Numa das eleições mais disputados da história recente do Peru, o candidato de esquerda Pedro Castillo venceu as presidenciais. Com 100% dos boletins de voto processados e 99,56% contabilizados, Castillo reuniu 8.817.280 votos, 50,17% do total. A sua rival de extrema-direita, Keiko Fujimori, obteve 8.756.882 votos (49,82%), 60.398 votos a menos.

Embora esta diferença seja já insuperável, Fujimori e um dos setores da classe dominante estão a fazer pressão para que Castillo não seja declarado vencedor e se anulem os resultados de 808 mesas de voto (200.000 votos) onde ele ganha de forma clara, numa tentativa descarada de roubar a sua vitória ao povo.  

Castillo, um professor rural que se destacou enquanto dirigente da greve dos professores que sacudiu o país em 2017, deu início à campanha para a primeira volta com menos de 2% das intenções de voto. À medida que foi denunciando os privilégios e a corrupção da classe dominante e enquanto propunha acabar com a constituição imposta em 1993 pela ditadura fujimorista, aumentar os orçamentos para a saúde e educação, avançar com a reforma agrária, alargar a intervenção estatal na economia e nacionalizar os recursos minerais e do gás natural, o seu apoio cresceu de forma avassaladora.  

O movimento de massas em apoio a Castillo faz parte da escalada revolucionária e da viragem à esquerda que se vive na América Latina. A sua vitória constitui um grande transtorno para a oligarquia peruana e para o imperialismo norte-americano, que investiram milhões no apoio a Fujimori e desencadearam uma campanha de terror baseada num monopólio da informação em torno da sua candidata, e em manobras e tentativas de fraude nunca antes vistas neste país andino e nas últimas décadas, apenas para impedir um governo de esquerda.   

A mobilização das massas derrotou a campanha de terror da burguesia  

Durante dois meses, os jornais, as emissoras de rádio e os canais de televisão dedicaram todos os seus espaços (políticos, de entretenimento e até retransmissões desportivas) a sessões de ódio contra Castillo. Os desprestigiados partidos políticos do regime, os bispos e padres evangélicos mais reacionários, os empresários, intelectuais, modelos, atores, atletas, apareceram em cena para apelar a “eleger bem”, “parar o comunismo” e “que o Peru não se torne noutra Cuba ou Venezuela”. 

A mão dissimulada dos serviços secretos também fez campanha. Quinze dias antes das eleições, um misterioso atentado terrorista assassinou 16 pessoas nas regiões do VRAEM (Vale dos rios Apurímac, Ene e Mantaro), um bastião de Castillo. Atribuído ao Sendero Luminoso (SL) — grupo guerrilheiro cujos métodos sectários provocaram uma rejeição massiva entre os camponeses durante os anos 80 e que o próprio Estado peruano considera dissolvido — o atentado aconteceu após meses de calúnias que acusavam Castillo de ligações ao SL, o que foi sendo reiteradamente desmentido.    

A tática de identificar a esquerda com o SL é utilizada há décadas pela classe dominante para desacreditá-la e isolá-la, especialmente nas regiões mineiras e camponesas. Nesta campanha fizeram-no com força redobrada, mas sem êxito: Castillo arrasou nessas regiões, alcançando aí os 70% ou mesmo 80%.

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Durante dois meses, os jornais, as emissoras de rádio e os canais de televisão dedicaram todos os seus espaços (políticos, de entretenimento e até retransmissões desportivas) a sessões de ódio contra Castillo

Uma vez mais, a mobilização massiva e determinada dos oprimidos, nas urnas e nas ruas, foi o fator chave para fazer ir pelos ares os planos da classe dominante. Castillo conseguiu alcançar um maior número de votos do que qualquer outro candidato da história peruana. Quando a contagem oficial colocou em evidência que arrasava nas regiões mais pobres do interior do país e isso, a juntar ao aumento do seu apoio nos bairros operários e populares de Lima em relação à primeira volta, lhe dava a vitória, começaram as manobras para arrancar a vitória ao povo. 

Centenas de milhares de trabalhadores e camponeses responderam imediatamente a estas manobras, aparecendo nos locais de voto para garantir que os seus votos eram contados e contabilizados, e marchando desde a periferia de Lima e do interior até ao centro da capital para acampar frente à Oficina Nacional de Procesos Electorales (ONPE) em defesa dos resultados.

Depois de atrasar durante dias a contagem, esperando que o voto dos residentes no estrangeiro (favorável a Fujimori) se aproximasse o suficiente de um resultado que permitisse organizar uma qualquer fraude, a ONPE, dirigida por um indivíduo historicamente associado ao fujimorismo, continuou a recusar-se a reconhecer oficialmente a vitória de Castillo. Na tentativa de impor por despacho ou a partir dos quartéis aquilo que não conseguiu nas urnas, Fujimori convocava, na quarta-feira 9 de junho, manifestações diante da ONPE e do Comando Conjunto das Forças Armadas. 

