesse contexto, essa ascensão revolucionária aprofundaria as tendências para a unidade de classe.

Este é o ponto central: o conflito só pode ser resolvido no quadro da luta revolucionária comum. E a dinâmica das revoluções é dialéctica, não responde a um guião pré-determinado ou a fórmulas fechadas. Os marxistas, na fase atual, defendem uma Federação Socialista como a melhor forma estatal de transição que garantiria plenamente os direitos democráticos dos palestinianos e dos israelitas. Uma Federação Socialista baseada na democracia operária tornar-se-ia o meio para resolver com sucesso a tragédia histórica dos refugiados palestinianos em condições democráticas e de igualdade, e seria o aríete para estender a revolução ao resto do Médio Oriente.

Mas não pode haver revolução socialista vitoriosa sem um partido revolucionário de massas que una os oprimidos na Palestina e em Israel sob a mesma bandeira. Esta é a tarefa fundamental a ser resolvida no próximo período.

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Não pode haver uma revolução socialista bem-sucedida na Palestina sem um movimento revolucionário em Israel. Assim como é improvável que haja um movimento revolucionário na Palestina e nada aconteça no resto do Médio Oriente.

América Latina, entre a revolução e a contra-revolução

Com 8,4% da população mundial e 28% das mortes causadas pela covid-19, a América Latina é a região do planeta mais duramente atingida pela pandemia. O PIB da região caiu 7,7% em 2020 e 2,7 milhões de empresas e negócios fecharam. O número de desempregados cresceu em 26 milhões, a maior crise nos mercados de trabalho da América Latina desde 1950. 33,7% da população (209 milhões de pessoas) vivem na pobreza e 78 milhões na extrema pobreza, mais 30 milhões do que em 2019!

Esta situação está a alimentar um mal-estar social generalizado. A sua expressão mais poderosa até agora tem sido as insurreições no Chile e na Colômbia8. Em ambas, um ataque concreto (a subida do metro e a reforma fiscal, respectivamente) fez rebentar toda a indignação acumulada. Todos os factores que caracterizam uma situação revolucionária estavam presentes. A massividade e determinação de ir até ao fim derrotou a repressão, abrindo divisões profundas na classe dominante. A militância dos jovens infectou o proletariado como um todo, conduzindo greves gerais, manifestações de massas e arrastando amplos sectores das camadas médias.

Tanto no Chile como na Colômbia, desenvolveram-se elementos embrionários de duplo poder: assembleias, "cabildos abiertos", "linhas da frente", que assumiram o controlo de bairros inteiros durante semanas de cada vez, organizando a autodefesa contra a repressão. Se tivesse havido uma liderança revolucionária com um programa socialista que apelasse a uma greve geral indefinida e à extensão e unificação destas organizações, teria sido possível tomar o poder no Chile e na Colômbia. A ausência de tal liderança é o factor decisivo que condiciona toda a situação.

No Chile, a assinatura do "Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição" pelo Partido Socialista (PS) e pela Frente Ampla (FA), e a sua aceitação de facto pelo Partido Comunista (CCP), salvaram Piñera, desviando a revolta revolucionária para o terreno parlamentar. Mas apesar do balde de água fria a classe trabalhadora e os jovens desferiram mais uma vez um tremendo golpe sobre a reacção no referendo de 25 de Outubro de 2020 e nas eleições para a Convenção Constitucional em Maio de 2021. Os candidatos de esquerda da social-democracia, Apruebo Dignidad (PCCh-FA) e Lista del Pueblo (candidatos independentes nomeados por assembleias populares, colectivos feministas e indígenas, movimentos sociais, etc.) obtiveram mais de 35% dos votos e 40% dos assentos.

Após este resultado, e com as sondagens a dar o candidato do PCC, Daniel Jadue, como favorito para as eleições presidenciais, a burguesia desencadeou uma violenta campanha de medo, identificando um possível governo Jadue com o "totalitarismo comunista" e levantando o espectro da crise em Cuba e na Venezuela. Os líderes do PC prometeram contrariar esta campanha da única forma possível: defendendo claramente um programa socialista que satisfizesse as necessidades de todos os oprimidos.

A política de conciliação do PCC levou-o a perder as primárias da lista Apruebo Dignidad para a candidatura de Gabriel Boric (FA), que se apresentou como o campeão de uma esquerda "realista" e "inclusiva". Agora a ala direita está a usar a mesma demagogia contra ele, acusando-o de "transformar o Chile em Chilezuela".

A dois meses das eleições as sondagens prevêem uma segunda volta entre Boric e o candidato de extrema-direita José Kast. Os eleitores indecisos e possíveis votos inválidos ou em branco pairam em torno dos 30%, e cresce a tendência para a abstenção. A ascenção fulgurante de Kast - um político burguês com um discurso e um programa semelhante ao de Trump e Bolsonaro - representa uma ameaça real. O seu avanço interpela o conjunto da esquerda militante e dos activistas sociais sobre o que ocorreu desde a insurreição de 18 de outubro de 2019: que conclusão se pode retirar das manobras parlamentares da classe dominante e da estratégia que advoga por uma "reforma" progressista do capitalismo chileno?

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A política de conciliação do PCC levou-o a perder as primárias da lista Apruebo Dignidad para a candidatura de Gabriel Boric (FA), que se apresentou como o campeão de uma esquerda "realista" e "inclusiva".

Kast utiliza demagogicamente a crise económica para se distanciar de Piñera, a cujo partido ele pertencia, e sintonizar-se com o desespero de amplos setores das camadas médias. Recorre também à xenofobia contra os imigrantes, e ao machismo e LGTBIfobia típicos da extrema-direita, procurando o apoio da hierarquia católica e das igrejas evangélicas para aumentar a sua penetração nas camadas populares. Faz bandeira da "inação" da Convenção Constitucional, para agrupar setores desmoralizados que veem como se sucedem os debates na constituinte e os seus problemas não são resolvidos.

Como explicámos noutros artigos e declarações, a Convenção Constitucional (nome dado à Assembleia Constituinte) deixou intacto o poder dos capitalistas e o seu controlo sobre a economia, os tribunais, a polícia e o exército. Além disso, a burguesia estabeleceu um mínimo de 2/3 dos votos na Convenção para validar qualquer voto, o que lhe permite barrar medidas contrárias aos seus interesses, acrescentando os deputados da direita piñerista, a DC e o PS.

A classe dominante está a acusar a polarização e sofre divisões importantes. Há setores que não acreditam que a Convenção sirva para amarrar as massas. Por isso apoiam Kast, preparando-se para uma saída repressiva que esmague definitivamente o movimento popular. Claro, há um outro setor que, compartilhando que é preciso cortar o processo revolucionário pela raíz, teme que a opção prematura pela extrema-direita venha a provocar uma reação explosiva, e continua a apostar na aliança entre DC e PS que lhes proporcionou resultados tão bons desde o fim da ditadura.

Este setor tenta a todo o custo colocar o candidato da Concertación na segunda volta, apelando à paz e reconciliação social para impedir uma vitória de Boric que, apesar das limitações do seu programa reformista, acham que estimularia a mobilização das massas. Se não tiverem sucesso, tentarão assegurar assentos suficientes para controlar o novo parlamento, como fazem com a Convenção, e condicionarão Boric se ele vencer.

E a tática do candidato de esquerda apoia esta abordagem. Boric não faz nada mais do que moderar o seu programa, buscando "o voto ao centro" para se opor a Kast. Mas nas condições de polarização tão extrema e de uma aguda crise social, esta política de conciliação só pode, mais cedo ou mais tarde, fortalecer a reação da direita.

Enquanto os capitalistas mantiverem sob o seu rígido controlo os bancos, as grandes empresas, a terra e o aparato estatal, utilizarão esse enorme poder para sabotar qualquer parlamento ou governo de esquerda. Nenhum tipo de Assembleia Constituinte, por mais “livre” e “soberana” que se queira rotular, pode desafiar este poder através do jogo parlamentar tutelado pela burguesia.

Muito está em jogo. A esquerda revolucionária chilena tem a obrigação de participar no campo eleitoral, seja nas eleições para a Convenção Constituinte, para o Parlamento ou nas eleições presidenciais para atingir os mais amplos setores da classe trabalhadora e da juventude. Mas deve fazê-lo apresentando um programa de classe, com exigências socialistas que elevem o nível de consciência e organização dos oprimidos, que não limitem o seu horizonte a um capitalismo com rosto humano utópico.

