O dossier 273 do esquerda.net intitulado “Venezuela, um país esfacelado” procura, segundo o autor, Carlos Santos, “fornecer análises em artigos sobre alguns dos mais importantes aspectos da crise que acabou com a esperança no país de Hugo Chávez e o dividiu profundamente”, uma frase sintomática do enviesamento que encontramos nos artigos que o perfazem. Seria antes de esperar uma análise de esquerda, que não fizesse o jogo da direita.

A actual situação da Venezuela é complexa e é uma tarefa ingrata fazer a sua análise apenas com um dossier. Ainda assim, por mais superficial que fosse, seria de esperar que qualquer dossier do esquerda.net apresentasse uma análise de esquerda. Mas não é isso que encontramos no dossier 273. Os seus artigos criticam duramente o governo venezuelano, sem nunca mencionar por exemplo as acções contra-revolucionárias da oposição burguesa ou os interesses imperialistas dos Estados Unidos da América (EUA). Isso pode ser parcialmente explicado pelos interesses dos autores do dossier: membros do Marea Socialista, da Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição da Venezuela e ainda das empresas privadas Visor 360 Consultores e Transnational Institute, alguns dos quais membros de mais do que uma destas. Mas já lá iremos, façamos primeiro a crítica de esquerda.

Em 2002, presidente há já três anos, Hugo Chávez sofre uma tentativa de golpe de Estado, impedida pelos milhares de trabalhadores da Venezuela que saíram às ruas de Caracas em seu apoio. Este evento fez com que o discurso de Chávez, até então patentemente reformista, guinasse à esquerda, afirmando renegar a via social-democrata. Infelizmente houve um grande desfalque entre a sua retórica e as acções que acabou por concretizar.

Em 2003 teve lugar o 1º Congresso da Unión Nacional de los Trabajadores de Venezuela (UNETE), uma central sindical chavista, onde foi aprovado um programa revolucionário que advogava a nacionalização dos meios de produção e a administração das indústrias pelos trabalhadores. Em 2006 Chávez cria o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) com o objectivo de agregar as forças chavistas num único partido, e é re-eleito nesse ano com 58% dos votos com um programa baseado em nacionalizações e redistribuição de riqueza. Estas duas ocasiões demonstram claramente o apoio e vontade que os trabalhadores da Venezuela tinham por um programa socialista. No entanto, Chávez limitou-se a expropriar algumas grandes empresas (como a CANTV em 2007 e a SIDOR em 2009) e a incitar os dirigentes sindicais chavistas a ocupar os seus locais de trabalho sem delinear um plano concreto de nacionalizações a nível nacional.

Mesmo quando eram nacionalizadas as empresas não ficavam sob a direcção dos trabalhadores. Veja-se o caso da Abastos Bicentenarios, a principal cadeia de distribuição de alimentos, que pertencia ao grupo privado CASINO desde os anos 90. Em 2010 quando o patronato quis fechar a empresa os trabalhadores exigiram a expropriação. Chávez concretizou-o sem no entanto democratizar o espaço de trabalho, sem ceder o controlo aos trabalhadores. A estrutura burocrática corrupta foi mantida, boicotando activamente a actividade da empresa (a presidente foi inclusivamente presa em 2016 por corrupção), tendo a oposição capitalizado a situação para dizer que tinha sido a nacionalização a tornar uma empresa produtiva numa empresa disfuncional. O modo como esta empresa foi nacionalizada e o seu resultado — representativo de tantas outras — é um bom exemplo de como Chávez, ao tentar conciliar os interesses das duas classes, acabou por trair o desejo dos trabalhadores venezuelanos de se libertarem das suas correntes.

Sendo a Venezuela um dos principais produtores de petróleo à escala mundial e tendo o preço do barril de petróleo vindo a subir durante a primeira década do século XXI (exceptuando a queda de 2008 — ver Figura 1), Chávez pôde usar o dinheiro do petróleo para financiar as suas Misiones, que alimentaram, educaram e deram tecto a milhares de trabalhadores venezuelanos. Mas as aspirações da classe trabalhadora da Venezuela eram as de um controlo directo e democrático dos meios de produção, da libertação dos ciclos de miséria instigados pelo sistema capitalista — algo que Chávez se viu incapaz de concretizar.