Organizar uma greve geral e impulsionar comités de ação para defender a vitória 

A polarização nas ruas está a acentuar as divisões no seio da classe dominante. Receosos de que a atuação de Fujimori possa desencadear uma insurreição como a que sacudiu o país em novembro de 2020, um setor da burguesia distanciou-se de Fujimori e até parecia querer afastá-la para evitar uma escalada nas ruas. Na quinta-feira dia 10, a Procuradoria Geral acionou um pedido de prisão preventiva contra a líder da extrema-direita por várias acusações de corrupção pendentes. Horas depois, descobria-se que o presidente em funções, Francisco Sagasti, se tinha dirigido a Mario Vargas Llosa, que apoiou Fujimori, para tentar anular a tensão nas ruas.

Contudo, outro setor da oligarquia peruana e da direita da América Latina vê com bastante apreensão os efeitos de uma vitória eleitoral que, tal como se desenvolveram os acontecimentos, é o produto da ação direta e da mobilização desde as bases das massas peruanas. Não temem tanto Castillo, mas o poderoso movimento das massas que o elevou e que vai querer que ele cumpra o que prometeu para resolver os problemas urgentes do povo. Essa é a razão que já levou ex-presidentes como Uribe, da Colômbia, Aznar, do Estado Espanhol e outros representantes dos setores mais reacionários da classe dominante a apelar para que Castillo não seja proclamado.

Esta divisão no seio da burguesia peruana segue no contexto de uma crise que se prolonga há já bastante tempo e que se intensificou depois da insurreição de novembro de 2020. Na altura, caiu o governo de Manuel Merino e a classe dominante viu-se obrigada a convocar as atuais eleições presidenciais. O seu objetivo era, precisamente, tentar recompor e estabilizar a situação. Colheram um fracasso que reflete a debilidade do capitalismo e da classe dominante andina.  

A decisão de adiar a proclamação de Castillo como presidente, com a desculpa de que os tribunais devem decidir sobre a anulação solicitada por Fujimori, significa na prática impedir que a vontade da maioria do povo seja levada adiante, enquanto os diferentes setores da classe dominante negociam nos bastidores e pelas suas costas uma saída contra o povo.  

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Adiar a proclamação de Castillo como presidente no seguimento do pedido de anulação feito por Fujimori, significa na prática impedir que a vontade da maioria do povo seja levada adiante

Castillo e os dirigentes dos sindicatos e organizações de esquerda que o apoiam devem rejeitar categoricamente esta manobra. Baseando-se na enorme força demonstrada pelas massas, têm de convocar imediatamente uma greve geral e mobilizar as massas por todo o país para exigir que se reconheça a sua vitória. Ao mesmo tempo, há que impulsionar a formação de comités e assembleias em defesa do resultado eleitoral e que, além de organizar esta luta, unifiquem todas as reivindicações operárias e populares para que sejam levadas a cabo pelo governo.   

Dessa forma, toda a resistência da extrema-direita fujimorista e dos setores do aparelho de estado poderia ser anulada rapidamente, e sairia fortalecida a confiança das massas peruanas na sua própria força. Mas, se pelo contrário, Castillo aceitar esta manobra na tentativa de apresentar-se como garantia de estabilidade perante os mercados, estará a cometer um erro gravíssimo. Jamais será capaz de convencer os oligarcas e o imperialismo do que quer que seja, mas está ao seu alcance a desmobilização que só pode confundir setores das massas que hoje o apoiam e que estão dispostos a demonstrá-lo nas ruas. Para além disso, com uma atitude dessas estaria a renunciar a fazer chegar uma mensagem clara e decidida às restantes camadas que, ainda que não se tenham pronunciado nas eleições, votado nulo ou branco ou até manifestado apoio a Fujimori, poderiam ser convencidas com medidas socialistas, as únicas que podem fazer frente aos seus problemas.   

Não há terceira via. Ou ceder perante os capitalistas ou aplicar um programa socialista. 

Se, no final das contas, a classe dominante vier a ser obrigada a reconhecer a vitória do Perú Libre, vão recorrer a uma qualquer negociação à traição do povo para assegurar que os seus dirigentes renunciam a qualquer medida capaz de ameaçar os privilégios das elites. A brutal campanha de terror, de sabotagem e as tentativas de fraude dos últimos dias não poderão ser comparadas com as pressões que vão aplicar para que o governo da esquerda defraude as esperanças das massas. 

O resultado eleitoral tangencial já está a ser utilizado por certos setores da classe dominante, que pareciam inclinados a reconhecer a vitória de Castillo, para afirmar que “com um país dividido nos 50%” se deve renunciar às propostas que não contam com um consenso alargado e com o apoio do parlamento, onde o Perú Libre será a principal força mas os partidos do regime mantêm a maioria.  

Aceitar estas pressões seria caminhar para o desastre. Na senda do capitalismo peruano é impossível resolver qualquer problema do povo. Castillo e os dirigentes do Perú Libre estão sujeitos à pressão de classes antagónicas e vão ter de ceder a um dos lados. Ou aos milhões de trabalhadores, jovens e camponeses que os apoiam para adotar um programa socialista e acabar com a miséria e a exploração capitalistas, ou às pressões da oligarquia, do imperialismo e dos setores mais reacionários da sociedade, que estão já a bater com o punho na mesa e a exigir recuos. 

