Se um indivíduo produz a outro um dano físico em que o golpe lhe causa a morte, chamamos a isto de homicídio. Se o autor souber, de antemão, que o dano vai ser mortal, apelidamos a sua ação de homicídio premeditado. Se a classe dominante reduz centenas de proletários a um estado tal que, necessariamente, caem vítimas de uma morte prematura e antinatural (...) então é responsável por milhares de vidas em tais condições, o que constitui juntamente homicídio premeditado, como a ação de um indivíduo, tratando-se no entanto de um homicídio mais oculto, mais maquiavélico, um homicídio contra o qual ninguém pode defender-se.
A situação da classe trabalhadora em Inglaterra, F. Engels
2020 foi o ano em que vimos colapsar a capital mundial do sistema capitalista. O coronavírus avançava sem freio nas ruas de Nova York e de todos os EUA, perante as negligências e o negacionismo do presidente Trump e a completa passividade dos democratas. A pandemia provocou mais de meio milhão de mortes na principal potência capitalista, sobrelotando hospitais e morgues. Para completar este quadro macabro, o desemprego disparou deixando milhões de pessoas sem rendimentos e com a única opção de sobreviver à custa de ajudas estatais1.
Não é difícil imaginar como esta hecatombe afetou a saúde mental dos mais vulneráveis. A ansiedade, o stress pós-traumático e as depressões espalharam-se como pólvora. Esta realidade insuportável fez com que os setores mais precarizados procurassem um refúgio para escapar deste sofrimento quotidiano: o consumo de heroína e de outros opióides com virulência.
2020 será lembrado também por ser o ano com o maior número de mortes por overdose na história dos Estados Unidos. Quase 100.000 em apenas 12 meses2, 30% a mais do que no ano anterior. Diariamente, 136 pessoas morreram devido ao consumo de opioides, a maioria fornecidos via receita médica.
Enquanto este inferno se estendia entre a nossa classe, os principais grupos farmacêuticos aumentaram os seus lucros exponencialmente. Os lucros da Johnson & Johnson, Pfizer ou Merck dispararam 50% somente em 20203. Mais uma vez a burguesia enche os bolsos à custa do nosso sofrimento.
Um dos maiores massacres da História
Estes números dramáticos são o último capítulo de uma crise que assola os EUA há muito tempo. Os opioides ceifaram a vida de meio milhão de pessoas nas últimas quatro décadas4, o equivalente a um “11 de setembro” a cada três semanas e um número maior de vítimas norte-americanas do que em toda a Guerra do Vietname.
A overdose converteu-se na principal causa de morte não natural para os menores de 50 anos. A cada 25 minutos nasce um bebé com síndrome de abstinência devido ao consumo de opioides durante a gestação. Mas isto é apenas a ponta do iceberg: o Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla original) calcula que 27 milhões de pessoas consomem este tipo de drogas.
Conforme alertam os especialistas e as autoridades sanitárias independentes, a causa fundamental desta epidemia tem sido a estratégia adotada pela indústria farmacêutica de colocar no mercado analgésicos fabricados à base de opioides sintéticos altamente viciantes como o OxyContin ou o fentanilo. Este último é 50 vezes mais viciante do que a heroína5.
Com um sistema de saúde completamente privatizado, gerido em função dos interesses lucrativos das companhias de seguros médicos, as grandes corporações farmacêuticas encontraram a via livre para obter lucros multimilionários com a venda destes analgésicos, que viram a sua prescrição médica quadruplicar nos últimos anos para casos tão comuns como uma simples dor de cabeça ou de dentes6.
E é assim que as empresas farmacêuticas criaram uma bolsa de viciados com um perfil muito específico: trabalhadores precários que precisam destas drogas psicotrópicas altamente viciantes para suportar o seu dia-a-dia. Quando ficam viciados, perdem o emprego e o seguro de saúde. A partir daí, a única alternativa para conseguir a dose encontra-se no mercado negro, onde o preço é exorbitante. A grande maioria só precisa de recorrer a um substituto mais barato, como o alcatrão de heroína7.