[caption id="attachment_4536" align="alignnone" width="784"] Figura 1: Preço do barril de petróleo de 1995 a 2017. Note-se a descida acentuada entre Agosto de 2014 e Janeiro de 2015, de uma média de 90 dólares para 45, uma redução de 50% do seu valor. Crédito: macrotrends.net.[/caption]

Assim, quando Chávez morre, em 2013, Maduro é eleito com uma margem sobre a oposição de apenas 1,5% dos votos. A oposição ao governo, burguesa e reaccionária, agrupada desde 2008 numa coligação denominada Mesa de la Unidad Democrática (MUD), apercebendo-se do descontentamento dos trabalhadores, aumentou a intensidade dos seus ataques ao governo venezuelano. Os seus dirigentes são os mesmos que em 2002 tentaram o golpe de Estado com o apoio dos EUA: Julio Borges, actual presidente da oposição no Parlamento, boicota sempre que tem oportunidade a economia do país e faz visitas aos EUA e a Estados membro da União Europeia com o objectivo de que estes imponham sanções ao governo; Leopoldo Lopez, proveniente de uma das mais influentes famílias da burguesia venezuelana, deteve ilegalmente o então Ministro do Interior e Justiça Ramon Rodriguez Chacín, e organizou as guarimbas de 2014 que provocaram mais de 40 mortos, motivo pelo qual foi preso; Henrique Capriles, candidato da oposição nas eleições presidenciais de 2012 e 2013, liderou então um ataque à embaixada de Cuba e está actualmente acusado de corrupção. Todos eles já apelaram em mais de uma ocasião ao exército para encabeçar um golpe de Estado e aos manifestantes para fazerem uso de violência durante as manifestações. São estes os líderes do futuro governo venezuelano caso Maduro caia, visto faltar uma direcção revolucionária na Venezuela dentro das organizações de massas como o PSUV, a UNETE ou a Central Socialista Bolivariana de los Trabajadores (CSBT) que possa tomar o seu lugar.

Em Agosto de 2014 o preço do petróleo cai para metade (Figura 1), o que faz estancar parte do apoio governamental a políticas sociais, aumentando o descontentamento da população. A burguesia aproveitou a situação para decretar guerra económica[1], manipulando as taxa de câmbio no mercado negro paralelo, publicada em sites como o DolarToday.com e redes sociais, com valores que não correspondem a qualquer variável económica associada, tal como reservas internacionais e liquidez monetária. Deste modo o Estado venezuelano tem gasto milhares de milhões a mais nas importações de bens essenciais a multinacionais privadas ou mesmos a empresas estatais com funcionários corruptos. Estas multinacionais fazem ainda a acumulação de bens essenciais em armazéns e contrabando destes para países vizinhos (principalmente a Colômbia) de modo a deliberadamente provocarem a sua escassez, a qual é capitalizada pelos media burgueses até à exaustão.

Maduro, incapaz de fazer uma leitura correcta dos acontecimentos, comete os mesmo erros de Chavez: deixa por nacionalizar alguns dos sectores estratégicos da economia venezuelana; quando nacionaliza, como aconteceu em 2015 com empresas de alimentos, não democratiza a sua administração; mantém a capa burocrática do PSUV e do Exército que lucram com a guerra económica, etc. Estes erros levaram à derrota do PSUV nas eleições gerais de 2015. Milhares de chavistas da classe trabalhadora, cientes do perigo que representava para os seus direitos uma Assembleia Nacional liderada pela oposição, apelaram em manifestações espontâneas para que Maduro virasse à esquerda. Em vez disso Maduro agrava as políticas económicas, subindo os preços, cortando salários, despedindo trabalhadores revolucionários, abrindo a exploração da Cintura Petrolífera de Orinoco às empresas mistas e do Arco Minero às grandes multinacionais do sector, incluindo empresas como a Gold Reserve — anteriormente expulsa por Chávez da Venezuela. Cria ainda a Compañía Anónima Militar de Industrias Mineras, Petrolíferas y de Gas (COMINPEG), um consórcio que coloca directamente nas mãos do Estado Maior do Exército a exploração de vários recursos minerais e a possibilidade de chegar a acordos, à margem do controlo da Presidência, com empresas privadas.

