Para marcar o aniversário da Revolução de Outubro, publicamos este artigo, escrito por Leon Trotsky, um dos seus principais dirigentes, no seu 18º aniversário. Escrito para o jornal Révolution, órgão da juventude revolucionária francesa, o artigo aplica a experiência da Revolução Russa para a luta destes jovens, na França dos anos 30. Este é um período cujas semelhanças à nossa própria atualidade são notáveis, e sobre o qual outros trabalhos de Trotsky que publicámos se debruçam a fundo.

Aceito com a maior prontidão a sugestão de Fred Zeller1 de contribuir com um artigo à Révolution pela ocasião do 18º aniversário da insurreição de Outubro. É verdade, a Révolution não é um “grande” diário, esforça-se já para ser um semanário. Altos burocratas podem menosprezá-lo. Mas já testemunhei muitas vezes como organizações “poderosas”, com uma imprensa “poderosa”, foram reduzidas a pó pelos choques dos acontecimentos e como, pelo contrário, pequenas organizações, com uma imprensa tecnicamente fraca, se transformaram em pouco tempo em forças históricas. Esperemos sinceramente que seja este o destino que aguarda o vosso jornal e a vossa organização.

No decorrer do ano de 1917, a Rússia atravessava uma profunda crise social. Pode afirmar-se com toda a certeza, com base em todas as lições da História, que, se não tivesse sido o partido bolchevique, a imensa energia revolucionária das massas teria sido desperdiçada em levantamentos esporádicos e que estas revoltas grandiosas teriam terminado na mais rigorosa ditadura contrarrevolucionária. A luta de classes é o principal motor da História. Exige um programa correto, um partido firme, uma direção digna de confiança e cheia de coragem – não de heróis de gabinete e retórica parlamentar, mas de revolucionários, prontos para ir até ao fim. Essa é a principal lição da Revolução de Outubro.

Os bolcheviques, uma minoria ao início

Temos de nos lembrar que, no início de 1917, o partido bolchevique comandava apenas um número insignificante de trabalhadores. Não só nos sovietes de soldados, mas também nos sovietes de operários, a fação bolchevique constituía geralmente apenas entre 1 a 2%, 5% no máximo. Os principais partidos da democracia pequeno-burguesa – os mencheviques e os ditos “sociais-revolucionários” – tinham pelo menos 95% dos operários, dos soldados e dos camponeses que participavam na luta. Os dirigentes destes partidos começaram por chamar aos bolcheviques de sectários, depois… de agentes do Kaiser alemão. Mas não, os bolcheviques não eram sectários! Toda a sua atenção estava virada para as massas, e não para a sua camada superior, mas para as mais baixas, para os milhões e dezenas de milhões dos mais explorados, que os parlamentares fala-barato habitualmente esqueciam.

Foi precisamente para poder liderar os proletários e semiproletários das cidades e dos campos que os bolcheviques consideraram necessário distinguir-se claramente de todas as fações e grupos da burguesia, a começar por aqueles falsos “socialistas” que, na realidade, são agentes da burguesia.

O patriotismo é o elemento essencial dessa ideologia pela qual a burguesia envenena a consciência de classe dos oprimidos e paralisa a sua vontade revolucionária, porque o patriotismo significa a submissão do proletariado à nação sobre a qual a burguesia se assenta. Os mencheviques e sociais-revolucionários eram patriotas, até à revolução de fevereiro, disfarçadamente, após fevereiro, aberta e cinicamente. Diziam: “Agora temos uma república, a mais livre do mundo; até os nossos soldados estão organizados em sovietes; devemos defender essa república contra o militarismo alemão.”

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O patriotismo é o elemento essencial dessa ideologia pela qual a burguesia envenena a consciência de classe dos oprimidos e paralisa a sua vontade revolucionária, porque o patriotismo significa a submissão do proletariado à nação sobre a qual a burguesia se assenta

Os bolcheviques responderam: “É indiscutível que a república russa seja hoje a mais democrática, mas essa democracia política superficial pode desmoronar-se de um dia para o outro, uma vez que se ergue sobre uma base capitalista. Enquanto os trabalhadores, sob a liderança do proletariado, não tiverem expropriado os seus próprios latifundiários e capitalistas, e rasgado os tratados criminosos assinados com a Entente, não podemos considerar a Rússia como nossa pátria, nem assumir a sua defesa.”

Os nossos adversários estavam cada vez mais indignados. “Se assim é, vocês não são simplesmente sectários, mas agentes dos Hohenzollern!2 Estão a trair as democracias russa, francesa, inglesa e americana!” Mas o poder do bolchevismo estava na sua capacidade de desprezar os sofismas dos “democratas” cobardes que se autointitulavam de socialistas, mas que na realidade se vergavam à propriedade capitalista.

