[Artigo originalmente publicado a 23 de Março, em castelhano, aqui]


Nacionalizar a banca e as empresas estratégicas para defender os cuidados de saúde públicos!

A primeira vítima de uma guerra é a verdade. O chorrilho de mentiras grosseiras que os meios de comunicação e os governos ocidentais vomitam a cada hora não fazem mais do que confirmar isto mesmo. De facto, a guerra da qual nos falam com ar circunspecto foi declarada pelas instituições capitalistas há décadas, arrasou com os direitos e serviços sociais, criou uma desigualdade obscena, degradou o meio ambiente a uma escala intolerável e reduziu países inteiros a escombros. Foi no rasto desta guerra que a pandemia de coronavírus galopou.

Agora podemos compreender melhor as razões da barbárie que já fustigava milhões de homens, mulheres e crianças em África, no Médio Oriente e na América Latina, esmagados pela ganância imperialista. Este capitalismo predatório e insaciável — e apenas ele — é o responsável pela actual derrocada económica e social, por uma matança de inocentes que vai traçar um antes e um depois na história do mundo. O coronavírus não foi mais do que o acidente que expressa a necessidade.

Todos, a uma só voz, tentam apresentar estes acontecimentos como fruto de uma força descontrolada e imprevisível. Mentira. Mil vezes mentira. Os governos capitalistas das grandes potências sabiam perfeitamente a gravidade do que se estava a passar. Quando, há mais de um mês, o governo chinês adoptou o isolamento total para a região de Hubei e da sua capital Wuhan (60 e 11 milhões de habitantes, respectivamente), a UE, EUA e Grã-Bretanha nada fizeram para que fossem tomadas medidas preventivas efectivas e contundentes.

Pelo contrário. A completa ausência de uma actuação unificada esconde o interesse mesquinho de cada burguesia nacional para se salvar a si mesma. A rejeição absoluta de providenciar todos os recursos humanos e materiais necessários aos sistemas de saúde nacionais já devastados por anos de cortes, assim como de parar a actividade produtiva não-essencial, foram a norma neste caos. A possibilidade de os cenários prognosticados por muitos especialistas se materializarem — com centenas de milhares ou até milhões de mortos em todo o mundo — é o resultado directo destas políticas criminosas.

Proteger a vida as pessoas? Não, claro que não, não é isso que importa. A única motivação das instituições — quer seja o FMI, a Reserva Federal, o Banco Central Europeu ou todos os governos e parlamentos que actuam como mordomos do capital financeiro — é garantir e salvaguardar os benefícios multimilionários dos banqueiros, dos especuladores e das grandes multinacionais cotadas em bolsa. Esta é que é a grande verdade da guerra.

Lições de moral

A situação no Estado Espanhol é um bom exemplo. Os dados “oficiais” do Ministério da Saúde — que estão longe da realidade —, informam [à data da escrita deste artigo, 23 de Março] que já existem cerca de 2.500 óbitos e 35.000 contagiados. Contudo, estes números serão ultrapassados com uma intensidade pavorosa nas próximas semanas. O número de 60 ou 70.000 contagiados é muito mais real e, tendo em conta a progressão de mortes devido ao o colapso do serviço nacional de saúde, os óbitos podem superar os 10.000 num curto espaço de tempo. O exemplo do que se está a passar em Itália serve de guia para entender aquilo que o Estado espanhol enfrentará.

Esta matança brutal que se desenrola sob os nossos olhos, denunciada por milhares de trabalhadores do sector de saúde que protestam a saturação das Unidades de Cuidados Intensivos (UCI), a falta massiva de Equipamentos de Protecção Individual (EPI), de camas hospitalares, de recursos, de planificação e de previsão… isto é o que alenta as emanações morais que o governo do PSOE e do Unidas Podemos nos obriga a engolir a cada dia com as suas declarações públicas. Parafraseando Trotsky, em épocas de crises agudas, de guerras e de revoluções, os social-democratas segregam grandes doses de “moral”, da mesma forma que uma pessoa transpira mais quando está com medo.

