A queda repentina do regime de Al-Assad às mãos das milícias jihadistas HTS, financiadas, armadas e apoiadas pela Turquia e pelos EUA, abalou o tabuleiro de xadrez do Médio Oriente e desferiu um duro golpe no Irão, na Rússia e na China. A possibilidade deste país-chave, acometido por uma guerra civil patrocinada pelo Ocidente, entrar na órbita de influência de Washington, Ancara e Tel Aviv sublinha o carácter feroz da batalha pela hegemonia mundial.1

O branqueamento mediático que está a ter lugar na Síria é claro. Numa operação de propaganda concebida pela CIA e pelas restantes agências de inteligência ocidentais, contando com o apoio ativo dos meios de comunicação social que puseram todos os seus truques de manipulação ao serviço destas últimas, as antigas milícias fundamentalistas que se cindiram da Al-Qaeda e que até há bem pouco tempo faziam parte da lista de organizações terroristas dos Estados Unidos e da UE, passaram a ser elogiadas como forças "insurgentes" que libertaram a Síria de uma ditadura feroz e agora estão dispostas a enveredar pelo caminho da normalização política.

Desta forma, o líder do HTS, Abu Mohammed al-Julani, mudou a sua estética fundamentalista para se reciclar numa espécie de guerrilheiro da liberdade. Veste trajes ocidentais sem o menor problema, dá entrevistas à CNN, à BBC e a todo o tipo de agências “confiáveis”, em que propõe um roteiro de moderação e procura de consenso: desde a convocação de uma "Assembleia Constituinte" e a elaboração de uma nova Constituição, até à formação de um exército que respeite a diversidade religiosa do país e onde todas as minorias nacionais estejam representadas.

Um conto de fadas para o consumo da opinião pública internacional, a fim de ocultar o que realmente está a acontecer nos bastidores: a divisão territorial do país em diferentes zonas de influência sob o controle dos EUA, Turquia e Israel. A potência sionista e colonialista realizou centenas de operações militares para destruir 80% das capacidades militares sírias, consolidar a sua ocupação ilegal dos estratégicos Montes Golã e assegurar o controlo de uma faixa de território dentro das fronteiras sírias. 

Em suma, trata-se e um resultado profundamente reacionário que nada tem que ver com a primavera Árabe ou qualquer indício de revolução. É insano que haja uma tentativa de considerar os acontecimentos atuais como progressistas, por muito que condenemos a sangrenta ditadura de Al-Assad e o seu regime totalitário. Pensar que o avanço dos EUA, de Israel ou da Turquia é algo que devemos celebrar não faz o menor sentido. É uma abominação completa do ponto de vista do comunismo revolucionário.

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O branqueamento mediático que está a ter lugar na Síria é claro. As antigas milícias fundamentalistas passaram a ser elogiadas como forças "insurgentes" que libertaram a Síria de uma ditadura feroz.

O grande jogo imperialista no Médio Oriente

Obviamente também há sectores da esquerda provenientes do naufrágio do estalinismo que não fazem mais do que lamentar a queda de Al-Assad, evitando aprofundar as causas do colapso do seu regime e o papel que os seus aliados e patrocinadores internacionais jogaram. Ou melhor, que não jogaram, pois é mais do que evidente que nem Moscovo nem Pequim mexeram um único dedo para o manter no poder. E este facto leva-nos a fazer outras considerações fundamentais, sem as quais é muito difícil compreender o que aconteceu.

A queda do regime sírio tornou evidente que o papel de potências como a China, a Rússia ou o Irão não é ajudar os povos a libertarem-se. Pelo contrário, a podridão e a queda do regime sírio são tidas como um mal inevitável. Um colapso que deita por terra o discurso de uma parte da esquerda estalinista, e de algum grupo que se diz marxista, sobre o chamado "eixo de resistência", que caracterizam como anti-imperialista e até revolucionário, e que apoiam acriticamente, porque, dizem, neste contexto geopolítico representa uma alternativa para derrotar o sionismo e o imperialismo estado-unidense.

As tentativas de embelezar os interesses imperialistas do capitalismo de Estado na China e na Rússia sofreram um duro revés na Síria, tal como a demagogia dos mullahs em Teerão também se viu muito comprometida.

