Perante um cenário de crescente degradação e elitização do ensino público, cujas consequências recaem sobretudo sobre as famílias de classe trabalhadora, os estudantes devem organizar-se democraticamente e construir organizações capazes de responder eficazmente à insatisfação generalizada, direcionando-a para vitórias significativas que despertem a força do movimento estudantil — que, em conjunto com o movimento dos trabalhadores, já provou conseguir transformar drasticamente o curso da nossa vida em sociedade.

Um orçamento insuficiente

Como aponta o documento “Estado da Educação: 2015”, da autoria do Conselho Nacional de Educação, o período de 2005 a 2015 foi caracterizado por uma diminuição generalizada da despesa pública para a educação e por um aumento da despesa pública orientada para o ensino particular e cooperativo. Deu-se por isso um desinvestimento claro no ensino público, uma desresponsabilização do Estado face aos estudantes que dele dependem e à qualidade e condições da sua educação.

Essa desresponsabilização tem reflexo no aumento constante do valor das propinas do ensino superior e que se verifica desde a sua implementação nos anos 90, atingindo agora mais de mil euros. O ensino superior público em Portugal é hoje um dos mais caros da Europa para os estudantes e para as suas famílias, relativamente ao valor dos seus rendimentos. Segundo dados recentes do INE, as despesas das famílias com a educação aumentaram 75% nos últimos 10 anos. As propinas são um impedimento ao acesso de milhares de estudantes ao ensino superior e, por isso, um dos principais factores de reprodução de desigualdades sociais na educação.

O actual Governo Socialista, apoiado pelo Bloco de Esquerda e pelo Partido Comunista Português, defende ser responsável por uma reversão da tendência de desinvestimento — que se manifesta no aumento da previsão orçamental e estimativa de execução do Orçamento para a Educação de 2016, assim como nos montantes apresentados para o Orçamento de 2017. No entanto, esta reversão — que é ainda inferior aos valores de 2012 — é claramente insuficiente para permitir um funcionamento das instituições de ensino que vá ao encontro das necessidades e interesses de estudantes, funcionários e professores.

E aliada a esta insuficiência está uma política para o ensino superior de privatização que impede a gestão democrática por quem lá trabalha e estuda, sobretudo através de mecanismos como o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior e do Regime Fundacional — sendo que este último afectou, nos últimos sete anos, algumas das principais universidades do país, entre elas a Universidade do Minho, a Universidade do Porto, o ISCTE, a Universidade de Aveiro e a Universidade Nova de Lisboa. Em breve, caso a união do movimento estudantil e das organizações sindicais não trave o processo, também a Universidade de Coimbra passará por esta transformação, responsável pela precarização generalizada dos postos de trabalho e pelo reforço da intervenção de interesses privados na gestão das instituições.

Ir além do congelamento: pela abolição total das propinas

Nos acordos assinados para o apoio parlamentar ao Governo do PS, a questão das propinas tem sido omitida. No entanto, é importante referir que os grupos parlamentares dos principais partidos de esquerda tornaram possível, através de uma proposta de alteração ao Orçamento de 2016, que o PS fizesse cedências através do congelamento dos valores máximos e mínimos das propinas no ensino superior. Segundo a Lei do Financiamento do Ensino Superior, ambos os valores iriam subir de acordo com a mudança na taxa de inflação e no salário mínimo. No entanto, esta actualização foi suspensa.

Mas as cedências da parte do Partido Socialista serão sempre limitadas, claramente insuficientes e temporárias, como é evidenciado pela rejeição do PS face aos projectos de lei apresentados pelo PCP e pelo BE, votados no parlamento a 23 de Setembro deste ano, prevendo a manutenção do valor das propinas no primeiro, segundo e terceiro ciclos de estudos superiores.

Tanto o Partido Comunista como o Bloco, assim como a Juventude Comunista Portuguesa e a Coordenadora de Jovens do Bloco de Esquerda, defendem publicamente a abolição das propinas. Para que a esquerda não só consiga a manutenção de um valor de propinas que é já insuportável para milhares de estudantes de classe trabalhadora, mas contribua também para a implementação de um ensino gratuito e de qualidade — aliada a um maior investimento estatal —, é necessária a intervenção de um movimento estudantil amplo, democrático e combativo, unindo a esquerda pela base, coordenado nacionalmente, com um plano político claro e aliado a organizações de trabalhadores.