Depois de meses de protestos incitados pela oposição Maduro convoca a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) a 1 de Maio deste ano como forma de, segundo o mesmo, constitucionalizar novas formas de democracia participativa tais como Comunas e Conselhos Comunais, Conselhos de Trabalhadores e Trabalhadoras e defender a soberania e a integridade da nação contra o intervencionismo estrangeiro, entre outras medidas. Ao contrário do que é dito pela oposição e por alguns dos artigos deste dossier, como se pode confirmar no artigo 348 da Constituição Venezuelana, a ANC pode ser convocada pelo Poder Executivo, sem necessidade de referendo. Maduro convidou inclusivamente a MUD a apresentar candidatos à ANC, mas estes recusaram, preferindo continuar a jogar as cartas da “inconstitucionalidade” e do “regime dictatorial”, algo no mínimo irónico para quem engendrou a tentativa de golpe de Estado em 2002.

Mas representa a ANC uma viragem à esquerda? A resposta não é consensual. O que é certo é que se não for combinada com um plano de nacionalização que ponha fábricas, terras e bancos sob a administração democrática directa dos trabalhadores, não chegará para combater a oposição e os interesses imperialistas dos EUA.

Como vimos, há muito por onde criticar as políticas de Maduro e do PSUV e de como estes criaram uma crise económica, social e política, facilitando o trabalho da oposição. Seria de esperar que fossem estas as críticas apresentadas neste dossier, mas encontramos apenas críticas pela direita. Vejamos quem são os autores dos artigos deste dossier e a que interesses servem.

Heiber Barreto Sánchez, autor do artigo “Escassez e falta de alimentos e medicamentos na Venezuela de 2016” é investigador da Visor 360 Consultores, uma empresa de estudos de opinião pública e projectos de políticas públicas e corporativas. É ainda membro do Marea Socialista, grupo autoproclamado de “chavismo crítico”, fazia até 2015 parte do PSUV. Desde aí tem feito pactos com a direita em várias oportunidades, preferindo focar-se nas críticas ao “rumo totalitarista do governo” em vez de críticas às actividades contra-revolucionárias da MUD. Jorge Martin, Secretário Geral da campanha de solidariedade “Hands Off Venezuela”, familiarizado com a verdadeira cara da oposição, escreveu-lhes recentemente um artigo de opinião a relembrar-lhes que deveria ser esta o alvo das suas acirradas críticas. O Marea Socialista perdeu assim a oportunidade de ser a “oposição de esquerda” devido ao seu posicionamento oportunista. A direita por seu lado também não quer nada com o Marea Socialista devido ao seu passado chavista. Como resultado encontra-se num processo de ruptura interna, como podemos comprovar pela recente saída de Nicmer Evans, director da Visor 360 Consultores.

A recente Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição da Venezuela é-nos introduzida no artigo “Plataforma cidadã exige referendo à convocação da Assembleia Constituinte” do dossier. Composta pelos ex-ministros Héctor Navarro, Oly Millán Campos, Ana Elisa Osorio e Gustavo Márquez, os professores universitários Edgardo Lander, Esteban Emilio Mosonyi, Santiago Arconada, o advogado constitucionalista Freddy Gutiérrez Trejo, o Major General Cliver Alcalá Cordones e os dirigentes da Marea Socialista Gonzalo Gómez, Juan García y Roberto López Sánchez, apelou à abstenção ou ao voto nulo na Constituinte. Já em Maio deste ano muitas destas personalidades, como Oly Millán Campos e Edgardo Lander se tinham juntado a cerca de 150 outras na iniciativa "Llamado Internacional Urgente a Detener la Escalada de Violencia en Venezuela", abordado no artigo “Apelo Internacional ao fim da escalada de violência na Venezuela” do dossier. Neste escrevem que “creemos que el principal responsable de la situación en Venezuela — en tanto garante de los derechos fundamentales — es el Estado” e convocam a formação urgente de um Comité Internacional pela paz na Venezuela a fim de “deter a escalada de violência institucional”.