Muitas lições de moral, grande grande parte delas transmitidas por altos cargos do exército e da polícia, apelam a que combatamos como “soldados” numa guerra. Mas então os idosos que morrem abandonados em lares, os idosos que têm de esperar durante dias a fio nos corredores das urgências abarrotadas, os milhares de trabalhadores do sector da saúde que arriscam a vida, os trabalhadores dos transportes, dos supermercados e de muitos outros sectores que garantem os serviços básicos sem medidas de seguranças ou protecção, ou os trabalhadores que em casas de 30 ou 40 metros quadrados se vêem aflitos para aguentar o isolamento com os seus filhos, ainda para mais sofrendo os lay-offs e despedimentos... todos estes milhões de trabalhadores que nós somos, são “soldados” do mesmo “exército” que Amancio Ortega, Ana Patricia Botín, Florentino Pérez1 e a plutocracia capitalista que nos trouxe a esta situação?

Sim, é uma guerra. E a classe dominante e os seus políticos utilizam as mesmas mentiras proferidas nas guerras anteriores para ocultar o carácter de classe desta guerra. A burguesia impõe à sociedade os seus fins e interesses, e quem a contradiz é acusado de ser “imoral”. Agora, tal como na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, levanta-se a bandeira da unidade nacional: “Todos unidos remando na mesma direcção”. Mas os mortos nas trincheiras são os nossos, enquanto uma oligarquia de parasitas milionários continua a ditar a política mundial e a criar as condições para que esta catástrofe aumente a cada hora.

O sistema precisa do cimento da moral. E esses doutores “democráticos” do capitalismo que são os dirigentes social-democratas, tanto os tradicionais como os que se colocam no seu flanco esquerdo, não se poupam a contribuir com pás e mais pás cheias desse cimento. E com que propósito? Refrear a consciência dos milhões que sofrem com esta guerra, apregoando o “bem comum” que nos leva à escravatura e à submissão perante a ordem estabelecida.

Quem está a pagar as consequências desta catástrofe, e quem as pagará mais severamente quando a crise de saúde se estabilizar? Como em todas as guerras, nós, a classe trabalhadora, ocupamos neste momento um lugar bem definido: somos carne para canhão, somos quem morre em combate, quem fica inválido ou desempregado e é atingido por calamidades que perseguirão as nossas famílias durante anos.

Pedro Sánchez diz-nos que o pior está para chegar. Já o sabemos, sabemo-lo muito bem. Sublinha ainda que chegaremos ao limite da nossa “capacidade moral”. Também o sabemos, porque somos nós quem sofre com a escassez de recursos na saúde que obriga os nossos médicos a decidir quem vive e quem morre, quem pode entrar na UCI, quem tem direito a ventilador. No entanto, a questão é outra. A questão é: por que razão é que o governo não teve a coragem e a vontade para tomar medidas concretas que respondessem aos interesses da classe trabalhadora, da juventude e dos milhões que actualmente vivem na fronteira da barbárie?

Sánchez afirmou-o assim mesmo: “A sociedade ocidental não estava preparada para sofrer uma pandemia”. Mas a sociedade ocidental é dirigida pelos capitalistas, pelos seus governos e instituições que se preocupam exclusivamente com os seus próprios interesses. Por isso é que não houve preparação, e por isso é que as medidas capitalistas que se estão a adoptar não combatem a catástrofe que se abate sobre toda a sociedade, e ao invés disso salvaguardam a ordem económica e política que nos conduziu até ela.

Sánchez exigiu “moral de vitória e valentia” e, para desculpar a sua gestão, disse-nos que “se fazem entre 15.000 a 20.000 testes diários” no Estado espanhol. Mas desses testes apenas se confirmaram 28.000 contagiados [até ao dia 23 de Março]? É impossível mentir mais descaradamente!

Da mesma forma, o Ministério da Saúde afirma que iniciou a distribuição de 500.000 máscaras para profissionais e 800.000 máscaras para pacientes entre as comunidades autónomas, e que terá adquirido mais de 700 ventiladores e 640.000 testes de diagnóstico PCR. Óptimo. Porém, a pergunta que se coloca é: por que é que decretaram estas medidas quando a crise do coronavírus já se prolonga há mais de um mês no Estado espanhol, e já passaram nove dias desde que proclamaram o Estado de Emergência? Seria assim tão difícil ter em conta os avisos que já há várias semanas faziam dos trabalhadores do sector da saúde e aplicar medidas drásticas?