As organizações à esquerda do PCCh tiveram uma obsessão doentia em apresentar a palavra de ordem de uma Assembleia Constituinte livre e soberana como a panaceia que os diferenciaria da esquerda reformista. Dedicámos numerosos artigos e declarações políticas ao debate sobre esta palavra de ordem e as consequências negativas de colocá-la em primeiro plano em vez de se defender um programa de ação socialista e de classe. A evolução dos eventos tem mostrado que não errámos nas nossas projeções.

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As organizações que se situam à esquerda do PCCh tiveram uma obsessão doentia em apresentar a palavra de ordem da Assembleia Constituinte livre e soberana.

Todavia ainda é possível derrotar a estratégia capitalista de desgastar o movimento e desmoralizá-lo para melhor esmagá-lo. Mas a esquerda revolucionária e militante deve dar um giro de 180º na sua agitação pública, e abandonar imediatamente a concepção estadista que opõe a “Assembleia Constituinte livre e soberana” à defesa de um programa socialista.

Tal como no Chile, na Colômbia a única coisa que impediu o derrube de Duque da ultra-direita foram as acções da Comissão Nacional de Greve (composta pelos líderes sindicais) e Gustavo Petro (o principal líder da esquerda). Todos eles desviaram o movimento para a frente eleitoral, dando a uma burguesia paralisada pela acção directa das massas a oportunidade de se reorganizar.

Com os partidos tradicionais da classe dominante e a ultra-direita uribista massivamente desafiados, os capitalistas estão a experimentar várias combinações com as novas forças pequeno-burguesas, como o Partido Verde e outros, para levantar uma alternativa "centro-esquerda". Ao mesmo tempo, estão a utilizar uma campanha de medo ao estilo chileno contra Petro, procurando assegurar o controlo do parlamento e impedir a sua vitória em Maio de 2022. Este seria um ponto de viragem na luta de classes, apesar do seu programa reformista.

Mudanças abruptas

Um exemplo da permanente instabilidade e transformação na correlação de forças é a situação no Peru9. A oligarquia convocou eleições convencida de que a fragmentação e paralisia da esquerda tornaria mais fácil formar um governo com legitimidade suficiente para implementar a sua agenda de ataques. Mas o discurso de Pedro Castillo, denunciando a desigualdade e a corrupção e prometendo profundas mudanças sociais, ligou com milhões de pessoas oprimidas. Castillo passou de 2% nas primeiras sondagens para ganhar o maior apoio eleitoral da história peruana.

As tentativas desesperadas da oligarquia para impedir a sua proclamação levaram à mobilizações de massas e a uma greve nacional. Para evitar uma insurreição, o imperialismo e um sector inicialmente minoritário da classe dominante, após semanas de hesitação, impuseram o seu reconhecimento. Em 40 dias de governo, as pressões a que Castillo está sujeito expressam-se com extraordinária virulência, agravando a situação económica e provocando constantes crises governamentais. A sua tentativa de as contornar, equilibrando a esquerda e a direita, apenas provocará novos confrontos10.

Os efeitos da crise estão também a provocar mudanças dramáticas num país-chave como o Brasil. O tratamento da pandemia expôs as políticas criminosas de Bolsonaro a milhões de pessoas, incluindo sectores da pequena-burguesia e de camadas populares desesperadas que votaram nele. É por isso que uma secção decisiva da burguesia está consciente de que precisa de um substituto fiável para evitar males maiores. A decisão do Supremo Tribunal de libertar e revogar a desqualificação de Lula abriu este cenário11.

No dia 22 de Maio, Fernando Henrique Cardoso, um proeminente representante da classe dirigente e rival histórico de Lula, encontrou-se com este. Embora o seu partido tenha rejeitado o convite para se juntar à frente do PT e do PSOL, Cardoso declarou que numa corrida Bolsonaro-Lula votará em Lula. Bolsonaro fala de fraude, procurando o apoio de sectores da classe dominante e do exército para impor um sistema eleitoral que garanta a sua vitória em 2022, e mobilizando a sua base com um discurso que faz lembrar Trump antes do assalto ao Capitólio.

Embora as suas políticas reformistas e capitalistas tenham aberto caminho à ascensão da extrema-direita, a ausência de uma alternativa consistente à esquerda (com o PSOL empenhado na estratégia da "frente popular" ao lado do PT) e o desejo de expulsar o fascista que ocupa a presidência permitiram a Lula obter um enorme apoio nas sondagens: 55% contra os 30% de Bolsonaro numa hipotética segunda volta. Mais uma vez, tentarão resolver as formidáveis contradições da sociedade na arena eleitoral e parlamentar. Mas como a história recente mostra, e o exemplo dos EUA sublinha, o tempo em que as grandes questões se resolviam por compromisso acabou. O Brasil está a viver uma polarização social e política sem precedentes, e prepara-se para uma onda de mobilizações e de luta de classes ferozes em que nenhum cenário pode ser descartado.

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Embora as suas políticas reformistas e capitalistas tenham aberto caminho à ascensão da extrema-direita, o desejo de expulsar o fascista que ocupa a presidência permitiram a Lula obter um enorme apoio nas sondagens.

O instinto das massas para fechar a porta à direita permite a AMLO no México, Arce na Bolívia ou Alberto Fernández na Argentina manter, por enquanto, níveis significativos de apoio. No entanto, a crise e as suas políticas de cedência às exigências capitalistas sobre todas as questões decisivas já estão a aumentar o descontentamento12.

Nas eleições federais mexicanas, o Morena ganhou numerosos estados reflectindo a vontade das massas de esmagar a direita e exigir que AMLO vire à esquerda. Na capital, recebeu um importante voto de castigo. Nas eleições municipais bolivianas, o MAS ganhou na maioria dos municípios, especialmente nas zonas rurais; fez progressos em Santa Cruz, onde os fascistas governam, mas perdeu praticamente todas as grandes cidades, incluindo baluartes como El Alto e La Paz. Também na Argentina, o kirchnerismo sofreu um grave revés nas eleições primárias contra o macrismo.

Na Argentina, com a inflação a 58% e a pobreza a 41%, algo que não se via desde o Argentinazo, as eleições legislativas de 14 de Novembro poderiam servir de veículo para o descontentamento. A impressionante Maré Verde pelo direito ao aborto já mostrou o potencial revolucionário. O programa e o método adequados permitiriam à FIT-U tirar partido desta situação. Mas a mistura de sectarismo e oportunismo dos seus líderes pode mais uma vez frustrar esta possibilidade. No outro extremo, a extrema-direita poderia entrar no parlamento com um apoio entre 5 a 12%.

Na Argentina, Uruguai, Chile, Peru e outros países estão a emergir imitadores de Bolsonaro com um apoio eleitoral significativo ou com o potencial de o conseguir. Geralmente são cisões dos partidos burgueses tradicionais, ligados ao aparelho de Estado (militares, juízes, forças policiais...), apelando ao desespero das camadas médias e confiando nos sectores mais obscurantistas da Igreja Católica e das Igrejas Evangélicas numa tentativa de penetrar nos bairros populares. O seu discurso explora os efeitos da crise, o fracasso das políticas reformistas e, em alguns casos, a chegada maciça de migrantes venezuelanos para atacar o socialismo e fomentar os preconceitos xenófobos.

Esta evolução representa uma ameaça muito séria. Os exemplos do Chile, Colômbia e Peru mostram que a correlação de forças ainda é claramente a favor da esquerda, mas para tirar partido dela e esmagar a reacção, é essencial uma estratégia revolucionária com um programa socialista e um plano para a tomada do poder.

Cuba e Venezuela

Venezuela e Cuba encontram-se em situações excepcionais no continente. A liquidação da revolução bolivariana — não pelo imperialismo estado-unidense e pela burguesia, mas pela burocracia do PSUV tem um efeito devastador sobre a moral das massas. Embora milhares de activistas ainda estejam à procura de uma alternativa revolucionária, a situação geral continua a ser uma situação de profundo refluxo político13.