A resposta ao apelo — que figura também no dossier no artigo “Venezuela: Quem acusará os acusadores?” — não se fez demorar: cerca de 550 personalidades escrevem que “analisar esse momento político-militar de forma madura implica considerar que as guarimbas da oposição, o assassinato de lideranças chavistas no campo e na cidade, a infiltração incessante de paramilitares colombianos, a formação de milícias bolivarianas, o fortalecimento da união cívico-militar e o patrulhamento militar das costas venezuelanas por potências emergentes, são muito mais do que um testemunho da desenfreada paixão caribenha”. Em suma, precisamente a mesma crítica que poderia ser feita a este dossier. A crítica não passa ao lado de Carlos Santos, que escreve no artigo “Venezuela: Os riscos da violência e da guerra civil” do dossier que esta esquerda “em vez de combater e denunciar a política seguida por Maduro e pelo PSUV, considera-a, lamentavelmente, como anti-imperialista”, escolhendo ignorar desta forma o largo historial imperialista dos EUA na América do Sul, assim como todas as provas de guerra económica já aqui anteriormente descritas.

Edgardo Lander é uma figura em destaque no dossier: para além de subscrever a Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição da Venezuela e o apelo internacional referidos acima, é ainda autor de 2 artigos do dossier: “Venezuela: um barril de pólvora” e “A Constituinte leva-nos a um ponto sem retorno”. É investigador do Transnational Institute, financiado, entre outras organizações, pela Open Society Foundations, de George Soros, pela James Michael Goldsmith Foundation e pela Rockefeller Brothers (contabilidade de 2015). Não serão certamente os interesses dos trabalhadores venezuelanos que lhe pagam para defender. Mais recentemente foi ainda publicado no esquerda.net o seu artigo “A implosão da Venezuela rentista”, em 3 partes. Na 2ª parte cita várias empresas de sondagens que servem de frente à burguesia venezuelana, inventando números como bem lhes convém, como a Datanálisis, o Venebarómetro ou o Observatório Venezuelano da Violência. Não apenas isso, mas estes e outros artigos do dossier contêm inconsistências e notícias falsas — seria preciso um outro longo artigo para as corrigir.

A propagação destas notícias falsas não se fica pelos artigos deste dossier. Na sessão do Fórum Socialismo sobre a Venezuela — que se realizou nos passado dia 27 de Agosto — voltam a ser apregoadas algumas: que as mais de 100 mortes resultantes dos protestos se devem exclusivamente à Guarda Nacional Bolivariana (GNB) — alguns dos mortos são da própria GNB, outros são de saqueadores, outros ainda de transeuntes assassinados pelos manifestantes, etc —, que houve manifestantes a morrer esmagados por tanques do exército — o que a ser verdade estaria a passar em todos os media burgueses —, que o Estado domina os media Venezuelanos — quando na verdade os 3 jornais de maior circulação são privados e cerca de metade dos canais de televisão são privados —, ou que Venezuelanos esfomeados se vêem obrigados a assaltar zoos para ter que comer — são na realidade gangues, muito possivelmente a mando da burguesia.

Quer nos artigos do dossier quer no Fórum Socialismo foi deixada de fora uma análise à guerra económica e à oposição de direita burguesa que incita à violência nas ruas, a golpes de Estado por parte do Exército, ou à acumulação de bens essenciais pelas grandes empresas de modo a provocar escassez. Apesar dos autores desejarem a saída de Maduro do governo também não encontramos um plano para uma alternativa à esquerda que o possa substituir. Nestes artigos a análise da luta de classes foi substituída pelo apelo demagógico contra um suposto ditador que ignora os direitos humanos e a análise dos interesses imperialistas dos EUA na Venezuela por uma simples crítica à economia rentista e falta de diversificação da economia Venezuelana — o mesmo que se poderia esperar de quem serve à direita.

A esquerda que escolher criticar Maduro com base em números e notícias falsas propagadas por empresas e media ao serviço da burguesia Venezuelana estará de facto a fazer o jogo da direita e ficará sem dúvida do lado errado da história.


[1] Para aprofundar o conhecimento do leitor sobre o assunto, aconselha-se a leitura do livro “The Visible Hand of the Market - Economic Warfare in Venezuela” da economista Pasqualina Curcio e do artigo em 4 partes “The economic war for Dummies (and journalists)” do jornalista Maurice Lemoine (parte 2; parte 3; parte 4).

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