Construir uma organização democrática dos estudantes

O movimento estudantil anti-propinas Fees Must Fall, na África do Sul, iniciado no final do ano de 2015, é um exemplo da força colectiva dos estudantes organizados e apoiados pelos trabalhadores, tendo conseguido reverter em pouco tempo o anúncio do Governo relativo ao aumento das propinas para o ano de 2016. Este é um dos exemplos recentes a partir do quais podemos retirar lições sobre como concretizar uma luta vitoriosa dos estudantes em Portugal, retrocedendo no que são as actuais políticas de degradação e elitização do sistema público de educação universitário.

Trevor Shaku, um dos dirigentes da luta estudantil anti-propinas na África do Sul e da secção sul africana do Comité por uma Internacional dos Trabalhadores, no seu artigo “Fees Must Fall: Lições do movimento anti-propinas”, publicado no blog do Socialismo Revolucionário, defende a importância central e decisiva de um programa claro e de uma liderança eleita e reconhecida pelos membros das organizações estudantis. É necessário orientar a iniciativa dos estudantes nesse sentido para que seja possível, em momentos de marés revolucionárias, actuar rápida e eficazmente, canalizando o descontentamento para vitórias significativas que coloquem em causa o próprio modo de produção capitalista marcado pela instrumentalização do sistema de educação para os interesses das classes dominantes — e não dos trabalhadores e estudantes de classe trabalhadora.

Planear a concretização de constantes acções de protesto como um fim em si mesmo não é suficiente e tem, inclusivamente, consequências nefastas de desmobilização e de descrença face às organizações políticas. Qualquer uma dessas acções deve ser utilizada para alargar cada vez mais o movimento estudantil a camadas antes despolitizadas e a regiões/campus sem história e tradição de luta, assim como para consolidar o movimento segundo objectivos concretos e democraticamente definidos que ficam assim cada vez mais próximos da sua consumação.

A realização de greves de estudantes ou de ocupações participadas — os instrumentos mais eficazes da luta estudantil, como se pode verificar pelos exemplos recentes do Chile e do Brasil — parece hoje inconcebível em Portugal. Tal não é possível somente com protestos espontâneos e isolados. Precisamos de organizações estudantis que se empenhem na formação das condições para uma greve ou ocupação de estudantes e que, dessa forma, abram o caminho para condições de maior igualdade entre os jovens.

Essas organizações precisam de instrumentos de agitação e propaganda que alcancem o maior número de estudantes, que contribuam para um enraizamento da luta no dia-a-dia dos estudantes. Uma publicação periódica é fundamental para estabelecer contactos, comunicar directamente com os estudantes nos espaços onde se encontram todos os dias, procurar cada vez mais estabelecer relações de confiança com a comunidade estudantil e promover o alargamento do movimento — que estará assente nas próprias ideias e programa, divulgados através da publicação.

As organizações estudantis precisam ainda de uma estrutura discutida abertamente entre as suas bases, adaptada aos desafios com que o próprio movimento se vai confrontando. Isso passa por discriminar diferentes responsabilidades que são necessárias para manter e construir a organização, eleger pessoas capazes de as cumprir (mantendo sempre a possibilidade de revogação dessa eleição), ter estruturas e tarefas para integrar qualquer estudante com iniciativa para participar activamente no movimento estudantil e que concorde com os princípios fundamentais da organização — qualquer que seja o seu nível de politização ou a sua afiliação política.

Por último, as organizações estudantis precisam de se focar, como reivindicação fundamental, na questão da democratização das instituições de ensino — não só na questão da democratização do acesso, mas também da democratização do seu funcionamento. Precisamos de exigir que seja a comunidade escolar a gerir as suas próprias escolas e universidades; que o percurso e as mudanças nas instituições sejam definidos por órgãos democráticos de estudantes, professores e funcionários, e não por órgãos de decisão que respondem a interesses privados externos.

A democratização e o ensino gratuito e de qualidade devem ser as bandeiras que unificam todos os estudantes dispostos a lutar nos seus espaços de ensino. Apesar da importância da mobilização por campanhas específicas e sentidas de forma imediata pela maior parte dos estudantes de uma determinada instituição, essa deve estar sempre ligada às questões estruturais que definem essas mudanças — como as propinas, os órgãos de decisão, o orçamento para a educação e para a acção social escolar — e que são partilhadas a um nível nacional e mesmo internacional.

A luta pela democratização do ensino é parte de uma luta contra o sistema capitalista internacional. A classe dominante não irá ceder de forma sistemática aos interesses dos estudantes de classe trabalhadora e dos trabalhadores das escolas e universidades, colocando em causa os seus próprios interesses na gestão dessas instituições. Sem um movimento estudantil que se una ao movimento dos trabalhadores para cumprir as tarefas de uma revolução socialista, não alcançaremos as condições necessárias para construir um ensino verdadeiramente democrático e ao serviço dos jovens e trabalhadores.

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