O retumbante fracasso do golpe organizado pelos EUA neste contexto (tal como a sua derrota na Bolívia após ter derrubado com sucesso Evo Morales), e o lamentável papel do seu fantoche Juan Guaidó, não é uma questão de importância secundária. O apoio chinês e russo foi fundamental para que os militares apoiassem Maduro. Este deu passos importantes na consolidação de um regime bonapartista burguês baseado na burocracia estatal e do PSUV, na liderança militar e na chamada "boliburguesiia".

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De 2000 a 2018, a Venezuela foi responsável por 47,8% dos créditos chineses e russos à América Latina (67.800 milhões). A maior parte destes foram para a exploração mineira e extracção de petróleo.

Estas são as condições que precipitaram as negociações entre o governo de Maduro e a oposição no México. A decisão unânime desta última a favor da participação nas eleições municipais e regionais de 21 de novembro significa o reconhecimento da derrota da sua estratégia de golpe e fortalece Maduro. Ao mesmo tempo, as políticas capitalistas e bonapartistas (aprofundadas durante a pandemia) estão a aumentar a rejeição do regime por parte das massas. As primárias do PSUV, planeadas para transmitir uma sensação de força, tiveram uma baixa participação e reflectiram as tensões no seio da burocracia.

De 2000 a 2018, a Venezuela foi responsável por 47,8% dos créditos chineses e russos à América Latina (67.800 milhões). A maior parte destes foram para a exploração mineira e extracção de petróleo, e dependem da participação de empresas chinesas e russas para investimentos, importações e novos financiamentos. Juntamente com a corrupção e parasitismo da burocracia e burguesia venezuelanas, este capital não se traduziu no desenvolvimento de infraestruturas ou na recuperação da produção. A indústria petrolífera (chave para as finanças do Estado) entrou em colapso. Vários acordos com a China, Rússia e Irão impediram o colapso total, mas os actuais 600.000 barris por dia são 45% inferiores em relação ao período que antecede as sanções dos EUA.

Um dos principais objectivos de Maduro nas negociações é o levantamento, ou alívio, destas sanções para aumentar a produção, cumprir os pagamentos pendentes à China, Rússia e Irão, e obter novos créditos para estimular o investimento capitalista e permitir estabilizar o sistema. Num contexto de crise mundial, o confronto entre os EUA e a China, com Washington obrigado a lutar pelo seu "quintal", as contradições tendem a agravar-se. As perspectivas para a Venezuela estão totalmente ligadas ao desenvolvimento da crise capitalista e da luta de classes a nível continental e mundial.

Isto também é verdade para Cuba. As mobilizações de julho representaram um ponto de viragem. Os sectores pró-imperialistas nacionais e os seus amos em Washington tentam utilizá-las, mas a grande maioria dos manifestantes eram jovens e trabalhadores que se manifestavam contra a desigualdade, a deterioração das suas condições de vida, e a corrupção provocada pela agenda pró-capitalista da burocracia.

Na ampla declaração que publicámos antes do verão, analisámos a natureza destes acontecimentos e as perspectivas, sublinhando que a única coisa que pode impedir o triunfo da contra-revolução capitalista, seja nas mãos da China ou dos EUA, é a luta independente da classe trabalhadora cubana e dos sectores comunistas da vanguarda pela verdadeira democracia operária, o fim do impasse da burocracia e dos seus privilégios e um apelo à extensão da revolução na América Latina e a nível internacional14.

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Em Cuba, os sectores pró-imperialistas tentam as mobilizações de Julho em seu benefício, mas a grande maioria dos manifestantes eram jovens e trabalhadores que se manifestavam contra a desigualdade.

América Latina e o "bom imperialismo”

Entre 2005 e 2015, o boom das exportações de matérias-primas para a China deu às economias latino-americanas, e portanto à classe dominante, espaço de manobra. Especialmente desde 2010, tem sido um factor de abrandamento da ascensão revolucionária. A China tornou-se o principal financiador regional. Os seus créditos excedem o total concedido pelo Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outras agências imperialistas ocidentais.

Mas desde 2015, os efeitos da Grande Recessão têm-se tornado muito mais visíveis no continente. As receitas das exportações para a China e os créditos da China também diminuíram, ainda que a um ritmo e volume muito mais lentos do que os dos EUA. A ritmos diferentes, os países latino-americanos entraram numa recessão que a pandemia converteu em depressão.

Isto alimentou o colapso económico venezuelano e a aplicação de medidas de austeridade pelos governos do PT (Brasil), MAS (Bolívia) e correismo no Equador, o que corroeu o seu apoio social. Em países com governos de direita, significava planos selvagens de "ajuste", como na Argentina, Chile e Colômbia. Durante a pandemia, a necessidade da China de dar prioridade à sua frente interna tem continuado.

Uma dúvida sobre as perspectivas económicas para a América Latina é se, e a que ritmo, os níveis de investimento e crédito chineses recuperarão os níveis anteriores a 2015, e se a região será incluída nos grandes projectos chineses (Rota da Seda, etc.) a um nível que permita compensar o actual colapso.

Em qualquer caso, a experiência de 2005-2015 mostra que o investimento imperialista chinês não é uma panaceia. Não resolveu nenhum dos problemas básicos das economias latino-americanas, beneficiando fundamentalmente os grandes capitalistas, os bancos, a alta burocracia estatal e os sectores da pequena-burguesia comercial e agrícola. Com a China a leme, a expoliação, a precariedade laboral e as desigualdades sociais e, claro, a pilhagem imperialista dos recursos naturais do continente, continuarão e até aumentarão, gerando muitas das contradições que alimentam a crise atual. 

A ausência de uma direção marxista é o único factor que tem impedido o triunfo da revolução socialista em países decisivos do continente, o que teria mudado a história do mundo. A experiência da revolução bolivariana e o apoio internacional que ela mobilizou durante o seu período mais aceso são a melhor prova disso. Mas as tendências objectivas do colapso capitalista não diminuíram, nem a estabilidade foi restaurada, nem a tão apregoada viragem à direita teve lugar, nem a luta de classes está prestes a entrar num período de refluxo. A América Latina continuará a ser uma das arenas chave para forjar o partido revolucionário.

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As tendências objectivas do colapso capitalista não diminuíram, nem a luta de classes vai entrar num período de refluxo. A América Latina continuará a ser uma das arenas chave para forjar o partido revolucionário.

EUA sob uma polarização extrema

As consequências internas do desastre no Afeganistão também se fizeram sentir. De acordo com uma pesquisa recente publicada no USA Today, a aprovação da gestão de Biden relativamente à saída das tropas caiu para os 41%, com uma rejeição de 55%, e apenas 26% aprova atualmente o seu trabalho económico. Certamente haverá bastante exagero nestes números, mas eles mostram uma tendência significativa.

Trump foi derrotado nas urnas graças a uma histórica mobilização de votos e após uma formidável luta de massas, que levou milhões de mulheres, jovens e trabalhadores afro-americanos, brancos e latinos a ocupar as ruas durante os quatro anos do seu mandato, e que culminou com o levantamento social após a morte de George Floyd. Entre os meses de maio, junho e julho de 2020, entre 15 e 26 milhões de pessoas participaram nos protestos que varreram os EUA de uma ponta à outra.

Mas esta derrota eleitoral não significou, como muitos da esquerda previram, nem o desaparecimento de Trump nem o enfraquecimento do trumpismo, confirmando que estamos diante de tendências de fundo que continuarão a alimentar-se da decomposição social gerada por um capitalismo em crise15.

Após as eleições de novembro, Trump fortaleceu-se, ampliando e consolidando a sua base eleitoral entre milhões de pequeno-burgueses raivosos e sectores atrasados ​​da classe trabalhadora destruídos pela recessão e feridos no orgulho face ao declínio irremediável do império estado-unidense. O seu discurso racista e supremacista, o seu nacionalismo furioso, o seu machismo desprezível e os seus apelos contra o socialismo e o comunismo não são resultado de loucura, mas bandeiras com as quais agrupar essa poeira social para combater um crescente movimento de massas anticapitalista que questiona os privilégios da classe dominante.