Por trás da burguesia russa e chinesa, dos grandes monopólios que determinam as relações de produção em ambos os países, dos privilégios de uma casta burocrática, política e militar, que controla com mão de ferro o aparelho de Estado em Moscovo e Pequim, não há o menor indício de estender ou propiciar a revolução socialista internacional. Há apenas interesses económicos e geoestratégicos para o domínio das matérias-primas essenciais, da tecnologia, dos mercados emergentes do agroalimentar, da mineração, dos carros elétricos e muitos outros, e, claro, do sector financeiro, das rotas comerciais e das cadeias globais de produção e abastecimento.

Ou seja, nas decisões de ambos as potências há apenas um cálculo frio baseado em objetivos económicos e políticos. E dados os crimes comprovados do imperialismoestado-unidense, a sua determinação em invadir países e reduzi-los a cinzas, em apoiar golpes militares e ditaduras sangrentas, em saquear continentes inteiros e escravizá-los economicamente, ou em tecer uma aliança criminosa com a entidade sionista para perpetrar um genocídio sem paralelo contra o povo palestiniano... o uso da retórica anti-imperialista é também uma arma política que tanto Putin como Xi Jinping sabem usar exaustivamente e da qual obviamente tiram partido.

Quando contemplamos o martírio do povo palestiniano, o indiscutível heroísmo dos milicianos palestinianos e libaneses, muitos deles nas fileiras do Hamas ou do Hezbollah, quando compreendemos que o legítimo direito à autodefesa armada contra o ocupante sionista é indiscutível, torna-se ainda mais necessário olhar a realidade de frente se queremos tirar as conclusões certas.

Há um ano, quando eclodiu o genocídio em Gaza, ninguém poderia imaginar que o Governo de Netanyahu pudesse ir tão longe. Hoje assistimos a um holocausto com mais de 50.000 assassinatos, a maioria crianças, mulheres e idosos, número que entre vítimas diretas e indiretas sobe para 200.000 segundo a revista The Lancet. Como se não bastasse, os neonazis supremacistas que dirigem o governo de Telavive, depois de reduzirem 80% das casas e quase todas as infraestruturas hospitalares a escombros, destruindo o abastecimento de água e qualquer serviço público digno desse nome, impuseram um embargo total à ajuda humanitária para gerar uma fome devastadora.

Semearam o terror nas semanas da durou a sua intervenção militar no Líbano, causando 5.000 mortos e 20.000 feridos, destruindo milhares de casas e obrigando à deslocação interna de um milhão de pessoas, enquanto deram um duro golpe no Hezbollah, decapitando a sua liderança e fazendo um atentado terrorista contra centenas dos seus combatentes.

Mas esta barbárie não é o resultado da loucura de Netanyahu e dos seus sócios nazissionistas, como alguns afirmam de forma simplista, mas parte de uma estratégia em que o imperialismo estado-unidense tem desempenhado um papel decisivo. A luta contra o seu próprio declínio e para continuar a manter o seu estatuto de potência dominante explica o apoio criminoso da Administração Biden a este genocídio. E com Trump, as perspetivas permanecem as mesmas. Nada do que aconteceu em Gaza, na Cisjordânia ou no Líbano teria sido possível sem o firme apoio da Casa Branca.

E apesar desta destruição, da transmissão ao vivo e em direto de um genocídio, o povo palestiniano e o povo libanês foram abandonados à sua sorte. Em primeiro lugar, pelos governos árabes corruptos do Egito, da Jordânia ou das monarquias absolutas do Golfo. Também pela Turquia de Erdogan, elogiada por alguns à esquerda como defensora do povo palestiniano pelas suas declarações contra Netanyahu e o Estado sionista, mas que agora desempenhou um papel decisivo em conivência com os EUA e Israel para dar o golpe final no regime sírio e massacrar o povo curdo.

Em segundo lugar, nem a China, nem a Rússia, nem a ditadura dos mullahs no Irão, para além de proclamações ou discursos, tomaram medidas decisivas para pôr termo ao massacre em Gaza ou para conter os supremacistas nazissionistas.

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As tentativas de embelezar os interesses imperialistas do capitalismo de Estado na China e na Rússia sofreram um duro revés na Síria, tal como a demagogia dos mullahs em Teerão também foi severamente comprometida.