Uma matança desta envergadura era impensável sem a conveniência do Governo e das autoridades sanitárias. Há exemplos eloquentes a este respeito, como o caso de uma vila de 400 habitantes na Virgínia Ocidental onde se expede uma receita de opioide por minuto8. Na sua grande maioria não são para consumo próprio, mas são fornecidas diretamente ao mercado clandestino sem qualquer tipo de disfarce.
É quase impossível identificar a linha que separa as farmacêuticas dos cartéis da droga. São parte da mesma estrutura económica onde cada um desempenha a sua função. Segundo o National Institute on Drug Abuse, 80% dos consumidores atuais de heroína abusaram dos opioides receitados e fabricados por grupos farmacêuticos de renomes.
Não existe liberdade numa sociedade dividida em classes
Ainda que o uso de drogas atravesse toda a sociedade estado-unidense, é na classe trabalhadora e dentro dela entre os setores mais atingidos pela crise capitalista, onde se concentra a maior taxa de vício — 73% entre jovens e mulheres com rendas inferiores a 25.000 dólares anuais — sobre os quais recaem as consequências mais devastadoras.
Não é por acaso que o cenário para esta nova epidemia de dependência de drogas se encontra nas zonas mais atingidas pela desindustrialização, onde mais caiu o emprego e a esperança de vida. São as antigas regiões de minas de carvão como Kentucky, Virgínia Ocidental e Tennessee, junto aos chamados estados do Rust Belt como Michigan, Ohio, Indiana e Pensilvânia.
Em lugares como Baltimore ou São Francisco o retrocesso social chegou a níveis inverosímeis: adolescentes dos bairros mais empobrecidos enfrentam condições de saúde e opções de vida piores do que a sua geração nas zonas urbanas da Nigéria, Índia ou Uganda9.
Agora, republicanos e democratas, precisamente os que aplicaram as políticas que estão a gerar esta destruição social, levam as mãos à cabeça ao comprovar as suas consequências. Renunciam à sua responsabilidade, à sua cumplicidade absoluta durante décadas com o grande negócio dos opioides e apontam os toxicodependentes como causadores individuais desta enorme crise.
Estes argumentos são completamente inaceitáveis, mas é preciso entendê-los como uma parte fundamental da ideologia capitalista. Para a classe dominante e os seus lacaios, somos nós que individualmente escolhemos a vida e os problemas que sofremos. Os viciados decidem consumir, as prostitutas vender o seu corpo, os jogadores arruinarem-se e os trabalhadores ser explorados em condições sub-humanas.
Esta posição mesquinha oculta a questão de classe. Não se pode ser livre numa sociedade onde existem opressores e oprimidos. As farmacêuticas, os proxenetas, a patronal do jogo e qualquer outra indústria requerem a existência de milhões de seres humanos desesperados com os quais fazer negócio.
Por isso é um disparate falar de “liberdade individual” neste sistema. As nossas decisões estão totalmente determinadas pelas nossas condições de vida. A pobreza, o medo de perder o emprego e de não chegar ao fim do mês são os mecanismos do capitalismo para cercear a nossa liberdade, empurrando-nos a tomar caminhos que numa sociedade realmente livre e igualitária jamais teríamos aceitado. Somente os que vivem numa situação privilegiada, à margem da exploração e da necessidade, podem defender um discurso tão nauseabundo.
A esquerda reformista, e alguns grupos que se declaram revolucionários e marxistas mas atuam como comparsas, não se cansam de reproduzir este enfoque: “as drogas são algo pessoal, faz parte da liberdade individual.”, sem entender que é precisamente o contrário. Os vícios não apenas geram um negócio formidável para os capitalistas, como são uma forma de controlo social fundamental para bloquear a luta de classes.
Obviamente perseguir o pequeno consumidor e criminalizá-lo faz parte da estratégia da burguesia. Com uma mão cria o mercado para consumo de opioides, com a outra culpa os toxicodependentes e prende os pequenos traficantes. Enquanto os grandes narcotraficantes se aproximam dos banqueiros e empresários farmacêuticos sem que nada nem ninguém os incomode.