Durante décadas, tanto o PSOE como o PP aplicaram cortes e privatizações selvagens que tiveram consequências dramáticas, e defenderam-nas em nome do “bem comum”. Diziam-nos que esses cortes eram necessários para que a sociedade funcionasse. A realidade é contrária. Esses cortes encheram os bolsos dos banqueiros que foram resgatados com centenas de milhares de milhões de euros do erário público, e ainda das grandes empresas nacionais e das multinacionais estrangeiras que lucraram com as privatizações massivas de empresas estratégicas, incluindo na saúde e na educação públicas.

As receitas neoliberais eram a quintessência da moral dominante, que todos os partidos do sistema adoptavam sem protestar. O PP de Madrid roubou — segundo a Audiencia Nacional — 1,88 milhões de euros nos sete hospitais públicos de gestão privada, nos quais agora faltam 608 camas. Encerraram uma em cada cinco camas dos hospitais madrilenos (existem quase menos 3.000 do que em 2012), reduziram o pessoal em 3.200 trabalhadores no espaço de dez anos, aumentaram exponencialmente as listas de espera e ainda devem 722,3 milhões às empresas privadas que gerem esses seis hospitais públicos cujos serviços se deterioraram notoriamente. Madrid dedica 3,7% do seu PIB a despesas de saúde — muito abaixo da média estatal, que é de 5,5% — enquanto outros países como a Alemanha ou a França dedica mais de 8%. Poderia ser mais evidente a relação entre estes gigantescos cortes e a elevada mortalidade da pandemia em Madrid?

O que o PP fez em Madrid também se pode aplicar à Catalunha, ao País Basco ou a Andaluzia e aos restantes territórios. Não há variações substanciais: as agressões aos serviços sociais — em nome da moral do mercado livre — foram sagradas para todos os partidos que suportam o capitalismo. Em qualquer caso, alguns faziam isto absolutamente convencidos e com a arrogância típica da sua classe, enquanto outros tentavam marcarar estas medidas como “excepcionais” e impostas pela crise.

Em todo o planeta está a travar-se uma guerra de classes. Quem duvida disto só vai ter de esperar para ver o que acontece nas próximas semanas. As intervenções constantes de oficiais militares e policiais a fazer discursos marciais e “morais” à população não são por acaso. Sánchez cede, a cada dia que passa, mais protagonismo aos fardados, porque está disposto a seguir as instruções da classe dominante até ao final. E isto é assunto muito sério.

Acostumarmo-nos às patrulhas conjuntas de militares e polícias, prepara psicologicamente a população para que amanhã, em nome da excepcionalidade da situação, se proíbam manifestações e greves, reprimindo os nossos direitos democráticos quando nos organizarmos e sairmos às ruas. Eles estão conscientemente a preparar-se. Nós não podemos ser apanhados desprevenidos, temos de fazer exactamente o mesmo.

Luta de classes como nunca

A crise actual não é apenas de saúde. Assistimos ao colapso do sistema capitalista, a uma depressão global muito mais devastadora que o crash de 1929, ao estilhaçar de todas as contradições económicas, sociais e políticas que se foram acumulando durante décadas de ataques aos serviços público, cortes, desemprego em massa, empobrecimento e desigualdade.

A “unidade nacional” que apregoa o governo é por tudo isto uma completa falácia. Os capitalistas não têm intenção de fazer qualquer sacrifício. Pelo contrário, para salvar os seus lucros vão depositar sobre os recursos públicos o peso devastador desta hecatombe. Já o podemos ver na forma de lay-offs em empresas e multinacionais que obtiveram em 2018 mais de meio bilião de euros de lucro. Assim como com os contratos milionários que muitas delas estão a assinar com o governo para produzir material médico ou atender doentes em hotéis “medicalizados”. Enquanto isso, alas inteiras de hospitais públicos permanecem lotadas e as residências dos nossos idosos são abandonadas à sua sorte e convertidas em autênticos matadouros.

A Pablo Iglesias, Alberto Garzón e Pedro Sánchez, os aplausos da CEOE2 e do PP ao chamado “escudo social” deviam causar algum questionamento. Em vez de trazer os militares para as ruas, deviam passar à acção com medidas que defendam os trabalhadores. Deviam paralisar toda a actividade produtiva que não seja essencial. Não podem prolongar o Estado de Emergência por mais 15 dias para evitar a propagação de contágios e ao mesmo tempo permitir que milhões de nós continuemos a trabalhar, apenas para encher os bolsos dos empresários.