Nestes meses de agressão sem precedentes contra o povo palestiniano, – com exceção dos Houthis no Iémen – as forças que compõem o chamado "eixo de resistência" mantiveram uma surpreendente contenção no terreno, mesmo quando sofreram duras agressões por parte de Israel. Nenhum apelo à mobilização popular para derrubar os regimes reacionários do mundo árabe. Nenhuma tentativa séria de confiar na luta de classes para modificar a correlação de forças. Nenhum boicote económico contra Israel por parte destas potências ditas "anti-imperialistas", nenhuma rutura de relações diplomáticas com Telavive, nenhuma medida para cessar trocas comerciais.

O que está por detrás desta política calculada? As razões são múltiplas, algumas de natureza interna, mas a primeira e mais relevante é o grande jogo entre as grandes potências imperialistas, entre os EUA e a China, numa área tão decisiva como o Médio Oriente, onde se acumulam as maiores reservas mundiais de petróleo e gás.

Como Lenin desenvolveu no seu brilhante texto sobre o imperialismo, as grandes potências dividem o mundo numa luta até a morte através da violência e da força, cuja expressão máxima é a guerra. Não é o interesse dos povos e das suas necessidades, nem a democracia ou os direitos humanos que move a sua ação, mas sim o controlo dos recursos naturais, do comércio e das áreas de importância geoestratégica, independentemente das consequências que possam acarretar para a classe operária e os povos oprimidos.

China e Rússia mantêm relações com o Estado sionista

É evidente que os regimes capitalistas da China e da Rússia não têm o historial de crimes contra a humanidade que acumula o imperialismo ocidental, mas a barbárie desencadeada contra o povo palestiniano fez cair a máscara do seu papel como potências em que os oprimidos podem confiar.

Todos os seus discursos e propaganda contra a agressão sionista, e sobre a atitude cúmplice dos EUA e do imperialismo ocidental, permaneceram apenas isso, meras palavras que foram negadas na prática. O sangue derramado em Gaza não os impediu de manter as suas relações militares, diplomáticas e económicas com o governo supremacista de Tel Aviv.

O caso da China é paradigmático enquanto segundo parceiro comercial do Estado sionista. As relações de Xi Jinping com o governo de Netanyahu continuaram a aprofundar-se. O comércio bilateral aumentou 57% entre 2019 e 2022, atingindo um valor recorde de 24.500 milhões de dólares no ano passado, e tornando-se o seu primeiro parceiro comercial do ponto de vista das importações em 2021.2

Com uma influência tão significativa na economia israelita, Xi Jinping e o seu governo podiam ter feito muito mais do que discursos, votar resoluções da ONU ou aparecer como mediador no conflito. Mas são governantes de uma potência imperialista e a sua única preocupação é garantir os interesses da sua própria burguesia.

E assim o fizeram: a participação de empresas chinesas no porto estratégico de Haifa, a liderança chinesa na expansão do porto de Ashdod, a construção do metro de Tel Aviv, bem como a colaboração em inúmeros projetos tecnológicos, especialmente num sector tão decisivo como a vigilância e a ciberespionagem3, estão acima da causa palestiniana. E no caso da Rússia, apesar das relações económicas muito mais modestas, acontece essencialmente o mesmo.

A China e a Rússia estão a patrocinar numerosas reuniões das diferentes fações palestinianas, a fim de preparar o terreno para um acordo em Gaza com a entidade sionista. A última realizou-se em Pequim e foi acordado reunir todas as organizações, incluindo o Hamas, sob a égide da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), ou seja, da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP), a fim de promover um governo desta última na Faixa de Gaza, na qual o Hamas ocupe um lugar residual e subordinado. Uma estratégia que poderá culminar no restabelecimento das relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e Israel.

Mas esta solução seria um novo aborto que não impediria Israel de controlar de forma absoluta os territórios palestinianos que já ocupa militarmente. O desprezível papel da ANP na Cisjordânia, agindo como subcontratante político e policial dos vários governos sionistas, e a sua subordinação aos ditames de Washington na sua estratégia fraudulenta de dois Estados, repetir-se-ia novamente, mas desta vez em condições de vassalagem ainda mais dilacerantes. É esta a solução oferecida por Pequim e Moscovo à causa nacional palestiniana? Será este o seu "internacionalismo" e o seu "papel de liderança" na luta contra a ocupação sionista, o genocídio e a agressão dos EUA no Médio Oriente?