A este perigo junta-se o das posições reacionárias que o próprio Perú Libre mantém: a oposição ao direito ao aborto, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, aos direitos da comunidade LGBTI e à eutanásia… Ou a postura de defender a pena de morte nalguns casos para lutar contra a delinquência, ou a afirmação de que expulsarão “todos os estrangeiros que vieram para violar as leis” e “que ficarão apenas aqueles que vieram para trabalhar”. Estes comportamentos machistas, homofóbicos e xenófobos abrem a porta à burguesia e à direita para dividir e fazer frente aos oprimidos e encontrar pontos de apoio entre eles para os seus planos contra-revolucionários.

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As posições reacionárias que o Perú Libre mantém em relação a alguns temas impedem  Castillo de mobilizar massivamente setores que, nas grandes cidades, o podiam ter apoiado na segunda volta

Estas posições reacionárias impedem Castillo de mobilizar massivamente setores das grandes cidades que o podiam ter apoiado na segunda volta. Em Lima, Keiko Fujimori conseguiu 3.696.899 votos (65,70%) face aos 1.929.692 (34,29%) de Castillo. 

O voto em Fujimori agrupa os setores que se enriqueceram com as políticas neoliberais e as camadas mais retrógradas da sociedade, mas muitos outros dos seus eleitores pertencem a setores da classe média e até das camadas populares mais atrasadas que, mesmo sofrendo com as políticas da oligarquia, deixaram-se afetar pela campanha do medo.   

Mesmo tendo Castillo ampliado o seu apoio em relação à primeira volta — em particular nos bairros mais pobres, onde ronda os 45%, enquanto que nas zonas da classe média consegue menos do que 25 ou 20% — poderia ter-se superado se tivesse defendido uma política socialista consequente, assumindo que os recursos imensos que estão atualmente nas mãos de banqueiros, de latifundiários, empresários e das multinacionais devem passar para as mãos do povo trabalhador para planificar democraticamente a economia; isto para aumentar os orçamentos para a educação e a saúde, assegurar a vacinação e a prestação de cuidados de saúde a todas e a todos; as terras, o emprego, salários e habitação dignos... 

Tudo isso permitiria manter a energia e a mobilização dos milhões que apoiam Castillo e arrastaria muitos mais jovens, trabalhadores e camponeses, e até amplos setores das camadas médias que se abstiveram nestas eleições, votaram branco ou nulo ou mesmo em Fujimori.  

Por uma frente única de esquerda para lutar pela transformação da sociedade 

As e os ativistas de esquerda anticapitalista, do movimento feminista, dos sindicatos operários e camponeses, do movimento estudantil, devem impulsionar uma frente única de esquerda para participar no movimento das massas que apoia Castillo com um programa genuinamente socialista e um plano de ação que sirva para lutar contra qualquer tentativa de fazer descarrilar o movimento revolucionário das massas.  

A palavra de ordem da convocatória da Assembleia Constituinte Livre e Soberana, que defendem a maioria dos dirigentes dos sindicatos e partidos de esquerda do Peru, longe de ajudar a combater as tentativas de desviar a luta das massas das ruas para o terreno do parlamentarismo burguês, antes o facilita. 

A primeira tarefa da esquerda é manter a mobilização nas ruas e impulsionar a sua organização a partir de baixo, formando comités de ação de unidade cuja tarefa imediata — para além da defesa do resultado eleitoral — será impedir qualquer golpe ou manobra cujo intuito seja arrancar a vitória ao povo. 

Depois, há que exigir a Castillo e aos dirigentes do Perú Libre que apliquem imediatamente as propostas mais à esquerda do seu programa sem ceder à chantagem dos capitalistas, a começar pela nacionalização dos grandes monopólios privados e da banca e da distribuição das terras pelo campesinato através da expropriação dos latifúndios.   

Castillo, depois da brutal pressão da oligarquia, fala de uma “economia popular de mercado”. Em breve, a realidade vai mostrar que para defender o povo só há um caminho: arrancar a riqueza das mãos de uma minoria parasitária para fazer frente às urgentes necessidades sociais que não podem ficar por atender.   

Como é óbvio, enquanto dirigimos o nosso fogo contra a oligarquia, contra Fujimori e a direita, não podemos renunciar à batalha pela defesa dos direitos da mulher e da comunidade LGBTI, contra a justiça patriarcal, pela defesa incondicional dos direitos de cidadania dos trabalhadores nascidos no Peru ou no estrangeiro… Castillo deve corrigir-se e deixar de explorar preconceitos sexistas, racistas e reacionários que não têm nada a ver com a esquerda.  

Armados com este plano de ação e um genuíno programa socialista, os trabalhadores, os camponeses e os jovens mais combativos podem conseguir o apoio do conjunto dos oprimidos e das oprimidas e abrir caminho à luta pela transformação socialista da sociedade no Peru e em toda a América Latina.

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