A sua recusa em reconhecer os resultados eleitorais, questionando os mecanismos da democracia burguesa estado-unidense, e a sua responsabilidade directa no assalto ao Capitólio a 6 de janeiro deste ano, não tiveram consequências jurídicas, mas as suas implicações políticas são de inquestionável magnitude16.

A segunda tentativa de impeachment, por incitamento à insurreição, terminou com a sua absolvição, graças ao sólido apoio de senadores e congressistas republicanos. Posteriormente, Trump deu novos passos para fortalecer o seu controlo do Partido Republicano, purgando aqueles sectores que aspiravam a retornar aos bons velhos tempos do republicanismo conservador moderado. A deriva dos republicanos para a extrema-direita continuará a aprofundar-se.

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A responsabilidade directa de Trump no assalto ao Capitólio a 6 de janeiro deste ano, não tiveram consequências jurídicas, mas as suas implicações políticas são de inquestionável magnitude.

Nos últimos meses, os estados controlados pelos republicanos têm promovido iniciativas legislativas contra os direitos das mulheres e das pessoas trans, das minorias ou contra as liberdades democráticas. O Texas e o Arkansas praticamente baniram o aborto em todos os casos, elevando-se para 19 os estados que vão propor novas restrições. Novas leis foram aprovadas na Geórgia, Texas, Arizona e Flórida para limitar o direito de voto da população afro-americana e outros sectores, ou para o próprio voto por correio. Em 5 estados, foram aprovados regulamentos estabelecendo limites na forma de ensino da história da escravatura, ou no Oklahoma para garantir imunidade a motoristas que matem ou firam manifestantes, desde que este alegue que estava a fugir de um motim17.

O trumpismo está a mostrar que tem uma importante base militante. Um bom exemplo disso foi o referendo revogatório para a destituição do governador democrata da Califórnia por se opor à pena de morte, por ser permissivo com os “sem abrigo” ou com os imigrantes, bem como pela gestão da pandemia. Para realizar o referendo era necessário recolher 1,5 milhão de assinaturas, o que fizeram sem problemas. Embora o governador tenha finalmente conseguido ficar com 63% dos votos, a campanha refletiu um importante nível de mobilização e organização por parte da base trumpista. Um sério aviso para o futuro.

Afirmar, como foi feito após a tentativa de golpe, que Trump está isolado e que as suas ações são estranhas à classe dominante e ao aparelho de Estado é ridículo. Os dados que foram tornados públicos após uma investigação parcial e relutante, vieram confirmar a participação ou simpatia de importantes chefias da polícia e do exército. Embora a classe dominante estado-unidense ainda não se tenha comprometido a impor uma ditadura, fundamentalmente por medo de desencadear uma situação revolucionária, esta simpatiza com Trump pela sua contundência contra a classe trabalhadora e a esquerda. O aparelho de Estado estado-unidense nunca teve a defesa da democracia inscrita no seu ADN. Se amanhã se sentirem ameaçados pela rebelião dos oprimidos, não hesitarão em jogar as suas tradições democráticas no caixote de lixo da história.

A extrema polarização que a sociedade estado-unidense vive e a ruptura abrupta do seu equilíbrio interno foram alimentadas por décadas de racismo institucional e brutalidade policial, cortes sociais e uma desigualdade dilacerante que arrastou dezenas de milhões de pessoas para a exclusão e para a pobreza. Ao mesmo tempo, uma minoria de oligarcas acumulou um património de milhões de dólares e são os donos absolutos do poder. É isto que está por trás da crise da democracia burguesa estado-unidense e das divisões existentes na burguesia. A crise da covid-19 ou a recente derrota no Afeganistão alimentam ainda mais estas tendências de fundo.

Apesar da propaganda contínua dos reformistas sobre os benefícios da administração Biden, o líder democrata é um verdadeiro representante de Wall Street. Os seus “planos de ajuda” seguem na esteira daqueles aprovados durante a covid-19 por Trump, inundando as multinacionais estado-unidenses com biliões. O mais importante deles, e que já foi aprovado por amplo consenso entre republicanos e democratas, é o da infraestrutura, que chega a 1,2 biliões de dólares. O objetivo é renovar as infraestruturas obsoletas para, entre outras coisas, poder competir com a China, que gasta três vezes mais do que os Estados Unidos nesta área.

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Apesar da propaganda contínua dos reformistas sobre os benefícios da administração Biden, o líder democrata é um verdadeiro representante de Wall Street.

A outra parte do plano, as áreas ditas sociais, estão em suspenso por causa da oposição dos republicanos e até de um sector dos democratas mais conservadores. Mas, além disso, o governo Biden já anunciou que não renovará os programas de assistência ao desemprego aprovados durante a pandemia: 7,5 milhões de estado-unidenses podem ficar sem essa cobertura vital. O número de desempregados registados em agosto era de 8,4 milhões, e outros 5,7 milhões estavam fora das contas oficiais, embora estejam à procura de trabalho, de acordo com o último relatório do Office of Labor Statistics.

Por sua vez, o Supremo Tribunal revogou a moratória sobre despejos por falta de pagamento das rendas, ameaçando cerca de 3,5 milhões de pessoas de serem despejadas de suas casas, de acordo com uma pesquisa do US Census Bureau do mês de agosto. Esta é a política progressista do paladino da nova esquerda reformista!

Para financiar estes planos, Biden propôs aumentar o imposto sobre as sociedades de 21% para 28%, algo que ainda está em negociação e que tem a rejeição dos republicanos. Este aumento estaria longe dos 35% que existiam antes da reforma tributária promovida por Trump e apoiada pelos democratas, que significou uma injeção direta de 205 mil milhões de dólares nos bolsos dos 20% mais ricos da população. Quanto a reverter os cortes de 2 biliões de dólares aprovados por Trump em programas sociais, nada acontece.

A lua de mel de Biden parece que chegará ao fim depressa. A promessa de vacinar 70% da população até o final do verão fracassou e a taxa estagnou em 52%. A variante Delta está, mais uma vez, a causar estragos, desacelerando a recuperação do emprego e da economia.

Nos Estados Unidos não existe uma situação abertamente revolucionária, mas há traços revolucionários na luta de classes que tem varrido o país há anos. A experiência deste período histórico resultou numa viragem à esquerda na consciência de amplos sectores da classe trabalhadora e da juventude. O movimento de massas anti-racista, que unificou os oprimidos em linhas de classe com um potencial anti-capitalista desafiador, é o resultado deste processo e foi a chave para derrotar Trump. Mas a reacção contra-revolucionária também mobilizou um poderoso exército, e sectores desprezáveis da burguesia estiveram envolvidos desde o início. Sem dúvida, os Estados Unidos são um dos principais candidatos a surtos revolucionários com profundas implicações à escala mundial.

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A experiência deste período histórico resultou numa viragem à esquerda na consciência de amplos sectores da classe trabalhadora e da juventude nos Estados Unidos.

A União Europeia: mais austeridade, mais luta de classes

No que diz respeito à União Europeia, a situação é ainda mais catastrófica. A sua agenda externa assenta sobre um grande fiasco coletivo: as fortes contradições económicas e políticas que golpeiam a sua unidade fictícia paralisam-na e esta é incapaz de desempenhar qualquer papel independente nos grandes negócios do mundo. A sua posição tradicional como aliado ferrenho dos Estados Unidos também lhe é prejudicial.

Se a Grande Recessão de 2008 e a crise do Euro em 2014 representaram uma viragem na história da UE, depois do Brexit e com a perspectiva de um novo e longo período de estagnação, as forças centrífugas que poderiam ser contidas com grande dificuldade ficarão mais incontroláveis a cada dia.

Estamos perante uma dinâmica que se aprofunda com o conflito entre Pequim e Washington. É o caso do gasoduto Nord Stream 2, que duplicará o fornecimento de gás russo à Alemanha. Esta nova infraestrutura foi classificada pelo presidente ucraniano, aliado estado-unidense na região, como uma “perigosa arma geopolítica”. Não é surpreendente que países como a Polónia compartilhem dessa opinião. Além de aumentar a dependência da Europa do combustível controlado por Putin, o parceiro mais poderoso da China, proporcionará ao capitalismo alemão uma nova ferramenta de coerção económica sobre os seus parceiros comunitários. Em resposta, Biden considera seriamente patrocinar a Ucrânia como um novo membro da NATO, o que constituiria uma provocação histórica contra a Rússia.