Tanto a burguesia russa como a chinesa estão a jogar à mais hipócrita diplomacia, propondo que a ANP conduza uma paz tão sangrenta e opressiva como a guerra de extermínio que o povo palestiniano sofreu. É uma proposta para aceitar uma derrota que estes poderes favoreceram com a sua inação política. Tal como quando apoiaram e pressionaram a esquerda palestiniana e as suas fações armadas, e toda a esquerda árabe, a apoiar os Acordos de Oslo, o que resultou num desastre completo para o povo palestiniano.

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Tanto a burguesia russa como a chinesa estão a jogar à mais hipócrita diplomacia, propondo que a ANP conduza uma paz tão sangrenta e opressiva como a guerra de extermínio que o povo palestiniano sofreu.

O colapso do regime de Al-Assad

O segundo fator que explica essa contenção por parte dos atores que compõem o "eixo de resistência" são suas próprias fraquezas e contradições internas. O melhor exemplo disso foi o que aconteceu na Síria, com um regime podre que se desmoronou em menos de uma semana e que se revelou desprovido de qualquer tipo de apoio social.

É evidente que tanto o imperialismo estado-unidense como o sionismo não pararam de conspirar contra o regime de Al-Assad e que aproveitaram e alimentaram a brutal guerra civil desencadeada no país para tentar derrubar um dos seus principais adversários. A criminosa intervenção do imperialismo estado-unidense no Médio Oriente, no Iraque, na Líbia ou na própria Síria e, sobretudo, as suas manobras para inviabilizar os processos revolucionários desencadeados com a primavera Árabe, têm sido uma realidade mas não são suficientes para explicar o completo colapso do regime.

Alguns sectores da esquerda estalinista continuaram a enaltecer o regime de Assad como uma continuação do chamado socialismo pan-árabe. No entanto, esta posição há muito que deixou de fazer sentido. A eclosão da primavera Árabe na Síria, no Egito, na Tunísia ou na Líbia não foi o resultado de qualquer conspiração imperialista, mas do colapso das condições de vida da população. Foram revoltas revolucionárias contra governos capitalistas autoritários que aplicaram duras políticas de austeridade e privatização, e foram lideradas por uma vanguarda de trabalhadores e jovens militantes.

Bashar Al-Assad, que herdou o regime do seu pai, Hafez Al-Assad, no mais puro estilo de uma monarquia absoluta, acelerou desde que chegou ao poder as negociações com o FMI e o Banco Mundial para aprofundar as privatizações de empresas nacionalizadas, desmantelar os serviços públicos e acabar com os subsídios que ainda existiam para produtos básicos ou acesso à habitação. Políticas abertamente neoliberais que multiplicaram a pobreza extrema, que atingiu 30% da população, e aumentaram as desigualdades ao enriquecer a corte de parentes, burocratas e empresários em torno de Al-Assad e dos seus negócios lucrativos com o Ocidente.

Se é verdade que nas décadas de 1950 e 1960 os processos revolucionários no mundo árabe arrancaram importantes conquistas em países como o Egito, o Iraque ou a Síria, todos eles foram finalmente descarrilados e alguns dos regimes resultantes foram influenciados pela burocracia estalinista em Moscovo, a mesma que no início dos anos 1990 liderou o desmantelamento da URSS e restabeleceu o capitalismo na Rússia, tornando-se na nova burguesia russa.

Hafez Al-Assad (pai), tal como Nasser no Egito, chegou ao poder em 1970 com um golpe de Estado que travou o processo revolucionário que se desenrolava durante a década de 1960 na Síria, e que culminara na nacionalização de grande parte da economia, com uma profunda reforma agrária que expropriou os latifundiários e com a declaração do país como socialista.

Após o golpe, Hafez Al-Assad consolidou um regime bonapartista que, embora no início tenha mantido algumas das conquistas revolucionárias, como empresas nacionalizadas, rapidamente eliminou os sectores de esquerda tanto no partido Baath como no Partido Comunista e nos sindicatos. Isto implicou distanciar-se do movimento armado palestiniano, negar qualquer ajuda à OLP durante a revolta revolucionária do Setembro Negro na Jordânia em 1970/1971 ou, mais tarde, em 1976, atacar militarmente campos da OLP no Líbano em conluio com Israel.

