A guerra entre a Rússia e a Ucrânia está a abalar os alicerces da economia mundial, agravando a crise do capitalismo em todos os países. Um dos seus efeitos mais notáveis é o aumento da inflação, que se agravou a um nível que não era visto desde a década de 1980.
A Argentina tem sido um dos países mais afetados, atingindo uma taxa de inflação interanual de 58%, o pior registo desde 1992, sob o governo de Menen. Juntamente com o aumento da pobreza, miséria e descontentamento social, a instabilidade política expressou-se numa profunda divisão no governo peronista da Frente de Todos, somada a um aumento vertiginoso do apoio à extrema-direita liderada por Javier Milei.
A causa última desta crise inflacionária é a natureza parasitária do capitalismo argentino. A Argentina é um país rico e exportador de alimentos que condena grande parte da sua população à subnutrição e à miséria. A fuga massiva de capitais levada a cabo pelos capitalistas empurra regularmente o Estado para um défice de financiamento; dólares são escassos numa economia na qual coexistem duas moedas, sendo que uma delas, o peso, perde valor enquanto a outra, o dólar — a moeda com a qual os argentinos fazem poupanças —, se valoriza. Nos últimos meses, o dólar "blue", o que é adquirido no mercado negro, aumentou de preço em 39%.
Para superar o défice fiscal, o governo, utilizando um dos recursos habituais do Estado argentino nestas situações, imprimiu mais papel-moeda. Em 2021, o Tesouro forneceu ao Estado 2,1 biliões de pesos, o equivalente a 4,8% do PIB, aprofundando a desvalorização do peso. A depreciação é de tal ordem que, devido à alta do preço do níquel e do cobre no mercado mundial, a moeda argentina tem um valor maior como metal pelas ligas que contém do que como meio de pagamento. Assim, apesar de a Argentina ter vivido um aumento do PIB de 10% em 2021, os efeitos disto esfumaram-se com o aumento dos preços.
O governo de Alberto Fernández, na medida em que aceita a lógica do capitalismo, está amarrado pelas condições do empréstimo de 40.000 milhões que o anterior governo, o de Macri (2015-2019), assinou com o FMI.
No passado mês de março, diante da impossibilidade de efetuar o pagamento de 19.000 milhões de dólares — de capital e juros do empréstimo — que tem de fazer este ano, o governo de Fernández teve de renegociar as condições do empréstimo em troca de toda uma série de cortes orçamentais . A isto deve acrescentar-se que o governo praticamente fechou os mercados de dívida; o prémio de risco da Argentina ultrapassou 19.000 pontos a 17 de maio.
Divisões no governo
Os resultados da renegociação do empréstimo do FMI obrigam o governo a reduzir o défice fiscal de 3% para 0,9% em 2025. Um ajuste que a parte kirchnerista do governo rejeitou, por considerar que o ajustamento implica um corte nas despesas sociais, prejudicando os sectores mais desfavorecidos e abrindo o caminho a uma derrota eleitoral nas eleições presidenciais de 2023.
Um dos principais cortes acordados pelo governo com o FMI é a redução dos subsídios à energia que representam entre 3 a 4% do PIB, além de manter os preços do gás e da eletricidade praticamente congelados. Apesar de ter sido anunciado que 10% dos clientes com rendimentos mais elevados deixarão de receber os benefícios do subsídio e que a "taxa social" do gás não será aumentada durante um ano, estima-se que o aumento da electricidade seja de aproximadamente 17%, e a do gás de 21%, com variações entre as regiões.
O sector liderado por Cristina Fernández de Kirchner opôs-se a tudo isto, criticando a política de "concentração de rendimentos e baixos salários" e reivindicando o congelamento do preço do gás e da eletricidade que foi aprovado durante o segundo governo Kirchner devido ao aumento de preços em 2011.
Ainda que se oponham a estes ajustes, os kirchneristas não propõem como alternativa o não pagamento da dívida ou a ruptura com o capitalismo, expropriando os capitalistas sem indemnizações. As suas propostas não vão além de reivindicar um abstrato "capitalismo com rosto humano", o que transforma o seu programa reformista numa utopia que, tal como a política do presidente Alberto Fernández e do ministro da Economia, Martín Guzmán, nos leva a um beco sem saída.