A formação de dois novos blocos cada vez mais hostis dentro da Europa no calor da batalha entre os EUA e a China está a cristalizar-se. Por um lado, temos o liderado pelo Reino Unido do Brexit, que pode ter vários aliados entre os países bálticos. E, do outro, o bloco liderado pela Alemanha e atualmente hegemónico.

As consequências da saída da Grã-Bretanha da UE não proporcionaram à classe dominante britânica os resultados esperados. A marcha de um milhão e meio de trabalhadores comunitários, a escassez que já surge em muitos sectores devido ao colapso das cadeias produtivas e de distribuição, a falta de dezenas de milhares de motoristas..., está a afetar duramente a economia da ilha: “A previsão de Johnson quando o Brexit terminou era de que o Reino Unido prosperaria como um novo jogador solitário no comércio internacional; a previsão de Johnson era sair da pandemia com uma economia forte e próspera. O que não podia imaginar era que as prateleiras dos supermercados ficariam desoladas e vazias por falta de camionistas (...) e que as indústrias agrícolas, pecuária ou de processamento de alimentos, não teriam mão-de-obra suficiente para recuperar”18.

De qualquer forma, longe de “corrigir” os desequilíbrios da crise anterior, a política da UE aumentou-os e gerou novos. A dívida conjunta da UE, que em 2008 era de 60,7% do PIB comunitário, aumentou para mais de 100% no início de 2021. Mas com a eclosão da pandemia, em vez de uma “resposta comum”, deparámo-nos com uma guerra até à morte entre os diferentes Estados membros.

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Longe de “corrigir” os desequilíbrios da crise anterior, a política da UE aumentou-os e gerou novos.

Primeiro a respeito do material sanitário, quando a Alemanha e a França proibiram a exportação de máscaras e outros dispositivos médicos para países gravemente afetados pela pandemia, como a Itália e o Estado espanhol. Posteriormente, com a ajuda desembolsada pelos diferentes governos em defesa do seu sector financeiro e das suas indústrias, correspondendo a mais de 50% do total dessa ajuda à Alemanha, seguida pela França e Itália com 17% e 14% respectivamente, e muito mais longe pelo Estado espanhol, com cerca de 5%.

Tal como na fase recessiva anterior, ouviu-se o canto de sereia sobre os benefícios da UE. A partir do Unidas Podemos insistiu-se na necessidade da solidariedade europeia. Pablo Iglesias, ainda no governo do Estado espanhol, felicitou-se pelo acordo alcançado a respeito dos fundos europeus, a ponto de ousar afirmar que estavam a ir “numa direção diametralmente oposta à que vimos na década passada”. Mas esta demagogia, conscientemente pensada para cegar a classe trabalhadora, não se reconcilia com a realidade. Estes fundos são destinados a “salvar” os capitalistas europeus, e a sua concessão, como na crise da dívida anterior, está condicionada à aprovação de novas medidas de austeridade fiscal e contra-reformas sociais.

Uma coisa é que a burguesia alemã e os seus aliados (Holanda, países nórdicos, etc.) estejam dispostos a contribuir pontualmente, a conceder crédito se houverem garantias, mas nunca aceitarão arcar com as dívidas dos países mais fracos da zona Euro. Qualquer concessão mínima no sentido de “mutualizar” a dívida, será sempre em troca do reforço do seu papel hegemónico na UE, mas nunca deixará de proteger as suas empresas na luta feroz por cada centímetro do mercado mundial. Neste sentido, a pandemia significou um maior colapso do bloco europeu em relação aos Estados Unidos, com países como a Itália ou a Grécia a virarem-se abertamente para a China.

Essa UE democrática e humanitária, que tanto fala de direitos humanos em relação ao Afeganistão e que é celebrada por social-democratas de todos os matizes, não perde o sono em fechar militarmente as suas fronteiras contra milhões de pessoas que fogem da fome e guerra; em criar campos de concentração em condições subumanas na Grécia; ou encher os bolsos de regimes ditatoriais como os da Turquia ou do Paquistão com milhares de milhões de euros para conter as ondas de refugiados resultantes dos conflitos imperialistas que promovem.

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Essa UE democrática e humanitária, que tanto fala de direitos humanos não perde o sono em fechar militarmente as suas fronteiras contra milhões de pessoas que fogem da fome e guerra.

Desde a crise de 2008, as tendências centrífugas na UE apenas aumentaram — o caso do Brexit é o seu maior expoente — alimentadas não apenas por tendências protecionistas e pelo nacionalismo económico, mas também por fatores económicos. A confiança das pessoas de que as suas vidas e futuro serão melhores na UE desmoronou. Por outro lado as burguesias de todos os países optaram por orientar o seu discurso para o nacionalismo chauvinista como um antídoto contra o protesto social.

É a classe dominante quem alimenta e legitima a reacção. A única coisa que a extrema-direita faz é defender abertamente tudo o que a “burguesia democrática” e os dirigentes da social-democracia dizem à boca pequena. O avanço da extrema-direita em toda a Europa e o crescimento das tendências autoritárias e bonapartistas em numerosos Estados é resultado da visão que essa opinião pública progressista tem sobre o capitalismo europeu.

Assim que a propaganda se dissipe e entrem em ação os novos planos de austeridade, a crise da UE entrará numa nova fase. Na última década a Europa viveu grandes movimentos grevistas e de protesto, crises revolucionárias — como na Grécia, resolvida com uma dura derrota política às mãos do Syriza —, lutas de trabalhadores como na França, que paralisaram o país durante meses, manifestações de massas de jovens contra as alterações climáticas e mobilizações históricas de mulheres trabalhadoras. Vimos o surgimento de novos partidos de esquerda reformista que fracassaram na sua tentativa de reformar o capitalismo. No próximo período, essa luta dará um salto entre a classe trabalhadora e a juventude e, com base na experiência de mais de uma década de lutas, oferecerá grandes oportunidades às forças do marxismo. 

Desigualdade e luta de classes

Nas últimas duas décadas dispararam as desigualdades e a polarização política. Enquanto milhões são atirados para a pobreza e no desemprego, vivendo de salários de pobreza numa situação de precariedade crónica, uma pequena minoria de plutocratas aumenta as suas fortunas como nunca antes na história. Nunca antes tanta riqueza foi produzida e nunca foi concentrada em tão poucas mãos.

De acordo com a revista Forbes19, durante a pandemia, os multimilionários aumentaram os seus rendimentos em 5,5 biliões de dólares, um aumento de 68%: a sua fortuna passou de 8 biliões de dólares para 13,5 (em 2006 era de 2,56 biliões). Já antes da pandemia, um relatório da Oxfam indicava que os 1% mais ricos detinham o dobro da riqueza de 6,9 mil milhões de pessoas. Enquanto isto estudos do Banco Mundial indicam que em 2020 a pobreza extrema afetou 723,9 milhões de pessoas e, em 2021, chegará a 751,5 milhões20.

Os discursos dos líderes mundiais na cúpula do G7 — tão aplaudidos pelos líderes do Unidas Podemos ou do Syriza — sobre o aumento de impostos aos ricos e o fim dos paraísos fiscais não passam de frases ocas. O mesmo aconteceu durante a crise económica anterior, quando os líderes do G20 afirmaram que iam “refundar o capitalismo sobre bases éticas”.

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Os discursos dos líderes mundiais na cúpula do G7 — tão aplaudidos pelos líderes do Unidas Podemos ou do Syriza — não passam de frases ocas.

Os acordos adoptados pelo G7 e pelo G20 são uma verdadeira fraude, como já explicámos21. O próprio Biden foi senador por mais de 30 anos pelo Estado do Delaware, um paraíso fiscal no coração dos Estados Unidos, com mais empresas do que habitantes. Na Europa, países como a Holanda22, a Irlanda ou o Luxemburgo atuam como paraísos fiscais ao ponto da Comissão Europeia planear estabelecer um tribunal para proteger os lucros de grandes fundos de investimento e multinacionais23. O acordo alcançado pelo G7 tinha ainda um objetivo claro para os EUA: evitar o chamado “imposto digital” contra as grandes empresas de tecnologia estado-unidenses (Facebook, Google, Microsoft, etc.). Esta parte cumpriu-se rapidamente24.