Os juízes dessa disputa foram as massas trabalhadoras. Com o passar do tempo, o seu veredito pendia cada vez mais para o lado dos bolcheviques. Isso não é de estranhar. Nessa época, os sovietes reuniam à sua volta as massas de proletários, soldados e camponeses que despertavam para a luta e dos quais dependia o destino do país. A “frente unificada” dos mencheviques e dos sociais-revolucionários dominava os sovietes, e o poder estava efetivamente nas suas mãos.

Os sociais-patriotas perdem o apoio das massas

A burguesia estava completamente paralisada politicamente, após dez milhões de soldados, exaustos pela guerra, se terem alinhado, armados até aos dentes, aos operários e camponeses. Mas o que os dirigentes da “frente unificada” mais temiam era “assustar” a burguesia, “empurrá-la” para o campo da reação. A “frente unificada” não ousava tocar na guerra imperialista, nos bancos, na propriedade feudal, nas oficinas ou nas fábricas. Protelavam e proferiam generalidades, enquanto as massas se tornavam impacientes. Pior ainda, os mencheviques e os sociais-revolucionários transferiram diretamente o poder para o partido cadete, que os trabalhadores rejeitavam e desprezavam.

Os cadetes eram um partido burguês imperialista, baseado nas camaradas superiores das classes “médias”, mas fiel aos interesses dos proprietários “liberais” em todas as questões fundamentais. Poderíamos, se quiséssemos, compará-los os cadetes aos radicais franceses: a mesma base social, ou seja, as classes médias, a mesma política de embalar as massas com retórica vazia e o mesmo serviço leal aos interesses do imperialismo.

Tal e qual os radicais, os cadetes tinham a sua direita e a sua esquerda: a esquerda para confundir o povo, a direita para a política “séria”. Os mencheviques e sociais-revolucionários esperavam ganhar o apoio das classes médias aliando-se aos cadetes, ou seja, aos exploradores e vigaristas das classes médias. Ao fazê-lo, assinaram a sua própria sentença de morte.

Voluntariamente acorrentados à carruagem da burguesia, os dirigentes mencheviques e sociais-revolucionários tentaram persuadir os trabalhadores a adiar a expropriação dos latifundiários e, entretanto, a… ir morrer na frente de batalha pela “democracia”, isto é, pelos interesses dessa mesma burguesia. “Não devemos empurrar os cadetes para o campo da reação”, repetiam como papagaios os oportunistas, em inúmeras reuniões públicas.

Mas as massas não conseguiam nem queriam compreendê-los. Tinham depositado toda a sua confiança na frente unificada dos mencheviques e sociais-revolucionários, e estavam prontas a qualquer momento a defender, de armas na mão, contra a burguesia. Mas, mesmo tendo ganho a confiança do povo, os partidos da frente unificada chamavam o partido burguês ao poder e escondiam-se por detrás dele. As massas revolucionárias sublevadas jamais perdoam a cobardia ou a traição.

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Mesmo tendo ganho a confiança do povo, os partidos da frente unificada chamavam o partido burguês ao poder e escondiam-se por detrás dele. As massas revolucionárias sublevadas jamais perdoam a cobardia ou a traição.

Primeiro, os trabalhadores de Petersburgo; depois destes, o proletariado de todo o país; depois do proletariado, os soldados e, depois dos soldados, os camponeses, convenceram-se, através da sua própria experiência, de que os bolcheviques tinham razão. Assim, em poucos meses, esse punhado de “sectários”, “aventureiros”, “conspiradores”, “agentes dos Hohenzollern”, etc., tornou-se o partido dirigente destes milhões de pessoas que se despertavam. Lealdade ao programa revolucionário, hostilidade irreconciliável à burguesia, rutura completamente com os sociais-patriotas e profunda confiança no poder revolucionário das massas – eis as principais lições de Outubro.

A campanha de imprensa contra os bolcheviques

Toda a imprensa, incluindo os jornais mencheviques e sociais-revolucionários (para evitar qualquer mal-entendido, sublinhemos que este partido antimarxista nada tinha em comum com o socialismo revolucionário), empreendeu uma campanha pérfida, absolutamente inédita e sem precedente histórico contra os bolcheviques. Milhares e milhares de toneladas de papel de jornal foram preenchidas com reportagens alegando que os bolcheviques tinham ligações à polícia czarista, que recebiam carregamentos de ouro da Alemanha, que Lenine estava escondido num avião alemão, e assim por diante.

Nos meses que se seguiram a fevereiro, esta torrente de mentiras submergiu as massas. Marinheiros e soldados ameaçaram, mais do que uma vez, abaionetar Lenin e os outros dirigentes bolcheviques.