E todos defendem com o mesmo entusiasmo a legalização da indústria da droga como solução para acabar com os cartéis, e como a melhor maneira de cuidar e proteger os toxicodependentes. Era só o que faltava! Como se converter os narcotraficantes em "empresários honrados” significasse mais recursos para a saúde pública, melhores empregos e salários para a juventude e menos repressão. Basta observar o que ocorreu nos EUA para entender que esta abordagem é uma fraude completa.
A guerra contra as drogas ou a desculpa perfeita para o aumento da repressão
Não aceitar a legalização das drogas não significa, nem muito menos, que defendamos a repressão contra o consumidor e o pequeno produtor. Os revolucionários rechaçam nitidamente qualquer postura moralista e reacionária dos Estados perante os problemas sociais.
Isto é parte da mensagem racista e classista da classe dominante. Utilizam-na como desculpa para criar autênticos Estados policiais nos bairros marginalizados e para criminalizar e atacar a juventude e os setores mais combativos da sociedade.
Os EUA são o melhor exemplo de como a chamada “guerra contra as drogas” se transformou numa perseguição selvagem e assédio contra os mais oprimidos, especialmente a população afroamericana mais pobre, que tem sido parte essencial dos movimentos revolucionários mais poderosos como os Panteras Negras ou o Black Lives Matter.
Com menos de 5% da população mundial, os EUA têm no seu território 25% dos presos do planeta, e os afroamericanos são a parte maioritária, quase 40%. Percentagens que não deixaram de aumentar nos últimos anos, inclusive naqueles estados onde as drogas foram legalizadas como a cannabis ou determinados opioides, demonstrando o erro dos que afirmam que a legalização das drogas suporia o fim da repressão.
Por uma sociedade livre de exploração e alienação
A hipocrisia da burguesia não conhece limites. Criminalizam e reprimem os jovens dos guetos enquanto protegem aqueles que realmente recebem o seu lucro do comércio das drogas. Os cartéis, em colaboração com os principais bancos estado-unidenses, obtiveram anualmente lucros de 29.000 milhões de dólares. No entanto, os traficantes e produtores só ficam com 5% desse lucro, quer dizer, os 95% restantes terminam nas mãos dos bancos, das farmacêuticas e das grandes empresas de Wall Street.
Para a classe dominante a droga joga um papel triplamente útil. Constitui um formidável negócio, facilita a justificação para aumentar a repressão e, além disso, permite introduzir uma substância enormemente nociva entre os setores mais radicalizados da juventude, apaziguando assim o espírito de luta e eliminando qualquer vislumbre de organização política.
O combate contra as drogas tem que ser uma prioridade na agenda política das organizações revolucionárias. É necessário atacar o problema pela raíz, defendendo uma alternativa socialista, nacionalizando as farmacêuticas, a banca e todas aquelas indústrias que se enriquecem à custa do negócio das drogas, investindo os recursos fabulosos que hoje uma minoria de parasitas monopoliza em emprego digno, em habitação pública acessível e decente, em saúde e educação públicas e universais, em equipamentos culturais e num ócio que não seja beber e drogar-se. Só assim acabaremos com qualquer tipo de necessidade e criaremos as condições para a genuína liberdade.
Notas:
1. Las colas del hambre recorren Nueva York
2. El gobierno de Biden lucha contra las adicciones en Estados Unidos a medida que las muertes por sobredosis rompen récords
3. El beneficio de las farmacéuticas crecerá un 50% este año y un 11% en 2021
4. El crimen del siglo', el documental de HBO sobre las farmacéuticas que deberías ver
5. Fentanilo, la droga 50 veces más potente que la heroína que tiene en alerta a EE.UU.
6. Cómo una simple operación de rodilla me llevó al consumo de heroína
7. A heroína cor de alcatrão é uma substância resinosa, pegajosa e preta de origem mexicana, resultante da acetilação incompleta da morfina. Em geral, é mais barata e mais rápida de produzir do que a heroína branca ou castanha.
8. Viaje a la capital de la crisis de opioides en EEUU: una receta por minuto en un pueblo de menos de 400 personas
9. La agonía de San Francisco: "Las condiciones de algunos barrios son peores que en Uganda"