A legislação fiscal e laboral sofreu quatro décadas de contra-reformas radicais em benefício do capital. Esta contra-revolução social e económica foi apontada pela política de colaboração de classes da social-democracia e dos sindicatos.

Uma das bases em que assenta esta contra-revolução é a extorsão da força de trabalho. A precariedade generalizada e os baixos salários têm dado origem nos países desenvolvidos à proliferação da figura do trabalhador que, apesar de ter um ou dois empregos, permanece no limiar da pobreza ou na pobreza. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), um organismo oficial do capitalismo, no início de 2020 mais de 700 milhões de trabalhadores no mundo ganhavam menos de 3,2 euros por dia, e destes 265 milhões menos de 1,90 euros. 2.000 milhões tinham empregos informais e 55% não tinham qualquer tipo de cobertura social. Nos meses da pandemia, estima-se que outros 108 milhões de trabalhadores cairão na pobreza ou na pobreza extrema25.

As guerras imperialistas, a depredação ambiental, o crime organizado e a pobreza estrutural posicionaram as migrações em massa e o deslocamento de refugiados como uma das formas mais cruéis de opressão nesta época de decadência capitalista.

Na Colômbia, o número de pessoas deslocadas pela violência chegou aos quatro milhões em 2013. Em 2019, a Índia e o México eram os dois países com mais migrantes expulsos dos seus territórios, 17,5 milhões e 11,8 milhões, respectivamente. No caso do Médio Oriente, as guerras no Afeganistão, Iraque e Síria causaram o êxodo de mais de 6 milhões de refugiados nos últimos cinco anos, amontoados em condições subumanas em campos de internamento.

A opressão imperialista é combinada com uma sistemática política racista por parte das grandes potências. O caso da legislação xenófoba da UE e do fecho de fronteiras que tem causado uma matança humana no Mediterrâneo, é um exemplo cruel da regressão à barbárie que estamos a viver. O mesmo pode ser dito a respeito das políticas dos governos norte-americanos. Seja com Trump ou Biden, a classe dominante dos EUA endureceu a repressão e as deportações contra a população migrante com todo o tipo de medidas legais e policiais.

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Seja com Trump ou Biden, a classe dominante dos EUA endureceu a repressão e as deportações contra a população migrante com todo o tipo de medidas legais e policiais.

Os governos, sem exceção, responderam com uma política de imigração desumana e repressiva e com absoluto desprezo pelos direitos e pela vida dos deslocados. Os governos que se declaram “progressistas” e “defensores dos direitos humanos”, como o de AMLO ou do PSOE-UP no México e no Estado espanhol, para citar dois exemplos, também não se diferenciam dos da direita populista e mais reacionária. Além do mais, não têm escrúpulos em atuar como guardas fronteiriços de confiança para as grandes potências imperialistas.

O verdadeiro programa da esquerda reformista neste terreno abre alas à extrema-direita em todo o mundo. Perante este cenário, que só irá piorar nos próximos anos, os marxistas revolucionários devem erguer uma alternativa de classe e internacionalista, lutando na linha de frente para garantir todos os direitos sociais, económicos, políticos e culturais dos nossos irmãos e irmãs imigrantes, opondo-se a políticas racistas de fronteiras fechadas, a todas as medidas xenófobas que utilizam o sofrimento dos refugiados e trabalhadores imigrantes para espalhar preconceitos chauvinistas entre a classe trabalhadora. A luta contra o racismo, a xenofobia, a repressão e a violência imperialista é uma parte indissociável da luta pelo socialismo.

É mil vezes falso que a saída desta crise seja diferente da de 2008. Trata-se de um aprofundamento do que já vimos: mobilização massiva de recursos públicos para apoiar bancos e monopólios, e novas contra-reformas sociais. Até o Governo do Estado espanhol, que se define como sendo o “mais progressista da história”, está a proceder a novos cortes nas pensões, saúde, educação e benefícios sociais, enquanto o preço da luz, habitação e alimentação cresce vertiginosamente.

O que a classe dominante concluiu é que conta com uma margem de manobra clara graças à política de unidade nacional. Uma frente unida entre a burguesia e as formações social-democratas e os sindicatos, e o fracasso da nova esquerda reformista em levantar oposição massiva à estratégia dos capitalistas, explica o que aconteceu. 

Os capitalistas estão dispostos a ir tão longe quanto a situação o permitir. Um bom exemplo é a recente aprovação pelo Governo grego da jornada de trabalho de 10 horas. Todos os passos da burguesia nos Estados Unidos, Europa, América Latina ou Ásia vão nesta direção. 

III. A construção do partido revolucionário 

A reacção das massas à nova ofensiva da burguesia contrasta agudamente com o papel jogado pelas suas direcções tradicionais. É realmente surpreendente que apesar da enorme pressão imposta pela catástrofe sanitária da pandemia e os seus efeitos imediatos na economia com a perda de milhões de empregos e o crescimento da miséria, apesar de todas estas dificuldades subjectivas e objetivas, durante este ano e meio de morte e desolação, testemunhámos mobilizações massivas e insurreições revolucionárias em muitos países. 

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A reacção das massas à nova ofensiva da burguesia contrasta agudamente com o papel jogado pelas suas direcções tradicionais.

A constante em todos estes movimentos tem sido o seu carácter explosivo e o facto de terem nascido desde a base, transbordando inicialmente as direcções reformistas. A ação direta e os confrontos abertos com as forças repressivas têm sido a norma, mas quando a violência policial e militar não conseguiu paralisar a mobilização, a burguesia recorreu aos serviços da burocracia sindical e da esquerda reformista, que se esforçaram incansavelmente para desviar a luta para a fraude do parlamentarismo em todas as suas versões (“Assembleias Constituintes”, “Acordos Nacionais”, etc.).

O sentimento anticapitalista continuou a espalhar-se ao longo da última década e, apesar da polarização e decomposição capitalista também encorajarem o avanço da extrema-direita, o processo molecular de tomada de consciência dará novos saltos. A crise das organizações à esquerda da social-democracia cria as condições para que as conclusões mais avançadas se espalhem entre amplos sectores da juventude e dos trabalhadores.

Certamente não será um processo automático, nem isento de contradições e retrocessos temporários. Especialmente em países onde estas organizações tiveram um grande peso e fracassaram, a confusão, o desânimo e também o ceticismo dominarão uma ampla camada de ativistas. Mas será um fenómeno conjuntural, não a longo prazo.

Como noutros períodos históricos de revolução e contra-revolução, o avanço da extrema-direita — o partido do "desespero contra-revolucionário", nas palavras de Trotsky — tornou-se visível. Nos últimos anos, esta direita populista, racista, supremacista, homofóbica e sexista tornou-se uma ameaça real, desde Trump nos Estados Unidos a Bolsonaro no Brasil, passando por Le Pen na França, Salvini na Itália ou Vox no Estado espanhol.

Este processo não se vai conter com nenhuma espécie de “cinturão sanitário” parlamentar, já que se nutre da decomposição do capitalismo. O combate contra a extrema-direita evidencia a necessidade de defender uma verdadeira política revolucionária. As novas formações de esquerda repetiram mais uma vez as receitas da social-democracia clássica e do stalinismo que, entre outras coisas, permitiram a vitória “democrática” de Hitler. Os apelos abstratos em defesa da democracia e, sobretudo, os apelos ao aparelho de Estado para a defesa dos nossos direitos democráticos não surtem qualquer efeito no combate a estas formações, que contam também com significativo apoio e simpatia entre o poder judicial, a polícia e o exército.

Como assinalámos na secção sobre os Estados Unidos, o fenómeno do populismo reacionário de extrema-direita afeta plenamente os partidos conservadores tradicionais. Vemos no seio da direita tradicional uma viragem às claras em direcção a uma linguagem fascizante, em competição aberta com as formações de extrema-direita em ascenção.

A questão que se coloca diante do movimento operário como um todo, e especialmente da sua vanguarda mais consciente, é como enfrentar a ameaça da reacção. Como evitar o assalto de Marine Le Pen à presidência francesa, ou a possibilidade de um Governo do PP e Vox no Estado espanhol. E a resposta é clara: levantando um programa revolucionário apoiado na mobilização massiva e consciente dos trabalhadores e da juventude.