Em julho de 1917, a campanha de calúnia atingiu o seu apogeu. Muitos simpatizantes de esquerda, especialmente os intelectuais, ficaram assustados com esta pressão da opinião pública. Disseram: “Os bolcheviques certamente não são agentes dos Hohenzollern, mas são sectários, não têm tato, provocam os partidos democráticos, é impossível trabalhar com eles.” Este, por exemplo, era o tom que perpassava o grande jornal diário de Maxim Gorky3, à volta do qual se reuniam todo o tipo de centristas, meio bolcheviques e meio mencheviques, teoricamente muito à esquerda, mas que receavam romper com os mencheviques e sociais-revolucionários. Mas é uma lei que quem teme quebrar com os sociais-patriotas inevitavelmente se tornará no seu agente.

Os bolcheviques conquistam os sovietes

Entretanto, um processo exatamente oposto desenrolava-se entre as nassas. Quanto mais perdiam as ilusões sobre os sociais-patriotas, que traíam os interesses do povo em nome da amizade com os cadetes, mais atentamente escutavam os discursos dos bolcheviques e mais se convenciam de que estes tinham razão.

Para o operário na sua oficina, para o soldado na sua trincheira, para o camponês faminto, tornou-se claro que os capitalistas e os seus lacaios caluniavam os bolcheviques precisamente porque os bolcheviques se dedicavam firmemente aos interesses dos oprimidos. A indignação de ontem contra os bolcheviques tornou-se numa devoção apaixonada e determinação desinteressada de os seguir até ao fim. E, pelo contrário, o ódio das massas contra o partido cadete transferiu-se inevitavelmente para os seus aliados, os mencheviques e sociais-revolucionários. Os sociais-patriotas não salvaram os cadetes, mas destruíram-se a si próprios.

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Para o operário na sua oficina, para o soldado na sua trincheira, para o camponês faminto, tornou-se claro que os capitalistas e os seus lacaios caluniavam os bolcheviques precisamente porque os bolcheviques se dedicavam firmemente aos interesses dos oprimidos.

A rutura final do estado de espírito das massas, que ocorreu num espaço de dois ou três meses (agosto-setembro), tornou possível a vitória de Outubro. Os bolcheviques conquistaram os sovietes, e os sovietes conquistaram o poder.

O legado da Revolução de Outubro

Os céticos poderiam dizer: “Mas, no final de contas, a Revolução de Outubro trouxe o triunfo da burocracia. Será que valeu a pena?” Esta questão merece um artigo à parte, talvez até dois. Digamos aqui brevemente: a História não avança em linha reta, mas de forma enviesada. Após um salto gigantesco em frente, tal como após um tiro de canhão, há sempre um recuo. Mesmo assim, a história segue em frente. Sem dúvida, a burocracia soviética é uma úlcera hedionda que ameaça tanto as conquistas da Revolução de Outubro, como o proletariado mundial. Mas, para além do absolutismo burocrático, a URSS possui algo mais: meios de produção nacionalizados, uma economia planificada, a coletivização da agricultura que, apesar do flagelo monstruoso da burocracia, conduz o país para a frente económica e culturalmente, enquanto os países capitalistas retrocedem. A Revolução de Outubro só poderá ser libertada do vício da burocracia através do desenvolvimento da revolução internacional, cuja vitória garantirá verdadeiramente a construção de uma sociedade socialista.

Finalmente – e isto não é sem importância – a Revolução de Outubro é importante também porque deu à classe trabalhadora internacional muitas lições inestimáveis. Se os trabalhadores revolucionários de França as aprenderem com determinação, tornar-se-ão invencíveis.

Notas:

[1] Fred Zeller (1912-2003): dirigente político francês que, em 1935, liderava a ala de esquerda da Juventude Socialista em França. Sendo expulso do partido esse mesmo ano, juntar-se-ia às forças do comunismo revolucionário, trabalhando na clandestinidade durante a ocupação nazi de França no seio da Resistência Francesa

[2] Hohenzollern: dinastia que, durante o período de 1871 a 1918, serviram de Imperadores (Kaisers) da Alemanha

[3] Maxim Gorky (1868-1936): escritor russo que, durante a Revolução, se posicionou entre os mencheviques e bolcheviques, liderando a produção do jornal Nova Vida, passando firmemente para o campo bolchevique depois de julho de 1917. Teria uma relação difícil com o governo bolchevique, exilando-se da Rússia em 1921, e passando os próximos dez anos a viver na Itália fascista. Regressando à Rússia em 1932, tornar-se-ia um apoiante das tendências mais reacionárias do regime de Stalin, até à sua morte em 1936, possivelmente às mãos da polícia política estalinista.

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