No plano económico defendeu progressivamente o abandono do socialismo de Estado em favor de uma economia mista e em defesa da propriedade privada, restabelecendo laços com a burguesia comercial sunita de Damasco. Uma política que envolveu a liberalização progressiva da economia síria, cujo impulso definitivo foi dado a partir de 1985 sob a direção do tecnocrata Muhammad al-Imadi como Ministro da Economia.

Apesar da aura revolucionária que alguns tentam dar ao regime sírio derrubado, tal como à Rússia de Putin ou à China de Xi Jinping, a realidade é que há já décadas nos encontramos perante uma ditadura bonapartista que recorre à repressão contra o seu povo, e cuja camarilha dirigente fez acordos multimilionários com as burguesias árabes. Nada poderia estar mais longe de qualquer ideia de socialismo.

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Hafez Al-Assad (pai), tal como Nasser no Egito, chegou ao poder em 1970 com um golpe de Estado que travou o processo revolucionário que se desenrolava durante os anos 60 na Síria.

Fundamentalismo islâmico, capitalismo e socialismo

Os restantes membros do "eixo da resistência", tanto o regime dos mullahs como as organizações fundamentalistas Hezbollah e Hamas, mostraram nestes acontecimentos quão longe estão de ser uma alternativa revolucionária e anti-imperialista consistente. Qualquer ideia de apresentá-los como tal é uma caricatura que não resiste a uma análise séria.

Um dos argumentos usados para defender o regime de Al-Assad tem sido apresentá-lo como uma alternativa "laica". Mas esta abordagem esconde o facto da Constituição síria de 1973 consagrar a primazia do Islão e de durante décadas ter mantido uma aliança com o fundamentalismo xiita encabeçado pela ditadura capitalista dos mullahs, que deixou claro o seu carácter anticomunista em dezenas de episódios de repressão sangrenta contra o movimento operário, os sindicatos, as mulheres que lutam pelos seus direitos, ou as organizações militantes de esquerda.4

E algo muito semelhante pode ser dito sobre o papel político do Hezbollah no Líbano. Em 2019, perante o colapso da economia e do sistema bancário, e perante uma oligarquia sectária corrupta que não parou de saquear o país e da qual faz parte a liderança do Hezbollah, teve lugar uma revolta revolucionária, com greves gerais, barricadas nas ruas e confrontos tanto com a polícia como com milícias fundamentalistas.

Esta crise revolucionária de 20195 expôs centenas de milhares de trabalhadores e jovens libaneses ao papel pró-capitalista do Hezbollah na garantia da estabilidade da elite plutocrata que domina o país. Isto não é alheio à sua dependência dos mullahs iranianos, que nunca hesitaram em trabalhar arduamente para impedir qualquer ameaça revolucionária no Médio Oriente que pudesse contagiar a sua população. Sem dúvida, a sua perda de prestígio entre as massas libanesas após a investida militar do governo sionista foi um aspeto que tanto o imperialismo estado-unidense quanto Netanyahu levaram em conta para atacar na Síria.

O Irão é uma potência regional com ambições imperialistas, naturalmente em menor escala do que outras potências com maior peso a operar na região. Mas o seu papel nos desenvolvimentos políticos e militares que abalaram o Iraque, o Líbano ou os territórios ocupados em Gaza e na Cisjordânia é inquestionável. A burguesia iraniana tem a sua própria agenda económica e militar e não está disposta a ser um espectador passivo enquanto outras potências regionais como a Turquia continuam a sua expansão.

A atitude de Teerão nestes acontecimentos revela dois factos. O primeiro é que a sua dependência económica da China aumentou nos últimos anos, o que levou a que as suas decisões em relação a Israel fossem altamente condicionadas pelos interesses de Pequim. A contenção do governo iraniano é explicada pela rejeição total da China a uma guerra regional que poderia afetar negativamente os múltiplos laços e acordos económicos que assinou em toda a região e que poderia desencadear uma recessão global.

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>O regime dos mullahs e as organizações fundamentalistas Hezbollah e Hamas mostraram nestes acontecimentos quão longe estão de ser uma alternativa revolucionária e anti-imperialista consistente. Apresentá-los como tal é uma caricatura.

E esta razão é também complementada por outra. A ditadura dos mullahs não quer que o seu envolvimento numa guerra com Israel alimente o descontentamento e a raiva populares dentro das suas fronteiras. É muito significativo que as mobilizações pró-palestinas no Irão tenham sido muito mais limitadas do que em outros países vizinhos. A identificação do Hamas com o regime teocrático não foi vista com simpatia por uma parte significativa da classe trabalhadora e da juventude que sofre uma repressão implacável.