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A questão que se coloca diante do movimento operário como um todo, e especialmente da sua vanguarda mais consciente, é como enfrentar a ameaça da reacção.

A política da social-democracia e das novas formações à sua esquerda é impotente para derrotar a reacção. Surgida no calor da grande recessão de 2008 e do movimento de massas que se desencadeou em muitos países, esta “nova esquerda” está mergulhada numa desorientação completa que apresenta todos os elementos de uma decomposição decadente. Apenas aspira a permanecer como uma máquina eleitoral que lhe permita sobreviver enquanto seu aparelho integrado e assimilado.

A renúncia a uma política ancorada no marxismo revolucionário, na independência de classe, no internacionalismo, passou uma fatura brutal a estas organizações que, depois de despertar grandes ​​ilusões e expectativas, se tornaram numa cópia da social-democracia tradicional. É o preço a pagar pelo carácter pequeno-burguês do seu programa, da sua direção e dos seus métodos antidemocráticos de construção das suas estruturas.

Todas estas organizações se fundiram com a burocracia sindical e renunciaram, nas ações e nas ideias, a travar uma batalha dentro do movimento operário organizado para acabar com a estratégia de pacto social e colaboração de classes com os grandes aparatos sindicais. Consequentemente, perdeu-se uma grande oportunidade para promover fortes correntes de esquerda nos sindicatos, que continuam, numa situação tão crítica como a atual, a atuar como um baluarte da burguesia para impor a sua agenda de cortes e austeridade. 

O caso do Podemos26, que analisámos em detalhe, é o mais significativo, mas o processo é muito mais geral e as suas raízes profundas. Aconteceu na Grécia após a capitulação do Syriza, aconteceu nos EUA após a capitulação de Bernie Sanders e a sua integração no governo de Joe Biden, repetiu-se com o abandono de Jeremy Corbyn após a sua derrota eleitoral, e os exemplos multiplicam-se em formações semelhantes na Alemanha, Portugal, França...

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Depois de despertar ilusões e expectativas formidáveis, as organizações da "nova esquerda" converteram-se numa cópia barata da social-democracia tradicional.

A tarefa histórica de restabelecer o programa do marxismo revolucionário como guia para a ação dos oprimidos enfrenta obstáculos muito importantes. Não o admitir seria uma estupidez. Mas seria ainda uma maior estupidez não ver a dinâmica geral da luta de classes e a direção que estão a tomar os acontecimentos mundiais.

Se olharmos para o que aconteceu nos últimos dois anos e meio, o número de movimentos insurrecionais, greves gerais, mobilizações de massas e crises revolucionárias é impressionante. Na América Latina não houve tréguas. Colômbia, Chile, Equador, Bolívia, Guatemala, Haiti, Porto Rico, Uruguai, Argentina, Honduras... Na Ásia, vimos uma situação totalmente sem precedentes. A eclosão da luta de classes atingiu países que antes eram um exemplo de estabilidade, com recordes de crescimento económico invejáveis: Tailândia, Myanmar, Indonésia, Índia... O crescimento de um novo proletariado industrial, a partir das entranhas do campesinato, tornou-se presente de forma clara, assim como o avanço da sua consciência de classe. 

Podemos dizer o mesmo sobre o Médio Oriente ou o continente africano. Na Tunísia, Argélia, Líbano, as massas voltam uma e outra vez à ação, revivendo os dias memoráveis ​​da Primavera Árabe e deixando claro que não há saída sob o capitalismo. 

A revolução no Sudão, abortada pela capitulação da direção reformista do movimento de massas ante a junta militar (apoiada pela Arábia Saudita, Rússia e China)27, ou a luta revolucionária da juventude contra a repressão e os cortes sociais do governo de Muhammadu Buhari28 mostram o barril de pólvora em que assenta um continente devastado pela ganância imperialista e que agora sofre os efeitos brutais da pandemia29.

O que aconteceu no final de julho na África do Sul, o país chave, é muito relevante. As principais cidades do país mergulharam numa semana de caos e pilhagens após a prisão do ex-presidente Jacob Zuma. De acordo com dados oficiais, 324 pessoas morreram nos tumultos e milhares de negócios foram saqueados e queimados. Mas toda esta fúria destrutiva tem causas sociais específicas: uma desigualdade que não parou de crescer sob as políticas capitalistas dos governos do ANC, apoiados pelo Partido Comunista e pela COSATU, e que levou a uma taxa de desemprego juvenil de 75%.

As forças da contra-revolução atuaram com enorme energia diante de todos estes desafios, mas não alcançaram uma vitória decisiva. Podemos esperar o aprofundamento desta dinâmica política a curto e médio prazo. Mais polarização e luta de classes mais explosiva. Não há dúvida de que se houvesse uma internacional revolucionária com influência de massas em qualquer um destes países, a situação teria sido muito diferente. É por isso que o fator subjectivo se torna o mais decisivo de todos. A construção da direção revolucionária, dos quadros que nos permitem exercer essa influência, é a tarefa crucial.

Os relatórios mais sérios do capital alertam para a mesma perspectiva para a qual nós, marxistas, nos preparamos e encorajam os governos a agir. Num artigo do jornal El País, intitulado "A raiva ameaça a recuperação económica"30, foi feita uma análise detalhada das convulsões que estão a abalar o mundo e do que está por vir. É citado um relatório do Institute for Economics & Peace, um think tank com sede em Sydney (Austrália), que constata que as manifestações de massas, motins e levantamentos aumentaram 251% na última década. Somente neste ano e meio de pandemia houve, segundo os seus próprios números, 5.000 confrontos em 158 países.

“Esta situação não pode continuar por muito tempo sem que se produzam enormes tensões sociais e distúrbios civis. Na verdade, a tempestade perfeita que começamos a sentir em breve incluirá muito mais instabilidade social e política. Em vez de promover uma agenda progressista e transformadora, isto poderia levar a conflitos étnicos e raciais e outras formas de violência e caos”. Estas são as palavras de Jayati Ghosh, economista e professor da Amherst University, em Massachusetts (Estados Unidos), citadas no referido artigo. 

A questão, no entanto, é quem vai impulsionar a agenda progressista e transformadora. A mesma social-democracia e os sindicatos que são baluartes da unidade nacional? A nova esquerda reformista que capitulou?

A construção das forças do marxismo, do nosso embrião da Internacional, está sujeita a pressões de todos os tipos. Mas neste ano e meio deixamos claro que estamos preparados para resistir a elas com perseverança. Primeiro, entendendo o processo objectivo do capitalismo em decadência e fornecendo clareza teórica aos fenómenos complexos que se estão a desenvolver. Em segundo lugar, orientando-nos energicamente ao movimento de massas, tendo sempre sentido de proporção, defendendo um programa classista, internacionalista e revolucionário, sem sectarismo e baseado na política da frente única.

A arte da construção do partido consiste em abordar um movimento vivo, imperfeito e cheio de contradições, através de um programa, com palavras de ordem e táticas corretas. E isto é impossível de conseguir com uma posição puramente propagandística. A teoria deve vir acompanhada de uma prática concreta, que forneça os elementos necessários para modificá-la, corrigi-la e adaptá-la ao ritmo da luta de classes. Seja no movimento operário, entre os jovens, na luta feminista ou na questão nacional, pudemos observar que este método funciona e é o que precisamos para avançar.

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A arte da construção do partido consiste em abordar um movimento vivo, imperfeito e cheio de contradições, através de um programa, com palavras de ordem e táticas corretas.

Construímos um partido revolucionário justamente no momento em que colapsam as experiências do novo reformismo de esquerda. É inevitável que estejamos sobre pressões contraditórias. O ambiente para explicar as ideias do marxismo é muito mais claro, a crise do capitalismo é tão violenta que ideias como a nacionalização de sectores estratégicos da economia são muito mais aceitáveis e assumidos. Tal como a nossa posição sobre a natureza de classe do Estado é muito mais facilmente compreensível. 

Mas as ilusões frustradas também causam confusão entre milhares de ativistas sobre o que realmente é o marxismo, e o sentimento de rejeição dos “partidos e sindicatos”, consequência das suas constantes traições, amplifica os preconceitos da pequena-burguesia. 