O governo do Estado espanhol foi eleito por milhões de trabalhadores e jovens. Actuar em defesa da população, nacionalizando a banca e as empresas estratégicas — muitas delas eram do Estado e foram privatizadas — para resolver esta emergência sanitária, social e laboral! Por todo o mundo, como no Estado espanhol, as políticas capitalistas fracassaram por completo. Se continuarem a aplicá-las, a catástrofe será ainda maior. Dinheiro e riqueza há mais que suficiente — produzimo-la nós, os trabalhadores —, mas mantém-se nas mãos de uma minoria que pouco se importa com a vida de milhões de pessoas.

Nós, trabalhadores, temos que passar à acção directa, a partir de baixo. Apenas a classe trabalhadora tem a capacidade de enfrentar estas circunstâncias com êxito. Devemos exigir aos nossos sindicatos que paralisem toda a actividade não essencial, e apenas o poderemos conseguir impulsionando acções nos centros de trabalho. Devemos organizar assembleias e votar democraticamente a paralisação da produção e da actividade, como já o fazem muitos companheiros e companheiras em empresas do sector automóvel e de outros sectores [no Estado espanhol].

Os comités trabalhadores de todos os sectores industriais, juntamente com os delegados sindicais e as bases, têm de tomar o controlo para converter a produção e fabricar imediamente todo o material necessário: desde ventiladores — que se poderiam fabricar rapidamente na SEAT, na Volkswagen, Citroen e Opel, com as cadeias de montagem a adaptar-se facilmente — a batas e máscaras — em empresas têxteis, começando pela Inditex — e todo o equipamento de saúde urgente.

Há que mobilizar todos os recursos financeiros e produtivos, que devem ser nacionalizados imediatamente com o controlo de assembleias de trabalhadores e comités votados e constituídos para esse fim, em coordenação com os trabalhadores de limpeza dos hospitais.

A classe trabalhadora sabe muito bem do que necessita, como produzi-lo e como distribuir esses recursos com eficácia. Na saúde pública, os médicos, os enfermeiros, o pessoal de manutenção, os trabalhadores da limpeza, todos devemos criar comités de controlo e gestão dos recursos e corrigir quaisquer decisões contraproducentes dos gestores.

Os mais altos responsáveis da política mundial parecem miúdos a correr pela encosta de um vulcão antes de uma erupção. Os grandes poderes capitalistas — que estão mais divididos do que nunca — não calculam os efeitos desta catástrofe na consciência das massas. Anos de privatizações e empobrecimento generalizados geraram uma raiva colectiva que não deixa de crescer e que se fará ainda mais explosiva.

Só a socialização do meios de produção pode resolver o colapso económico e a barbárie que se desenvolve diante dos nossos olhos. As forças produtivas mundiais necessitam de um novo sistema social que as organize e planifique harmoniosamente e democraticamente. Mas o socialismo não cai como se fosse fruta madura. O socialismo só pode ser resultado da intervenção consciente da classe trabalhadora e da juventude em acção.

Através da sua experiência — e um grama desta terrível experiência é mais valioso do que uma tonelada de teoria para as grandes massas — os trabalhadores, à frentes dos oprimidos, serão capazes de tirar as conclusões políticas e práticas oportunas. Precisamos de construir um partido revolucionário capaz de executar esta tarefa com êxito: os expropriadores serão expropriados de uma vez por todas, e a riqueza gerada pelo trabalho assalariado será posta à disposição da autêntica justiça social. A vitória do socialismo será também a vitória da humanidade.


Notas:

1. Amancio Ortega é um multimilionário espanhol, presidente da Inditex, a empresa detentora das lojas Zara. Ana Patricia Botín é outra multimilionária espanhola, actualmente presidente do Grupo Santander e membro do conselho de administração da Coca-Cola. Florentino Pérez é igualmente um multimilionário, presidente do clube desportivo Real Madrid e CEO do Grupo ACS.

2. Confederación Española de Organizaciones Empresariales.

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