Como Lenin insistiu em numerosos escritos, e como era a prática do bolchevismo nos seus heróicos anos antes da degeneração estalinista, pensar que a libertação dos povos oprimidos pode vir de mãos dadas com alianças com potências imperialistas secundárias, ou que estão em conflito com as potências imperialistas dominantes numa determinada fase histórica, é uma traição aberta ao socialismo e conduz inevitavelmente à derrota.

A história está cheia de exemplos de como os imperialistas podem apelar aos mais altos sentimentos dos povos oprimidos para os seus objetivos políticos e económicos. Os povos balcânicos sabem-no muito bem, ao ponto de terem sido usados por ambos os lados dos bandidos imperialistas como peões no grande jogo que levou à Primeira Guerra Mundial. O imperialismo britânico soube fazer o mesmo durante a luta pela independência da Índia, provocando uma sangrenta guerra civil de linhas religiosas e terminando na participação do país e na formação do Paquistão. E agora o povo curdo em Rojava está a sofrer a mesma amarga experiência depois dos pactos militares e políticos dos seus dirigentes com o imperialismo estado-unidense.

A uma escala superior isso aconteceu com o nascimento do Estado sionista de Israel, após a terrível experiência do holocausto judeu nas mãos dos nazis. Em 1948, a grande maioria da esquerda internacional, social-democratas e estalinistas, era a favor da fundação do Estado de Israel sob o patrocínio da URSS de Stalin. De facto, Ben-Gurion sempre reconheceu o papel essencial desempenhado pelas armas fornecidas pela URSS e pela Checoslováquia na primeira guerra israelo-árabe que culminou com a Nakba.6 Vemos agora as terríveis consequências desses erros políticos.

A única forma de varrer a opressão sionista e imperialista no Médio Oriente é construir uma verdadeira solidariedade de classe internacionalista, defendendo um programa socialista que vise as burguesias árabes corruptas, ligadas por milhares de negócios ao sionismo, aos EUA e à UE, mas também as forças fundamentalistas que usam a retórica anti-imperialista e que nos seus próprios países defendem um capitalismo igualmente selvagem.

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A escolha é clara: nenhuma confiança no imperialismo, nem nas potências em decadência com um rasto de crimes por trás, nem naquelas que agora disputam a supremacia. Há que defender uma política de independência de classe.

Uma alternativa comunista que nunca renuncie à autodefesa armada, mas que subordine a legítima ação das armas a uma política revolucionária assente na mobilização de massas, greves gerais, comités de ação e insurreição, e que una todos os oprimidos acima de quaisquer diferenças étnicas, nacionais ou religiosas no objetivo de derrotar e expropriar o inimigo comum:  as burguesias locais e os seus senhores imperialistas. Não será fácil, mas todo o chamado pragmatismo que nos foi vendido acabou num rio de sangue para nós, tanto na Palestina como na Síria.

A escolha é clara: nenhuma confiança no imperialismo, nem nas potências em decadência com um rasto de crimes por trás, nem naquelas que agora disputam a supremacia. Por uma política de independência de classe, pelo derrube do Estado sionista supremacista, pelo fim dos regimes capitalistas em toda a região, pela libertação total do povo palestino numa Federação Socialista do Oriente Médio.


Notas:

1. Uma primeira análise dos acontecimentos na Síria: A queda de al-Assad na Síria. Uma nova fase na luta pela hegemonia mundial

2.La intrincada postura de China respecto al conflicto palestino-israelí

3.China’s Ties With Israel Are Hindering the Palestinian Struggle for Freedom

4.O regime iraniano esmagou sem cerimónia sucessivas revoltas de trabalhadores, jovens e mulheres contra a repressão e por condições de vida dignas face à corrupção e aos privilégios desenfreados da elite clerical capitalista que domina o país há mais de 40 anos. A mais recente em 2022, face ao assassinato selvagem da jovem curda Mahsa Amini pela polícia moral por usar um "hijab inapropriado".

5.Revolución en Líbano. Las masas ponen en jaque al régimen

6.O genocídio sionista em Gaza e a questão nacional palestiniana

JORNAL DA ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA

JORNAL DA LIVRES E COMBATIVAS

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