A importância da educação política dos militantes e da formação dos quadros e da direção é decisiva nesta fase. Se conseguirmos consolidar, como estamos a fazer, uma base sólida de trabalhadores e jovens, e mantivermos as nossas posições no movimento de massas, nos próximos anos poderemos ter um crescimento explosivo. No entanto, impõe-se a qualidade sobre a quantidade na tarefa de crescimento. 

A intervenção enérgica no movimento das mulheres trabalhadoras e entre os jovens é uma das chaves fundamentais neste período. Trotsky assinalou-o numa conjuntura histórica igualmente importante n’O Programa de Transição:

“A Quarta Internacional dedica especial atenção à jovem geração proletária. Toda a sua política visa fazer com que os jovens confiem nas suas próprias forças e no futuro. Só o entusiasmo e o espírito ofensivo da juventude podem garantir os primeiros êxitos no combate; e somente estes sucessos podem voltar a atrair os melhores elementos da geração madura ao caminho da revolução. Sempre assim foi e assim será.

Pela sua própria natureza, as organizações oportunistas concentram a sua atenção nas camadas superiores da classe trabalhadora, ignorando a juventude e as mulheres trabalhadoras, quando justamente a degeneração do capitalismo desfere os seus golpes mais pesados ​​sobre as mulheres (...). As secções da Quarta Internacional devem buscar apoio entre os sectores mais explorados da classe trabalhadora e, portanto, entre as mulheres trabalhadoras. Nelas encontraremos reservas inesgotáveis ​​de dedicação, entusiasmo e capacidade de sacrifício.

Abaixo a burocracia e o carreirismo! Abram caminho para os jovens! Abram caminho para a mulher trabalhadora! Estas palavras de ordem estão gravadas na bandeira da Quarta Internacional”31.

O partido é a memória da classe trabalhadora. Ao assimilar as ideias, métodos e tradições das gerações revolucionárias anteriores, rejeitando o sectarismo, o ultra-esquerdismo e os perigos da adaptação oportunista, e redobrando a nossa determinação em superar as dificuldades, avançaremos até cumprirmos o nosso objetivo. “Uma direcção não se consegue educar num sentido plenamente revolucionário sem compreender o carácter da nossa época, a sua mobilidade repentina e as suas alterações abruptas. Dirigir é prever!”32

 

1. Para aprofundar esta seção podem ser consultadas as declarações e artigos publicados pela International:

 · Afeganistão: Fiasco imperialista num país devastado pelas potências "democráticas"

 · A opressão da mulher afegã e a hipocrisia imperialista

 · Afeganistão: O imperialismo estado-unidense foi derrotado de forma humilhante, os talibãs voltam ao poder

2.  Chaves para entender o grande jogo do Médio Oriente

 · Una oleada de huelgas recorre Irán

 · Oriente Medio. Pugna interimperialista y lucha de clases

3.  Pakistán, la joya de la corona de la Nueva Ruta de la Seda china

4.  · Levantamento social no Myanmar contra o golpe militar

 · A junta militar no Myanmar recorre à repressão selvagem, mas a resistência popular continua

5.  · Argélia: um novo processo revolucionário

 · Argélia: O boicote eleitoral e o ressurgimento da mobilização popular derrotam os planos do regime

6.  · Iraque: o levantamento das massas continua!

 · Líbano en llamas. El pueblo toma las calles

 · Revolução no Líbano. Pela federação socialista do Médio Oriente

7.  Israel bombardea Gaza y las masas se levantan contra la ocupación. ¡Abajo el Estado capitalista sionista!

 · Israel desencadeia uma nova matança em Gaza com a cumplicidade do imperialismo ocidental

 · Israel lança uma ofensiva militar selvática contra o povo palestiniano

8.  Chile: viragem à esquerda nas eleições para a Constituinte

 · La revolución chilena, la asamblea constituyente y la lucha por el socialismo

 · Colômbia: Levantamento da juventude contra a violência policial e a crise capitalista

 · Colômbia: O levantamento de massas obriga o ultra-direitista Duque a retroceder. Agora é continuar a luta até derrubar este assassino!

9.  Peru: Castillo toma posse como presidente. Fracassam as manobras golpistas, mas a sabotagem dos capitalistas continuará

 · Peru: as massas dão a vitória a Castillo

10.   La última crisis del Gobierno de Castillo la hemos analizado aquí

11.  Brasil: Crise do bolsonarismo, o regresso de Lula e mobilizações de massas

12.  Elecciones 2021 en México. El giro a la izquierda de las masas continúa, pero las concesiones a la derecha se cobran en la capital

 · Bolívia: vitória esmagadora do MAS

13.  Venezuela: as novas medidas do governo significam mais lucros para os capitalistas e mais sofrimento para os trabalhadores e o povo

 · Venezuela: Reconstruir o movimento sindical com um programa revolucionário

14.  Cuba no olho do furacão: defender as conquistas revolucionárias contra o bloqueio imperialista e a agenda pró-capitalista!

 · Perspetivas para Cuba. Debate sobre o socialismo e a desigualdade

15.  Trump derrotado em eleições históricas! A luta de massas conseguiu esta vitória apesar de Biden e do aparelho democrata

16. Para uma análise mais detalhada do trumpismo, dos seus pontos em comum com o fascismo e a natureza do golpe de 6 de janeiro, consulta as seguintes declarações da Internacional:

 · Os EUA no olho do furacão: trumpismo, luta de clases e decadência imperialista

 · Tentativa de golpe de Estado nos EUA. A classe operária tem a força necessária para varrer Trump e a sua escória fascista!

17.  Ofensiva conservadora en los feudos republicanos de EEUU

18.  El ‘cisne negro’ que se alió con el Brexit: los precios del gas agravan el desabastecimiento en el Reino Unido

19.  Jeff Bezos, Elon Musk, Bill Gates y otros multimillonarios han incrementado su riqueza durante la pandemia, según un informe sobre desigualdad

20.  Últimas estimaciones del impacto de la COVID-19 en la pobreza mundial

21.  Biden y el G7 venden la ‘refundación’ del capitalismo, y la izquierda reformista compra sus mentiras

22. A Holanda é o destino número um para a transferência de lucros das empresas, no valor de 134.000 milhões de euros (140.896 milhões de dólares), o que representa mais de 10% do PIB do país.

23.  La Comisión Europea prepara un tribunal para blindar los privilegios de los inversores

24. A taxa média de imposto sobre as sociedades na OCDE não pára de cair há décadas, de 45% em 1980 para 23,3% hoje. Portanto, é verdadeiramente ridículo que a grande conquista deste acordo pela justiça tributária seja a imposição de um imposto sobre as sociedades em todo o mundo… de 15%! Dos 36 países que compõem a OCDE, apenas 3 apresentam taxas de impostos abaixo de 15% (Irlanda, 12,5%; Hungria, 9% e Suíça, 8,5%). Bilionários e multinacionais contam com um amplo arcabouço financeiro e jurídico que lhes permite, em alguns casos, evadir até 100% dos seus impostos. A recente fuga de dados fiscais de vários magnatas estado-unidenses mostrou a que ponto se chegou. Os 25 americanos mais ricos do mundo, segundo a Forbes, aumentaram a sua riqueza entre 2014 e 2018 em 401.000 milhões de dólares, mas pagaram apenas 13.600 milhões de dólares, 3,4%. Warren Buffet pagou 0,10% em impostos, Jeff Bezos 0,98%, e Michael Bloomberg 1,10%.

25. O relatório da OIT conclui que se 255 milhões de empregos fulltime fossem destruídos em 2020, em 2021 a fuga seria de outros 100 milhões e em 2022 outros 26 milhões.

26.  Hace falta un nuevo comienzo

27.  Revolución y contrarrevolución en Sudán

28.  Nigéria: o povo levanta-se contra o governo de Buhari

29.  África: a pandemia ameaça milhões de vidas e abre um período de tremendas batalhas na luta de classes

30.  La ira amenaza la recuperación económica

31. Programa de transição, Leon Trotsky, edição Fundación Federico Engels, p. 72.

32.  A Internacional Comunista depois de Lenin, Leon Trotsky

JORNAL DA ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA

JORNAL DA LIVRES E COMBATIVAS

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