Recentemente, o Senado argentino, presidido por Cristina Fernández, e com maioria peronista, aprovou um projeto de pagamento da dívida ao FMI com ativos não declarados no exterior. A sua aprovação justificou-se com a criação de um fundo estatal composto por 20% do capital transferido para offshores que, segundo os senadores, poderia arrecadar 20.000 milhões de dólares. Este fundo seria aportado por empresas e particulares que possuem ativos não declarados no exterior. O que os senadores não explicaram foi o mecanismo pelo qual iriam convencer estes evasores a pagá-lo.
Polarização social
A crise afeta sobretudo a classe trabalhadora. Não é por acaso que o consumo de erva-mate aumentou nos últimos meses entre a população mais pobre, como substituição de refeições. A erva-mate dá a sensação de estômago cheio quando não há nada para comer. Para boa parte da classe trabalhadora, os salários não são suficientes para cobrir a cesta básica. Os preços de alimentos e bebidas tiveram um aumento de 28% nos primeiros 4 meses do ano, e o mate é um dos poucos produtos que resistiu à inflação — em março, a subida do IPC foi de 6,7%, a maior desde a crise do corralito de 2001. Esta notícia não surpreende, num país onde 40% da população vive na pobreza e 8,2% na indigência.
A maioria das subidas salariais acordadas através de contrato colectivo rondam os 45%, e poucas chegam a 60%, ficando abaixo da inflação. Enquanto isso, o salário mínimo (SM) aumentou apenas 45% (desde o mês de abril, o SM é de 437 dólares por mês).
Na realidade, a situação das massas também está a tornar-se mais insustentável precisamente por causa da política de cortes do governo. Exemplo disso é a diminuição da população que recebe subsídios — passou de 8,9 milhões de pessoas, em 2020, para 7,5 hoje, gerando um enorme mal-estar social.
Esta crise social e política gerou uma forte polarização social que se expressou, por um lado, num auge de explosividade, alimentada pelo aprofundamento da viragem à direita de amplos sectores das camadas médias, do Partido Libertario Argentino (extrema-direita) e do Juntos por el Cambio, a coligação da direita.
Assim como Trump e Bolsonaro, a racista e ultrarreacionária Milei tem um discurso contra a casta política, propõe o liberalismo ao máximo, assim como a eliminação do peso como moeda, deixando apenas o dólar. Em 2021 obteve 17% dos votos nas eleições da cidade de Buenos Aires.
À esquerda, a mobilização da classe trabalhadora está a radicalizar-se contra a política de Alberto Fernández. No 1º de Maio, face à divisão no governo, 200.000 trabalhadores, na sua maioria eles próprios apoiantes do atual governo, reuniram-se em Buenos Aires e marcharam em protesto contra as medidas de ajuste do Executivo. A 10 de maio, começou uma "marcha federal" de três dias, convocada por organizações sociais à esquerda do governo de Alberto Fernández, que convergiu em Buenos Aires e protestou "contra o ajuste e o Fundo Monetário Internacional", reunindo milhares de trabalhadores e as suas famílias, vindos de todo o país.
É claro o potencial para que uma alternativa revolucionária que lute resolutamente pela transformação socialista da sociedade se possa desenvolver de forma decisiva.
Para isso, é preciso arrancar a classe trabalhadora da influência das organizações que hoje predominam no movimento dos trabalhadores. Isto só pode ser alcançado através de uma crítica séria e rigorosa das políticas dessas organizações e dos seus dirigentes, e propondo aos setores mais combativos do peronismo uma frente unida de luta pelas reivindicações imediatas que afetam a vida das massas.
O beco sem saída do capitalismo coloca uma vez mais no horizonte a possibilidade de uma nova explosão social como o Argentinazo de 2001, mostrando os limites das políticas reformistas de quase duas décadas de kirchnerismo. A putrefação do sistema capitalista, que a política do reformismo só prolonga, está a dar asas na Argentina, como em tantos outros países, à extrema-direita. A tarefa da classe trabalhadora na Argentina é dotar-se de uma autêntica direção revolucionária que ponha fim a este recorrente pesadelo.